Após Dois Anos, as Jornadas de Junho Chegaram ao Maraca
Fotos por Matias Maxx.

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Após Dois Anos, as Jornadas de Junho Chegaram ao Maraca

Demorou, mas chegou.

Eu não tive a chance de acompanhar as Jornadas de Junho de 2013 em São Paulo, mas no meu Rio de Janeiro, posso afirmar que não começou em junho e não foi só pelos vinte centavos, teve também a porra do futebol. Enquanto os paulistas ainda faziam piada se o Corinthians ia ou não conseguir o seu tão sonhado estádio, o Rio de Janeiro sofria com os despejos e caos urbano resultantes das obras de reforma do Maracanã. Na madrugada do dia 22 de Março, a Tropa de Choque despejou as famílias indígenas que habitavam o antigo museu do índio, conhecido como "Aldeia Maracanã", que fica literalmente do lado do estádio e que seria demolido para dar espaço a um empreendimento do grupo de Eike Batista visando a movimentação da Copa e dos Jogos Olímpicos. No mês seguinte, na reabertura do estádio com o jogo "Amigos do Bebeto x Amigos do Ronaldo", cerca de 400 pessoas realizaram um protesto que foi brutalmente reprimido. Era o "tratamento vip", normalmente dispensado a moradores de favela, chegando no asfalto, obviamente em versão "menos letal". Esse dia foi a última vez que um protesto conseguiu chegar perto sequer do Maraca. Todas as outras tentativas de protesto, seja durante a Copa das Confederações ou a Copa do Mundo, foram reprimidas quarteirões antes. No dia 12 de junho de 2014, na final da Copa do Brasil, manifestantes foram presos preventivamente dentro de suas próprias casas, e quem deu as caras na concentração ficou cercado e não conseguiu sair da praça Saens Pena até o final do jogo. Um ano depois, Sepp Blatter e outros diretores da FIFA é que estão em cana. Ainda que isso seja mérito de um jornalista old-school e da polícia norte-americana, é um sinal bem claro que aquela molecada toda vestida de preto não estava nem de longe viajando.

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Igor Mendes, Elisa Quadros (a Sininho) e Fabio Hideki no I Encontro Nacional Contra as Perseguições e Prisões Politicas.

Nesse meio tempo quase nada foi alegria. Tem o caso do Rafael Braga, e também dos 23 jovens que mal se conheciam e foram acusados de formar uma organização criminosa, presos, soltos, depois presos de novo e finalmente soltos na condição de que não participassem de mais manifestações. Após participarem de um evento cultural na Cinelândia, três militantes tiveram prisão expedida no final do ano passado. Moa e Sininho foram para a clandestinidade, enquanto Igor Mendes foi preso no dia 3 de dezembro, e permaneceu no Complexo de Gericinó em Bangu até o dia 25 de junho, quando a 6ª turma do STJ julgou o recurso de seu Habeas Corpus. Para marcar a data foi convocado, no fim de semana passado, o I Encontro Nacional Contra as Perseguições e Prisões Políticas. O evento começou ao meio-dia e se estendeu até umas nove horas da noite, na sede do SINDISPREV, na Lapa. Umas duzentas pessoas pelo menos assistiram às duas mesas, que reuniram alguns dos presos na véspera da Copa, e também mães de vítimas fatais da polícia, jornalistas, representantes do comitê pela liberdade do Rafael Braga (preso desde 20 de junho por portar uma garrafa de desinfetante), o juiz João Baptista Damasceno e o militante paulistano Fábio Hideki (preso com flagrante forjado em protesto contra a Copa em SP). As muitas falas emocionantes eram eventualmente intercaladas pelas palavras de ordem comuns nos protestos, que eram repetidas pela plateia, assim como o hino "¡A Las Barricadas!" da Revolução Espanhola.

