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'Avatar: A Lenda de Aang' ainda é um dos melhores desenhos de todos os tempos

Uma década depois de sair do ar, a série continua sendo uma obra vanguardista que está sempre descobrindo novos fãs.

Há dez anos ia ao ar a última temporada de uma das melhores animações infantis da televisão, Avatar: A Lenda de Aang. Dez anos desde que 5,6 milhões de pessoas assistiram Aang derrotar o Lorde Ozai no que foi um dos episódios mais assistidos da história da Nickelodeon. Se você não nunca assistiu, é hora de se atualizar: o desenho manteve todo seu poder, e sua mensagem importa mais do que nunca hoje.

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Para os não iniciados, o mundo de Avatar se centra em quatro nações – do fogo, da água, da terra e do ar – povoadas por pessoas comuns e “dobradores” que podem controlar esses elementos. O “avatar”, um menino de doze anos chamado Aang, é o único que pode dobrar todos os quatro elementos e “recuperar o equilíbrio do mundo”. Ele ficou congelado por 100 anos, perdendo um século de guerra global desencadeada pelas conquistas agressivas da Nação do Fogo.

O universo da série é uma montagem cuidadosa, com um nível de detalhes paralelo aos mundos de Harry Potter e Senhor dos Anéis. Mas em vez de se basear nas mitologias do norte da Europa, Avatar tirou referências de várias culturas asiáticas, principalmente da China. O desenho contratou Edwin Zane, então vice-presidente do grupo Media Action Network for Asian Americans, como consultor para garantir que desde o figurino até o estilo do desenho dos personagens fossem feitos de maneira sensível. Anime e mangá japoneses também são uma grande fonte de inspiração, como fica óbvio pela ilustração facial expressiva ao estilo de desenhos japoneses como Astro Boy e Dragon Ball Z. Também há vários paralelos em estilo de arte e filosofia centrais de filmes clássicos de Hayao Miyazaki, como Princesa Mononoke.

“Os cocriadores Bryan [Konietzko] e Michael [Dante DiMartino] estavam tentando construir algo que tivesse uma ressonância mítica”, me disse o roteirista chefe Aaron Ehasz por telefone. “Queríamos nos inspirar sem nos apropriar”, ele acrescentou. “Você não queria acidentalmente dizer algo sobre uma cultura. Por exemplo, os primeiros designs da Nação do Fogo eram inspirados em desenhos do Japão, o que era um problema – você tem uma nação vilã, e se todos os designs fossem japoneses, projetaríamos uma mensagem ruim sobre a cultura deles. Retrabalhamos completamente a arte para que a nação tivesse uma inspiração mais ampla.”

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Cada estilo de dobra é derivado de uma arte marcial chinesa específica, e a cultura de cada nação tira referências de encarnações físicas do elemento, assim como inspiração de culturas do mundo real. Por exemplo, a Tribo da Água é baseada nas culturas inuíte e sireniki, e seu estilo de dobra foi modelado sobre o Tai Chi. Essas nuances acrescentam camadas às cenas de luta: Aang é evasivo e rápido, nunca atacando e sempre se esquivando; Katara tem uma porção de água estilo pochete, que usa como um chicote, adagas de gelo ou até para curar; e Zuko, especialmente no começo, dobra o fogo com uma raiva evidente.

Um dos principais fatores do desenho é a profundidade de sua narrativa. Depois do sucesso da primeira temporada, a Nickelodeon encomendou exatamente mais duas, segundo um documentário sobre a série. Isso significou que a história podia ser moldada até um final planejado, e a equipe criativa sabia quantos episódios tinha para explorar os personagens. “Com a equipe de roteiristas, pude dar dimensões extras para esses personagens, dar realidade a eles e ligações com a realidade. Pude descobrir quem esses personagens eram, como eles cresciam, o que eles estavam fazendo”, disse Ehasz. “Esses personagens acabavam de uma certa maneira, às vezes independente do que você 'queria' para eles. E você olhava para os personagens e pensava 'O que eles precisam, o que eles vão fazer agora?'”

A “autenticidade emocional” – como Ehasz chama – dos personagens foi como Avatar conseguiu expôr seus jovens espectadores a questões mais sombrias, como genocídio e autoritarismo, enquanto dava a eles uma estrutura para entender essas questões. Muitas vezes isso era feito focando nas emoções do elenco central enquanto eles processavam esses eventos. O terceiro episódio mostra Aang testemunhando, em primeira mão, a morte de sua cultura dos Nômades do Ar nas mãos da Nação do Fogo. Voamos para o templo do ar e experimentamos a tristeza de Aang com a perda de seu querido mentor, o Monge Gyatso, que Aang descobre que morreu literalmente tropeçando em seu esqueleto. Em flashbacks vemos as memórias de Gyatso tratando Aang como um filho, e o protegendo de seu dever como o avatar. Descobrimos que Aang fugiu. É uma sequência devastadora, independente da sua idade.

