Como é ser mulher no universo masculino do reggae maranhense

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Música

Como é ser mulher no universo masculino do reggae maranhense

Rosy Valença, Célia Sampaio e outras ilustres representantes da cena de São Luís falam sobre as dificuldades de ultrapassar as barreiras de gênero na Jamaica brasileira.

Célia Sampaio. Foto: Jorrimar Carvalho de Souza/Facebook.

Seja na Jamaica, seja no Maranhão, a cena musical de reggae sempre foi amplamente dominada pela figura masculina, desde os primórdios. Existe, é claro, grandes e notáveis exceções como a produtora Sonia Pottinger, primeira mulher produtora musical da ilha e leoa a figurar entre as dezenas e dezenas de medalhões locais — Coxsone Dodd, Duke Reid, Herman Chin Loy, Joe Gibbs, King Tubby, Lee Perry, King Jammy e por aí vai — e Sister Nancy, primeira deejay no dancehall clássico e a grande voz feminina que dominou o cenário por muitos anos, quando só então uma sucessão se abriu com nomes como Lady G, Lady Saw, Shelly Thunder e outras.

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Assista o vídeo "Por dentro da Jamaica Brasileira, em 360º":

A história do reggae não reservou tantos lugares de destaque para a mulher quanto reservou para os homens. No entanto, mesmo com essa dificuldade bem latente, a mulherada foi cortando o mato espinhento do caminho a facão afiado e não deixou barato.

Dando um salto dos anos 1970 para a atualidade do reggae maranhense, especialmente em São Luís (a Jamaica Brasileira), percebe-se que as coisas mudaram muito pouco. As radiolas — que são os sistemas de som do Maranhão, os grandes paredões de caixas que ecoam reggae music para dançar a noite toda — continuam sendo capitaneadas pelos homens. Os colecionadores são, em sua maioria absoluta, homens (pouquíssimas mulheres se destacam, como é o caso da colecionadora Sonia Soares, xará da toda-poderosa Pottinger). Os produtores das músicas são homens, DJs (ou seletores, que é como são chamados os disc jockey na Jamaica — os deejays são cantores por lá) e vozes são predominantemente masculinos. Ser mulher e se manter nesse cenário é resistência pura.

É exatamente isso que conta Rosy Valença, uma das cantoras de radiola que mais fazem sucesso em São Luis e fora da capital maranhense também. Apesar de bastante conhecida e requisitada — sua página no Facebook conta com mais de 13 mil fãs e seus vídeos no YouTube possuem milhares de visualizações — ela reconhece a dificuldade. "Muitas mulheres vão desistindo pelo caminho por conta da dificuldade que encontram. Eu acho que já esteve mais forte a presença da mulher no reggae do Maranhão, nas radiolas, e hoje me parece menos forte do que era. Isso porque muitas vão desistindo pelo caminho por conta das dificuldades que encontram. Eu tenho meu marido (Dedé Valença), que é meu empresário e produtor e tem o próprio estúdio, e isso facilita as coisas. Mas não é assim para todas, infelizmente."

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"Existem alguns entraves ainda, a presença das mulheres no microfone ainda se faz bem limitada." — Núbia Guimarães

"Já passei por algumas situações complicadas, tipo olhares de preconceito ao subir no palco, ou o fato de não ser igualmente anunciada (em eventos que tem a presença masculina) antes de fazer o som. Já me senti desconsiderada apenas pelo fato de ser mulher", conta a também cantora Núbia Rodrigues. A jovem maranhense tem como base de seu trabalho justamente letras que visam despertar a consciência sobre o empoderamento feminino e a consequente e esperada — porém ainda bem longe de se concretizar — igualdade de gêneros.

"Existem alguns entraves ainda, a presença das mulheres no microfone ainda se faz bem limitada. Mas, a meu ver, o cenário tem começado a mudar para melhor, principalmente pelo fato das mulheres se empoderarem cada vez mais e ocuparem esses e outros espaços. Penso que agora, juntas e sem mordaças, conseguiremos nos fortalecer nessa cena e abrir os caminhos para que muitas outras sintam-se livres para realizar o trabalho", conta.

Mesmo com essa pressão velada — ou não tão velada assim —, as artistas ludovicenses trabalham a todo vapor. Os videoclipes de cantoras como Miriam Black, Cristina Lee, Rose Marie, Carla Suellen e Nathally Johnson, entre outras, alcançam, individualmente, marcas de mais de 50 mil views.