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Cheguei já na segunda mesa e, meio sem noção, já saquei a câmera para registrá-la. Fui rapidamente abordado por um sujeito grandão com barba estilo Karl Marx que nunca vi mais gordo, perguntando quem eu era. Antes que eu pudesse apontar para as dezenas de fotos do Rafael Braga coladas pelas paredes (desapropriadas da minha entrevista pra VICE), o Fabio Hideki lançou um joinha lá da mesa e ficou tudo certo. Mas aí acabei não me sentindo a vontade para clicar mais, e por isso nesta matéria só tem uma foto do encontro, com três militantes que já tiveram seus rostos escancarados na mídia milhares de vezes.

Embora narrassem algumas passagens sofridas do cárcere, todos os militantes que falaram foram unânimes em dizer que, por mais que tenham sido punidos exemplarmente em todo processo de criminalização, nada do que passaram é perto do que a massa carcerária – os "presos comuns" – passam todos os dias. "Passei por isso tudo, e sou branca, classe média da zona sul. É difícil me apagarem de uma hora para outra, mas se eu fosse preta e favelada, seria bem diferente", comentou Elisa Quadros, a Sininho. O último a falar foi o Igor Mendes. Ele é bem jovem, magro e tem uma voz que parece sair de um desenho animado, mas quando pega o microfone ou megafone é impossível não prestar atenção. Ele acha que todos ali têm o compromisso de contar para as futuras gerações "a verdadeira história das Jornadas de Junho", que segundo ele "a mídia e esquerda institucional tentam contar como um movimento que logo foi cooptado pela direita".

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Karlayne Pinheiro, a Môa, ficou na clandestinidade por seis meses, com sua foto circulando junto com a da Sininho em cartazes do Disque Denúncia. No domingo, ela foi uma das primeiras militantes a chegar.

O dia seguinte ao evento, domingo dia 12, marcou um ano da final da Copa e um ato foi convocado no mesmo local que o do ano passado. O povo foi chegando aos poucos e por volta das 17h umas 150 pessoas tomaram as ruas. Senti falta de vários militantes presentes no dia anterior.

A polícia já estava presente, com uns dois ônibus lotados de PMs da Choque, algumas viaturas e esta Blazer toda porrada já conhecida da galera por rondar as ocupações nas madrugadas. Na foto não dá pra ver mas a placa é LUD4213.

Não demorou para a PM "envelopar" o ato, como de costume, e tentar espremer a galera para abrir uma pista da Avenida.

Apesar de sempre ter um par de PMs esquentadinhos, a passeata seguiu sem problemas. Algumas pessoas acenavam das janelas e piscavam a luz. O povo que assistia nos botecos o Flamengo tomar uma lavada de 3x0 do Corinthians ficou quietinho. Mas a medida que chegávamos perto do estádio, duvido que tenha tido um manifestante que não pensou que bater de frente com alguma torcida organizada boladona de amor com a derrota do Mengão poderia gerar problemas.

Só que não, e as bandeiras rubro-negras libertárias cruzaram a massa rubro-negra que saía do estádio numa relax, numa tranquila, numa boa, (salvo a presença ostensiva da PM, e um ou outro retardado que gritava enfurecido de dentro do carros, provavelmente puto porque o trânsito gerado pela manifestação o iria fazer perder algum quadro idiota do Fantástico).

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O Igor Mendes, um dos poucos dos 23 criminalizados que compareceu ao protesto, não conseguia esconder seu sorriso: "Nos sentimos vitoriosos!", disse. Na real ninguém conseguia, o simbolismo de finalmente chegar à porta do estádio, após dois anos de tentativas brutalmente reprimidas era demais, mas mesmo assim hay que endurecer – "o país está numa encruzilhada, crise politica, moral, econômica muito grande, que gera o crescimento do fascismo e da repressão", lembrou Igor.

