O silêncio é o mesmo 10 anos depois dos Crimes de Maio
P.C.C ou P.C.G? Pixação na Vila Joaniza há alguns metros de uma das execuções sumárias de maio de 2006. Foto: Guilherme Santana/VICE

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O silêncio é o mesmo 10 anos depois dos Crimes de Maio

Moradores “não se lembram” e familiares preferem não comentar as mortes das vítimas uma década depois das execuções sumárias.

Há dez anos, São Paulo parou. Pânico na Zona Sul. Pânico em SP. Caos mental geral. Na noite de 12 de maio de 2006, sexta-feira, a maior organização criminosa da história do Brasil, o PCC, pôs em prática um ataque simultâneo a dezenas de alvos pela cidade e motins por cadeias em todo o estado. 59 agentes policiais foram mortos. A retaliação veio com força total, de farda ou capuz, e, nos dias seguintes, centenas de civis morreram por arma de fogo. Esse bangue-bangue urbano moderno virou São Paulo do avesso, e, guardadas as devidas proporções, deixou uma marca profunda na psiquê coletiva da cidade, à lá 11 de setembro. Aproveitamos a ocasião de uma década dos Crimes de Maio para relembrar, com uma série de matérias em todos os nossos sites, a fatídica semana, um trauma social que até hoje tem imensa influência na sociedade paulista, das favelas ao Jardins, passando pelo Palácio dos Bandeirantes.

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O Terminal Santo Amaro tem 61 linhas e atende cerca de 175 mil pessoas diariamente. Elas, dia após dia, passam por dezenas de quiosques que cheiram a pão de queijo, vendem coxinhas e hambúrgueres já montados. Do lado de fora das catracas, CDs piratas, capinhas para o bilhete único, chocolates, relógios e outros tantos artigos desfilam nas mãos dos marreteiros. Há dez anos, mais precisamente no dia 15 de maio de 2006, porém, esta caótica rotina foi alterada. Era a primeira segunda-feira após os Crimes de Maio, também conhecidos como ataques do PCC, período em que a região metropolitana de São Paulo ficou em estado de alerta. Os policiais militares, em sua versão, trocaram tiros com dois marginais que haviam roubado um táxi e reagido ao serem abordados. Para a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, os meliantes, o menor E.A, de 16 anos, e William Alves Martins, de 21, bateram o carro e saíram do veículo disparando contra os oficiais.

Estação Santo Amaro 10 anos depois. Taxistas, vendedores ambulantes, marreteiros. Ninguém se lembra do crime. Foto: Guilherme Santana/VICE

A família repudia esta história e levanta algumas contradições. O carro foi devolvido ao dono sem passar pela perícia, o que a polícia nega. Além disso, um tio de William afirma, em matéria publicada na Folha de S. Paulo, no dia 18 de maio de 2006, que os jovens "foram vistos algemados e vivos entrando no carro da polícia". Outra evidência levantada pela família são os locais em que os dois rapazes foram atingidos, cabeça e peito. Segundo eles, em uma troca de tiros a probabilidade de outras partes do corpo serem atingidas é grande. A Secretaria de Segurança Pública prometeu um inquérito militar para o caso, no entanto, nos meses seguintes este, como muitos outros processos foram arquivados. Dez anos depois do fato, o Terminal Santo Amaro parece ter se esquecido de William e E.A. Os vendedores de CDs piratas, capinhas para bilhete único, pipoca doce, jornal, pão de queijo e os taxistas diziam não se lembrar de nenhum crime com essas características na região. Muitos, que já trabalhavam no local em 2006, desconversam e rapidamente finalizam o papo.

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Ambulância e guarita na saída do metrô Santo Amaro. Foto: Guilherme Santana/VICE