"Célia (Sampaio) me contava que tinha sempre que bater de frente com diversos músicos, que se posicionavam de maneira machista e queriam definir como ela deveria fazer o próprio trabalho." - Fabiana Rasta

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Há mais de dez anos atuando na cena da ilha, a cantora Fabiana Rasta vem da "escola" da Dama do Reggae Maranhense, a grande Célia Sampaio, figura feminina pioneira no reggae da ilha. Tanto em seu trabalho solo quanto no projeto Negreiro, em que é vocalista de covers de grandes sucessos da reggae music, Fabiana conta o que já sentiu ao longo de sua carreira. "Eu, na minha caminhada, já encontrei diversos obstáculos por conta de ser mulher. Obstáculos velados, na verdade, pois na maior parte das vezes o homem não diz, mas olha de canto de olho, dá aquela risadinha debochada, fica olhando nossas curvas com olhares desrespeitosos, duvida da nossa capacidade… São coisas que a gente tem que lidar o tempo todo nesse meio."

Fabiana Rasta. Foto: Divulgação

Quando começou a cantar, Fabiana já tinha ideia do que seria entrar em um universo tão masculino — e, consequentemente, bastante machista. "Célia (Sampaio) me contava que tinha sempre que bater de frente com diversos músicos, que se posicionavam de maneira machista e queriam definir como ela deveria fazer o próprio trabalho. Pelas coisas que ela passou para mim, eu já ia trabalhando isso internamente, me preparando. Eu quis aprender profundamente sobre o meu ofício, aprendi violão, tudo para nunca ser subjugada, para não encarar o julgamento de 'é mulher, não sabe de nada', e provar que eu sabia tanto quanto eles."

"(…) quando eu comecei a cantar, a presença das mulheres nos salões era nos bares vendendo as cervejas, na bilheteria, na revista de pessoas, na limpeza de salão." - Célia Sampaio

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A própria Célia Sampaio, a grande Dama do Reggae maranhense, conta como eram as coisas quando ela começou. "As mulheres sempre fizeram parte do cenário do reggae em São Luís, mas na minha época, quando eu comecei a cantar, a presença das mulheres nos salões era nos bares vendendo as cervejas, na bilheteria, na revista de pessoas, na limpeza de salão. Elas não faziam parte desse cenário maior que era como DJs e hoje, nessa geração agora dos anos 2000, isso vem mudando."

Aos 53 anos de idade e quase 25 anos de carreira, Célia reforça que a luta é incessante, mesmo com a mudança de cenário — positiva, apesar das dificuldades atuais. "Atuo no reggae desde 1993, quando junto com mais sete amigos formamos a Banda Guetos. Nesta época, não existiam mulheres cantando reggae aqui, e acredito que houve uma necessidade de representatividade feminina. Com apoio e incentivo dos amigos mais próximos entrei nessa. Em 1998 eu saí da banda para fazer carreira solo. Já passei por várias dificuldades pessoalmente, mas nada como lutar para você acabar com certos paradigmas. Na época em que eu comecei a cantar na Banda Guetos eu só fazia os vocais e dançava, e
também tinha dificuldades para enfrentar dentro do meu grupo. Então pra mim não foi fácil, dentro do meu próprio grupo era complicado ser a cantora de frente da banda, então tive minhas lutas, como tenho até hoje dentro do movimento."

"(…) a presença da mulher no reggae do Maranhão hoje me parece menos forte do que era. Isso porque muitas vão desistindo pelo caminho por conta das dificuldades que encontram." — Rosy Valença

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Dá pra gente perceber que as dificuldades em ser mulher não são poucas, inclusive na música, que em teoria é um universo "cabeça aberta", desencanado. Tanto na sociedade de forma mais ampla e geral quanto em microuniversos, como é o caso do reggae maranhense, muita coisa mudou, mas tem muito a ser mudado ainda. Que a força das maranhenses seja inspiração para as artistas de tantos outros cenários musicais, do sertanejo ao rap, do forró ao rock. Sister Nancy, a primeira deejay do dancehall jamaicano e uma das mulheres mais zica do reggae, já dizia que "A some a dem a seh me a go mash up dem plan" (Alguns deles me olham e tentam atrapalhar meus planos), mas a força feminina não deixou e nem vai deixar. Fya!

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