Após posarem para algumas fotos, os grupos foram se dispersando, e eu aproveitei para enquadrar o Dr. Marino D'Icarahy Junior, advogado que representou 12 dos 23 ativistas presos, e conseguiu libertar Igor Mendes e tirar Sininho e Môa da clandestinidade. As fotos a seguir foram feitas em outras ocasiões.

"Servir ao povo de todo coração, tropa de choque da revolução" Dr. Marino D'Icarahy acompanhando coro de manifestantes na saída de uma das várias sessões do julgamento dos 23.

VICE: Queria que você desse um parecer do andamento do caso dos 23 presos. Você conseguiu derrubar a proibição deles participarem de manifestações né?
Marino D'Icarahy Junior: Na verdade esse decreto de prisão do Igor Mendes, Karlayne e Elisa por conta de um suposto descumprimento de medida cautelar que proibia eles de participarem de manifestações e atos políticos, caiu junto com a concessão do habeas corpus num grau de liminar. Nós fizemos um recurso de habeas corpus aqui no Rio de Janeiro, o tribunal negou. Esse HC foi em grau de recurso para o STJ em Brasília e lá, depois de muita luta, de muita demora injustificada, houve agora, no dia 22 de junho, uma decisão do ministro relator Sebastião Reis Junior que concedeu a ordem de habeas corpus liminar e fez cair essa medida cautelar, o que demonstra inclusive o tamanho da violência do Estado em decretar a prisão deles por esse motivo. Cai a prisão e cai o motivo. Se fosse possível voltar atrás no tempo, não haveria porque ter prisão. Essa decisão tem essa importância de mostrar o absurdo da prisão e o absurdo de uma medida cautelar imposta pelo judiciário atentando contra a Constituição Federal e contra a Declaração Universal dos Direitos do Homem, porque ninguém pode ser proibido de se manifestar em hipótese alguma. Isso é inadmissível, estamos no século XXI.

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E o caso em si? Continua?
Eles continuam respondendo. Nós apresentamos as nossas alegações finais de defesa. Como Karlayne e Elisa estavam na clandestinidade, não compareceram aos atos do processo e portanto elas não prestaram os seus interrogatórios, isso vai ser feito então agora.

Até onde eu pude acompanhar o julgamento, fui numas duas sessões, era uma trama de acusações sem pé nem cabeça. O que eu pude perceber era que vocês estavam tentando desamarrar os nós daquela bagunça…
O tempo todo a preocupação da defesa foi exatamente em demonstrar não só a fragilidade e a ilegalidade como o ridículo de toda a prova que constituiu essa grande farsa, uma farsa que está incriminando pessoas, está virando de cabeça pra baixo a vida de muitas famílias, e que claro que ceifou também o movimento, porque era esse o objetivo maior, dizer – "você que quer se manifestar, você que quer protestar… Se você vier, é isso aí que vai acontecer com você…". É o terror do Estado. Te aterrorizando, criando medo, pavor, para você não exercer os seus próprios direitos, isso é terrorismo de estado.

Alguma das meninas na mesa ontem, eu não me lembro quem, disse algo do tipo "eles juntaram 23 pessoas que não se conheciam… e não tinham a menor ideia da merda que estavam fazendo".
Exatamente, eles criaram uma "associação criminosa" de pessoas que nunca tiveram combinação nenhuma, muito menos com fins criminosos. Todos aqui inclusive, são justamente os que dão as caras, pessoas que dão as caras em todos os atos e todas as manifestações, contra tudo que é de respeito à luta popular, e aí é que está a covardia, pegar exatamente os lutadores do dia a dia e querer fazer com que eles paguem o que supostamente eles atribuem a milhões de pessoas ou alguns dentre milhões, quem sabe até provocadores profissionais, P2 que a gente viu atuando no movimento e fazendo coisas para atribuir a outros. Flagrantes forjados, violência desmesurada…

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Juiz Flávio Itabaiana em uma das sessões do julgamento dos 23.

