Terraform
​Arte: Gustavo Torres

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Tecnologia

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Dolores seguiu as instruções da Torre de Controle e mergulhou os cogumelos no chá.

Dolores seguiu as instruções da Torre de Controle e mergulhou os cogumelos no chá. Era um pouco mais complicado do que simplesmente mastigar cápsulas e caules, mas precisavam de métodos compatíveis com os experimentos terrestres. Livre de gravidade, o vapor de chá formou uma bolha ondulada, sinuosa como uma criatura marítima. Ela assistiu ao espetáculo, fascinada, e assim que a água ficou pronta, abriu um armário intitulado "Experimentos Panorama: Psilocibina 017" e pegou o primeiro pacote à vista de pó marrom embalado a vácuo.

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Coube a ela rir. O laboratório havia desconstruído os cogumelos. De alguma forma, transmutaram a essência deles numa substância mensurável e selaram-na numa sacola plástica — agora em órbita, a quilômetros da Terra. Quando criança, ela costumava encontrá-los cravados nos solos argilosos e musgosos da antiga floresta perto de sua casa, e então os devorava. Eram úmidos, pungentes, exalavam o aroma enigmático dos fungos, um pouco assustadores, mas também simples. Um alimento. Fazia tanto tempo.

"Dolores, status solicitado."

Instintivamente, Dolores se voltou para a fonte da voz, embora ela ressoasse em todo lugar e em lugar nenhum, emanando da nave inteira: uma cadência suave, masculina. Um sistema de inteligência artificial chamado SR9, criado para observar e surpreender Dolores perpetuamente, enquanto a psiconauta, por sua vez, observava a Terra, compilando dados e enviando os relatórios à Torre de Controle em tempo real.

"Tudo nos conformes, Senhor-Nove. Só estava rindo de uma observação pessoal. Nenhum efeito a bordo."

O chá, meio amargo, tinha um sabor terreno mesmo, apesar dessa distinção soar ridícula. Todos os alimentos têm um sabor "terreno", não? Ela deixou a cozinha num impulso e atravessou o corredor rumo à sala de observação. Depois de se prender à rede de descanso, fixou um longo canudo de plástico no contêiner de chá e se ajeitou, ocultando o arco da grande janela da cúpula com a sombra curva de seu corpo.

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A rede não balançou; cambaleou a esmo até o alcance das cordas. Mesmo depois de aprender tudo sobre o funcionamento da estação, a Terra ainda parecia girar como uma bola de brinquedo sob a janela. Ela sorvia o chá enquanto assistia ao sol nascer e se pôr repetidamente. Ansiosa. Ainda não sentia os efeitos do cogumelos.

Durante os experimentos terrestres, alguém lhe contou que voar em órbita era como estar continuamente em queda ao redor do planeta. No abrigo secreto, em algum lugar do Meio-Oeste, com 2.000 miligramas de MDMA ricocheteando em seu tronco cerebral, a informação não era útil. Mas ela a reteve. A Torre de Controle era um zero à esquerda no quesito festas. As drogas eram gratuitas, mas aquelas noites na Terra sempre acabavam com psiconautas choramingando nos cantos da sala, tocando os rostos uns dos outros na escuridão. Claro, a Terra também estava em queda — ao redor do Sol.

SR9 para Torre de Controle: A cobaia Dolores iniciou o Experimento Psilocibina 017 sob minha supervisão. Os sistemas psicológicos apresentam atividades normais para este estágio de estímulo. O humor parece estável. Prosseguimos em Órbita Terrestre Baixa.

Na verdade, tudo estava caindo. Dolores sentiu o fulgor familiar dos cogumelos irromper: uma pequena sensação cortante se espalhando a partir da mandíbula, como uma sede, aquecendo os músculos de seu corpo. Náusea.

Aos poucos, o pulso acelerou. Ou será que desacelerou depressa? Sem condições de calibrar a sensação, ela começou a fazer o que havia aprendido, focar na percepção da Terra janela afora, lá embaixo, lá em cima, ali do lado.

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Como saber se não estava mesmo em queda, mais próxima da Terra a cada momento? Toda vez que ela a espiava, parecia um planeta diferente. Quando conheceu Astrid, foi assim: ela desviou o olhar por um instante, para então descobrir, ao se voltar, que havia uma pessoa completamente nova sentada à sua frente. Uma Astrid segurando um garfo, talvez, ou uma Astrid conversando com animais.

Maravilhada, ela fitou a desconhecida, uma figura magnífica, tentando memorizá-la. Havia Astrids infinitas no primeiro ano delas juntas. Com o tempo, Dolores entendeu o padrão. Foi como perceber o instante em que um loop de vídeo começa: eram todas a mesma Astrid, de ângulos diferentes. A própria Astrid era imutável, teimosa, sempre às voltas com algo—

— Senhor?

— Olá, Dolores.

— Acessar banco de dados literário.

Um zumbido indicou que a Inteligência Artificial registrou o pedido. O SR9 foi programado para ser documentarista e mordomo, mas sobrou banda o bastante para acomodar a biblioteca pessoal da psiconauta, completa, com seu sistema de armazenamento arcano, carregada diretamente de seu mapa mental. Qualquer obra que não estivesse disponível ela podia requisitar com uma breve transmissão à Terra. O sistema precisou mudar para uma modalidade diferente, e Dolores esperou enquanto os milhares de sensores de gravação engatavam no piloto automático. A Torre de Controle logo receberia a gravação completa disso, e passaria meses analisando a escolha de Dolores, mas ela estava acostumada a ser observada. Eles já tinham visto a psiconauta nua com um abajur na cabeça diversas vezes.