Este crime é mais um entre as centenas identificados no Observatório das Violências Policiais de São Paulo, documento integrado ao Centro de Estudos de História da América Latina CEHAL- PUC-SP), vinculado ao Programa de Esudos de Pós-graduação em História da PUCSP. Unir esses dois pontos: polícia e PCC na mesma frase tem um poderoso repelente humano, principalmente nas periferias da cidade de São Paulo. Em outro ponto da zona sul, uma história semelhante ficou esquecida no passado, exatamente no dia 18 de maio, uma quinta-feira de 2006. W.A.S, de 16 anos, foi assassinado dentro de um boteco na Rua Professor Carlos Decourt, numa quebradinha da Vila Joaniza chamada de Jardim São Jorge. O crime ocorreu por volta das 23h. Dois homens — de capacete — pararam na porta do bar e efetuaram vários disparos para o interior do estabelecimento. Cinco jovens foram atingidos, William morreu no pronto socorro. Em matéria publicada no Globo Online, 19 de maio de 2006 e no Jornal da Tarde dia 20 de maio de 2007, ambas citadas no Observatório das Violências Policiais de São Paulo, moradores do bairro preferiam não se identificar por temerem represálias e acreditarem que "a polícia está envolvida na morte." Na véspera do crime, três carros da polícia pararam em frente ao bar e sugeriram que o dono, Domingos Batista do Nascimento, fechasse as portas mais cedo. No dia seguinte, os mesmos voltaram e avisaram que "a coisa ia ferver." Dez anos depois, na mesma Rua Rua Professor Carlos Decourt, o bar já mudou de dono, segundo moradores, pelo menos duas vezes, a família já não vive mais na região e a esperança por justiça evaporou com os anos. As notícias da época sequer mencionavam a abertura de um inquérito policial. "Não vi". "Não lembro direito" são frases muito repetidas naquela rua estreita da zona sul, que prefere manter as coisas como são com medo de represálias.

Bar da Vila Joaniza, um dos locais dos assassinatos de maio de 2006. Foto: Guilherme Santana/VICE

Em outro ponto da cidade na Rua Três Arapongas, entrada da favela da Vila Nova Jaguaré, zona oeste de São Paulo, três jovens foram velados no dia 18 de maio. Os primos Gilson Furtado de Araújo, 21 anos, Leandro Araújo, 18, e D.F.A, 17,também entraram na lista de execuções sumárias do Observatório das Violências Policiais de São Paulo. No dia 13 de maio, um sábado, os três rapazes alugaram um carro modelo Mercedes Classe A e pretendiam passar o final de semana em Santos. O veículo, sabidamente negociado com um ladrão de carros da região, era roubado. Na madrugada do dia 14 de maio, Gilson, Leandro e o menor D.F.A foram executados por policiais da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) no quilômetro 285 da BR 116, Rodovia Régis Bittencourt. Na versão da polícia, os três jovens teriam atacado um posto da Polícia Rodoviária Federal, em Itapecerica da Serra. Na sequência, perseguidos pelos policiais, resistiram à prisão e trocaram tiro com a ROTA. A família, que só encontrou os corpos quatro dias depois, questiona a versão e em matéria do Jornal da Tarde, publicada no dia 19 de maio de 2006, "É muita coincidência, numa troca de tiro, como a polícia fala, os três serem baleados no peito". Além disso, o veículo, segundo familiares, apresentava perfurações de balas na lateral e na traseira, o que questiona a lógica e a física de onde os projéteis acertaram os primos. Outra suspeita é sobre o sumiço dos documentos. Os três quase foram enterrados como indigentes, mas um primo deles afirma que Gilson, o mais velho, nunca saía de casa sem o RG. A Corregedoria da Polícia Militar informou que os crimes que envolviam a ROTA tinham características muito semelhantes: tiroteios em que nenhum policial apresentava marca de bala no carro e nenhum oficial era atingido. As vítimas que eram identificadas com documentos em sua maioria tinham antecedentes criminais e mesmo mortas as vítimas eram levadas a hospitais. Um cabo, um segundo-tenente e cinco soldados, não identificados nos Estudos de História da América Latina (CEHAL - PUC-SP), estavam envolvidos na maioria dos casos. Procurada pela VICE, a família da vítima de um dos três primos assassinados preferiu não se pronunciar por "voltar a mexer numa ferida que eles não poderão curar jamais." Na Vila Nova Jaguaré, onde moravam e foram sepultados, pouco se fala sobre o caso dez anos depois. Os moradores, que têm certeza que eles foram executados pela polícia, preferem não se identificar e não esticar o chiclete sobre o assunto.

A garagem onde Gilson, David e Leandro foram velados, uma década depois. Foto: Guilherme Santana/VICE

Lá, assim como no Terminal Santo Amaro e na Vila Joaniza, o assunto é passado e foi enterrado junto das vítimas. William, E.A, W.A.S, Gilson, D.F.A e Leandro se juntam aos 505 civis assassinados — fora os não relacionados — em duas semanas nos crimes de maio de 2006. Na maioria desses casos, afinal, essas mortes viraram apenas isso, os agentes por trás das armas foram policiais ou homens que se comportavam como tais.