Entre junho de 2013 e os protestos que antecederam a Copa, tivemos muitos flagrantes escancarados, que chegaram até a passar em rede nacional, mas a impressão que fica é que não pegou nada pros policiais, muito menos pros comandantes.
Só pra você ter uma ideia, agora há pouco tempo [foi condenado em primeira instância o Major Fabio Pinto](http://www.estadao.com.br/noticias/geral,rio-pms-acusados-de-forjar-flagrante-tem-nova-audiencia,1510276 +). Ele deu um flagrante forjado junto com um outro oficial, o Tentente Bruno. Eram morteiros teoricamente encontrados com um menor chamado Isac Galvão, ali na frente do Odeon. Isso foi filmado por muitas pessoas, que desmontaram a farsa rapidamente, facilmente. O menino foi liberado e agora recentemente saiu a condenação do major e do tenente a um mês de detenção com direito a sursis. Enquanto isso, eu estou sendo criminalizado, estou respondendo um processo criminal por injúria, difamação e calúnia contra a promotora do caso do Baiano, a Maria Helena Viscaya. Ela se sentiu ofendida nas nossas petições que colocamos contra ela, e na representação que fizemos contra ela no conselho do Ministério Público lá na Corregedoria. Por vingança ela nos colocou esse processo crime. Também estou sendo processado por calúnia e injúria pelo próprio juiz Flávio Itabaiana, que está julgando os 23, pela minha atuação na defesa deles. E pasmem, se você somar as penas a que eu estou sujeito nesses dois processos crime eu serei muito mais gravemente penalizado com pena de prisão, risco inclusive de ir preso, muito maior do que meus próprios clientes que eu defendo no processo.

E que supostamente são "terroristas"…
Você vê… É um negócio assim kafkiano, completamente inaceitável e inacreditável, mas é verdade, é a dura realidade. Costumo dizer que o absurdo não existe, o que existe é a dura realidade, essa é a realidade do fascismo que avança no nosso país e que tem que ser combatido ferozmente junto com esse oportunismo reinante aonde todo mundo quer entrar na vantagem, quer entrar na boquinha, mudar as coisas para manter tudo como está, se beneficiando de formas escusas.

Você acha que essa repressão toda já é cultural ou é algo em especial deste governo?
Na verdade, apesar de sempre entender qual o caráter do PT, ele nunca me enganou, desde sua criação. Mas, ainda assim eu não podia imaginar… Eu errei nas minhas avaliações, nunca podia imaginar que íamos chegar no quarto governo central do PT tendo de enfrentar o fascismo, o oportunismo… Errei nas minhas avaliações políticas, agora está aí pra quem quiser ver, essa falsa esquerda… Na verdade, capitulou e hoje são representantes do capital. Eles traíram o povo, e é essa política que estamos querendo reescrever nas ruas e não nos gabinetes, e não nas urnas.

Fabio Raposo, Igor Mendes e Caio Silva ainda sob custódia em uma das sessões de seu julgamento.

Mais uma consideração final sobre o evento de ontem?
Nós estamos todos muito felizes pela libertação dos três, você vê a alegria com que eles participaram desse ato. Imagina você tirar esse direito de um rapaz como esse, é uma violência que não tem tamanho, cara! Eles querem de fato atingir o que a gente têm de melhor na nossa juventude consciente, combativa, disposta a dedicar o tempo que poderiam estar em lazer, descanso ou qualquer outra atividade de cunho cultural etc, para estar lutando pelo direito de todos. O ato de ontem foi um sucesso, teve uma consistência política muito grande, mostrou a determinação das pessoas dos mais diversos segmentos. Inúmeras e inúmeras entidades de todos os estados representadas ali e aí você vê a disposição que esse pessoal ainda tá de enfrentar todos esses revezes impostos. É isso que a gente lamenta, que o povo pudesse em algum momento despertar e compreender que a gente vive numa falsa democracia. Costumo dizer que nós travamos essa luta nos porões de uma ditadura que as pessoas nem sabem que existem.