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Still via Nickelodeon

“Se você simplifica muito as coisas, pode funcionar para crianças de seis ou sete anos, mas mesmo crianças de 10 e 11 rejeitam coisas que não parecem com o mundo ao seu redor”, explicou Ehasz. “É possível criar uma narrativa com empatia que respeite a inteligência do público? Através disso, você constrói uma história com um impacto incrível numa pessoa jovem, algo que continua com ela enquanto ela cresce. Porque o que escrevemos ainda é verdade. Não transformamos isso numa mentira para tornar tudo mais palatável.”

Avatar é notável por seu retrato sutil de como o poder corrompe e como a desigualdade envenena tudo. A tirania da Nação do Fogo é mostrada da perspectiva das vítimas, mas também da perspectiva das crianças da Nação do Fogo sofrendo lavagem cerebral na escola. O espectador é exposto às desigualdades dentro dos muros de Ba Sing Se, a cidade mais poderosa do Reino da Terra, lar de refugiados e uma das últimas fortalezas contra a Nação do Fogo. A cidade é formada por anéis de muros, com a realeza no meio e os pobres em favelas nos subúrbios que o rei nunca visitou. A paz é mantida por uma ordem militar secreta chamada Dai Li, que faz lavagem cerebral nos cidadãos e trata o rei como um líder de fachada.

No decorrer da série, ela se revela uma crítica ao imperialismo enquanto o elenco central viaja de cidade para cidade devastada de maneira diferente pela Nação do Fogo. Isso inclui episódios como “A Dama Pintada”, onde o Time Avatar visita uma pequena cidade da Nação de Fogo cujo lago foi envenenado por uma fábrica construída pela própria elite do país. Em “Aprisionados”, o time fica numa pequena cidade do Reino da Terra onde qualquer pessoa que vê alguém dobrar terra é preso por oficiais da Nação do Fogo. E no final da temporada um, o almirante Zhao da Nação do Fogo é tão zeloso que mata o espírito da lua, fazendo a lua (a fonte de poder dos dobradores de água) desaparecer da Terra em sua busca imperialista para capturar a Tribo da Água do Norte.

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A série usa a guerra para expôr os impactos do trauma intergeracional e a toxidade da vingança, especialmente nos modos como o ciclo de violência fere os inocentes. Uma dobradora de água prisioneira de guerra desenvolve dobra de sangue como um jeito de se libertar – depois usar isso para sequestrar aldeões inocentes da Nação do Fogo como forma de retribuição. O combatente justiceiro Jet tenta afogar uma cidade inteira de aldeões inocentes da Nação do Fogo, para vingar os pais que ele perdeu num ataque do exército do país. Mais notável, Katara se recusa a matar o homem que matou sua mãe, mandando uma mensagem muito poderosa no final da terceira temporada sobre quebrar o ciclo.

Still via Nickelodeon. Zuko redirecionando um raio de seu pai.

Vemos esse tipo de trauma personificado num dos principais vilões, Zuko, que passa a maior parte da primeira temporada perseguindo o avatar para “recuperar sua honra” depois de ser banido pelo pai. Como os melhores vilões, é possível se identificar com o personagem mesmo quando ele comete atos horríveis – quem não simpatiza com essa necessidade de aprovação e aceitação dos pais? Ele até comete o ato falho freudiano de chamar o “lorde do fogo” de “lorde pai”. Eventualmente ele se junta a Aang. “Há um pouco de Zuko em todos nós”, me escreveu Dante Basco, dublador de Zuko, por e-mail. “Todos queremos recuperar nossa honra na vida, todos fomos mal interpretados e queremos que as pessoas vejam que estavam erradas – especialmente aquelas que são mais importantes para nós.”

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Avatar conseguiu fazer o que poucas séries conseguem mesmo hoje: Reunir um elenco de personagens que retrata o mundo como ele é, com uma variedade de identidades e experiências, incluindo, por exemplo, Teo, um garoto paraplégico do Reino da Terra. “Como equipe, nos inspiramos em coisas diversas e interessantes”, disse Ehasz. “Sentimos, no geral, que a diversidade era uma força, uma coisa fascinante e empoderadora. Era algo sutil. Queríamos ver personagens reais que não eram criados numa forma, personagens que eram diferentes e tinham vulnerabilidades e forças incríveis, e que abraçavam as duas coisas. Honestamente, não foi algo superconsciente, simplesmente um valor que compartilhávamos que entrou nos personagens e histórias que estávamos contando.”