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— O que você deseja?

— Europa, Século XVII. Poesia.

— Metafísica ou cavaleiresca?

Dolores franziu a testa.

— Metafísica.

— Você gostaria de fazer uma seleção?

— Não, não. John Donne. Elegia 20, por favor. Adiante vinte estrofes.

SR9 para Torre de Controle: A amostra 017 de psilocibina parece ter sido metabolizada. As pupilas estão dilatadas. A frequência cardíaca aumentou dez por cento. A cobaia solicitou poesia metafísica; arquivar em transcrições sobre Seleções de Mídia de Dolores, documento 0-24.

Dois acordes de música de espera depois, o Senhor-Nove leu, em ritmo preciso:

"Minha América! Minha terra à vista,__
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu império!
Feliz de quem penetre o teu mistério!"

— Devo continuar?

Dolores sempre sentiu que o amor era um processo de estampagem. Consumir todos os centímetros de outra pessoa, até que sejam completamente recriados como uma experiência sensorial na mente. Impossível, claro, mas o desejo é real, de aprender cada arco e cada cheiro, cada gesto, de usurpar e mapear. A certa altura, a outra pessoa torna-se conhecida por completo, como um continente, e é então que o novo mundo acaba.

A Terra pairava gigantesca na janela. Não dava para vê-la de uma só vez, não como os astronautas de outrora, mais elevados, enxergavam. Na época, chamaram-na de bola de gude, e a ocultaram com seus polegares enquanto circundavam a lua. Isso foi muito antes dela nascer, muito antes daquela história na Universidade, muito antes das drogas, antes dos experimentos, antes de Astrid.

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Um traço grosso de escuridão varreu o planeta, engolindo os continentes com a noite. Dolores meneou na rede, rumo à janela. No quadro, o ombro alaranjado da África, parcialmente atenuado pelas nuvens, galanteador. No quadro, margens da atmosfera, fluidas e estranhas, dançando sobre o azul brutal do Atlântico. E agora a América.

Primeiro, o probóscide do Cabo de onde ela decolou, lançando um olhar malicioso ao mar, e então planícies marrons pontilhadas por lagos, os campos abertos de sua infância. Ela sentiu as drogas baterem com força agora. Vastos desertos onde ela e Astrid acamparam, gravemente despreparadas, amontoadas sob estrelas sibilantes.

Ela apalpou o vidro à medida que o continente se desenrodilhava lá embaixo, os desertos virando cordilheiras, virando Califórnia, e então o Pacífico.

— Minha América! — bradou Dolores, já com saudades.

— Devo continuar o poema?

Ela ergueu os braços como um animal em direção à voz de lugar nenhum.

— Que se dane! Sei de cor.

SR9 para Torre de Controle: A cobaia está em um estado suspenso. Efeitos somáticos qualitativos estão atingindo picos no painel. A cobaia parece estar vivenciando efeitos suaves de sinestesia em conjunção com uma intensificação de reações afetivas e uma regressão a comportamentos primitivos e infantis.

Os primeiros astronautas que apreciaram tal vista voltaram para casa com histórias: visões místicas, momentos deslumbrantes de conectividade, ver o planeta sem fronteiras ou linguagens. Foi algo poderoso; mudou a vida desses homens para sempre. Chamaram-no de "Efeito Panorama". Dolores estava estudando as modulações do fenômeno; ou melhor, o SR9 estava, observando Dolores enquanto ela zurrava e tropeçava pela cápsula, dia após dia, e Astrid continuava vivendo entre os bilhões de humanos giratórios lá embaixo.

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Astrid nunca foi fá de alucinógenos. Tomaram ácido uma vez, nos primeiros meses da relação. Quando bateu, ela ficou bem quieta e passou uma hora observando o próprio reflexo no espelho, de todos os ângulos, em terror e silêncio. Por fim, Dolores a afastou do banheiro e foram ao parque, onde a grama cambaleava e as beiras das nuvens sumiam como bruma no ar. Astrid teve medo; ela achou que aquilo era belo demais, e que um dia acabaria. Com um forte abraço, Dolores a reconfortou e assegurou, como uma tola, que nada assim tão belo poderia terminar.

Imagens de Astrid despencavam na mente de Dolores como uma folha de papel cai no chão. Os longos membros de Astrid se cruzavam enquanto ela lia. Astrid sob a luz opaca, entre as cobertas delas, enquanto combatiam o dia. Astrid cantando o último pedaço de sushi. Astrid chorando em silêncio no seu lado da cama. Astrid, Astrid, Astrid: na plataforma de lançamento, arremessando Dolores no espaço com um olhar.

SR9 para Torre de Controle: Coincidente com uma hipotensão significativa, a cobaia parece ter adentrado uma experiência subjetiva de passagem de tempo. Todos os sensores biométricos indicam que ela está pronta para o questionamento. Iniciando estágio formal do experimento.

O Senhor-Nove arrulhou:

— E a Terra, Dolores? O que você gostaria de me dizer sobre a Terra hoje?

Dolores estava rindo, as mãos emaranhadas nas cordas da rede, garras suadas, gargalhando com lágrimas nos olhos, uma risada que se confundia com choro, e então se converteu em choro completo, os berros cada vez mais rotos, ao passo que ela caía e caía ao redor daquela bola de gude imbecil.

O que é que tem a Terra? Tudo que ela via pela janela era onde costumavam morar.

Esta remessa é parte da seção ​Terraform​, nosso novo lar online para ficção futurística.

Tradução: Stephanie Fernandes