Still via Nickelodeon. Katara enfrentando um mestre da água.

Isso é especialmente verdade para as personagens femininas da série. Princesa Azula, Ty Lee e Mai são três das mais formidáveis vilãs da Nação do Fogo, a “gangue de garotas” que se infiltra e captura Ba Sing Se. “Achávamos que não havia personagens femininas poderosas o suficiente nos desenhos naquela época”, me disse Ehasz. Avatar entregava consistentemente narrativas convincentes expondo o machismo sistêmico – como Sokka subestimando e depois respeitando as Guerreiras Kyoshi, ou Katara descobrindo que a Tribo da Água do Norte não a deixa aprender técnicas de combate porque ela é mulher, mesmo sendo uma das dobradoras de água mais poderosas do mundo.

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E claro, temos a poderosa personagem Toph Bei Fong, ou “Bandida Cega”, uma jovem de uma família extremamente rica que é a maior dobradora da terra do mundo. Seus pais a superprotegem, a amando mas também subestimando por causa da cegueira, sem perceber que ela consegue “ver” detectando vibrações através dos pés.

Esse espírito de inclusão ajudou o desenho a continuar relevante, com novos fãs descobrindo a série mesmo depois que ela saiu do ar. “É incrível pensar que a série acabou dez anos atrás, porque parece que ela só cresceu depois disso”, me escreveu Michaela Murphy – que então usava o nome artístico Jessie Flowers – a dubladora de Toph e minha amiga da faculdade. “Avatar foi uma dessas bençãos que só reconheci muito depois, quando cartas de fãs começaram a chegar, dizendo que Toph os ajudou a se sentirem mais normais com sua cegueira. Pude trabalhar com um grupo incrível de pessoas, e ser essa dobradora da terra forte, destemida e brutalmente genuína. Sou muito grata por ter sido parte dessa série atemporal.”

Avatar acaba sendo uma série sobre a habilidade extraordinária dos seres humanos de sentir empatia por praticamente todo mundo, dadas as condições certas. Quase todo personagem tem um arco de redenção, ou uma mudança para provar sua força em tempos de adversidade. Katara domina a dobra da água, Sokka domina a luta com espadas e Toph inventa a dobra de metais, apesar de todos terem sido subestimados. Quando Aang não consegue dominar o Estado Avatar porque vai resgatar Katara, Iroh o assegura de que escolher amor e amizade foi a decisão certa – que o amor é mais importante que acesso a um poder imenso.

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Mesmo os vilões têm seus arcos de redenção – Jet ajuda a reunir Aang e Appa, Mai e Ty Lee acabam rejeitando Azula. O general Iroh, o centro moral da série, teve um passado complicado. E, claro, Zuko encontra aceitação com o tio e o Time Avatar apesar de seus erros horríveis do passado, ajudando a curar a história de desentendimento entre o lorde do fogo e o avatar da geração anterior.

Mais importante, em cada um desses casos, apesar de os marginalizados serem aqueles lutando por seus direitos, a reparação tem que ser feita por aqueles que erraram. É o trabalho do opressor, não do oprimido, fazer as pazes, os únicos verdadeiros vilões da série são aqueles que se recusam a ter empatia e mostrar humanidade – aqueles insensíveis às súplicas de suas vítimas. A princesa Azula é uma completa sociopata. O Lorde do Fogo Sozin (pai de Ozai e avô de Zuko) é tão cego pelo ego e ganância que começa uma guerra, traindo seu amigo Avatar Roku. E o Lorde de Fogo Ozai dá ao próprio filho uma cicatriz permanente antes de expulsá-lo.

Essa é uma grande lição para carregarmos conosco, uma lição que é especialmente importante para os jovens hoje – aqueles que são cúmplices da injustiça devem trabalhar para acabar com ela, e os oprimidos devem fazer o melhor possível para não passar seus traumas para a próxima geração. São coisas pesadas para aprender, mas esse tipo de otimismo é mais importante que nunca.

“Encontrar essa verdade – essa é a parte atemporal”, disse Ehasz. “Apesar dos temas sombrios, espero que a mensagem central que fica de Avatar seja sobre amor, personagens que são otimistas e lutam uns pelos outros incondicionalmente. Esses tipos de relações importam.”

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