Esta matéria foi originalmente publicada na VICE News .Ahmed, 13 anos, estava pegando goiabas no distrito Al-Jahmalia de Taiz com quatro amigos no dia 18 de setembro, quando bombas caíram.Depois de tentar, sem sucesso, convencer os amigos a ir jogar futebol, ele foi embora. Minutos depois um morteiro, disparado por forças Houthi-Saleh, caiu, sacudindo a terra embaixo dos pés de Ahmed. Ele correu para onde os amigos estavam, e chegou a tempo de ver o mais novo, Rayan, de 6 anos, dar seu último suspiro. Pedaços de corpos dos outros, de 15, 14 e 12 anos, estavam espalhados no caminho estreito entre as tradicionais casas de pedra.
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“No começo da guerra a gente tinha medo. Mas agora estamos acostumados”, disse Ahmed, com o barulho de tiros e explosões ecoando ao fundo. Ele estava na mesma rua onde viu os amigos morrerem duas semanas antes.A violência é tão normal em Taiz, cidade localizada no sudoeste do Iêmen, que respostas assim de crianças como Ahmed são comuns, revelando a sombria realidade perdida em meio ao caos da guerra: por todo o Iêmen, crianças estão suportando o peso da guerra.
Dois anos e meio de luta entre rebeldes Houthi e uma coalizão liderada por sauditas resultou no maior desastre humanitário do mundo, e não só pelos bombardeios, morteiros e franco-atiradores. Mais de 2,2 milhões de crianças iemenitas hoje passam fome — a cada 10 minutos, uma criança morre no país vítima de desnutrição ou doenças capazes de serem prevenidas, segundo agências humanitárias. Das mais de 900 mil suspeitas de casos de cólera desde abril de 2017, 27% acometem crianças abaixo de 5 anos.E quando não estão sofrendo de doenças, fome ou violência, as crianças iemenitas são vítimas de recrutamento — estima-se que 1.500 crianças foram recrutadas como soldados desde que a guerra se tornou mais acirrada em março de 2015. Dito isso, mais de 11 milhões de crianças iemenitas precisam desesperadamente de ajuda humanitária.
As crianças de Taiz, onde atividades do cotidiano como buscar água ou jogar futebol na rua podem ser mortais, sentem essa urgência. Batalhas pelo controle da cidade seguem por dois anos, com muitos distritos sob cerco parcial por forças Houthi-Saleh, cuja ascensão ao poder desencadeou resposta aérea pesada da coalizão da Arábia Saudita. Esses dois lados definem vagamente a guerra civil de quase três anos, com Houthis dizendo que estão combatendo o “daesh” – o nome depreciativo dado ao Estado Islâmico e usado agora como um termo generalizado para seus inimigos – e a coalizão saudita dizendo que está defendendo o governo legítimo do país contra os Houthis. Civis, particularmente crianças, são vítimas regulares dos bombardeios indiscriminados e franco atiradores escondidos em áreas residenciais. Alguns moradores fugiram, mas muitos continuam na cidade.“Mais de 11 milhões de crianças iemenitas precisam desesperadamente de ajuda humanitária.”
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YASSER
A casa da família de Yasser é no coração da cidade, no distrito de Crater — batizado assim por estar no meio de um vulcão adormecido. Franco-atiradores Houthi se posicionavam em prédios a 200 metros da porta da frente. Na falta de um exército para defendê-los, moradores locais, conhecidos como “Resistência do Sul”, pegaram em armas. Quando me encontrei com Yasser pela primeira vez, em maio de 2015, seu pai estava se recuperando depois de levar dois tiros de um franco-atirador, e ele estava vivendo com a família num hotel atrás das linhas da batalha.“Os franco-atiradores disparam se carregamos armas de brinquedo”, me contou Yasser.
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Dois anos depois que nos falamos pela última vez, Yasser ainda lembra o dia em que achou que a mãe tinha morrido quando o hotel deles foi bombardeado. Em julho de 2015, uma ofensiva de solo, lançada como parte da intervenção militar saudita e liderada pelo país-parceiro, os Emirados Árabes, finalmente expulsou as forças Houthi-Saleh de Aden para o sul.Essa vitória permitiu que Yasser e sua família voltassem para casa. Mas não é fácil voltar para a vida que eles tinham antes. O sonho de Yasser é ser médico, mas ele perdeu um ano de aulas por causa da guerra. Agora sua escola abre esporadicamente (isso se os professores são pagos) e opera num sistema de turnos para acomodar estudantes vindos de outras escolas que foram destruídas nos combates.Mas quando se trata de educação, Yasser teve sorte. A UNICEF estima que 2 milhões de crianças iemenitas estão crescendo sem nenhum acesso à educação, já que escolas por todo o país foram bombardeadas pela coalizão saudita, transformadas em bases para combatentes rebeldes ou usadas como abrigo de emergência para famílias deslocadas pelo conflito.Na capital Saná controlada pelos Houthi, Sara, de 9 anos, perdeu a irmã e o irmãozinho quando um ataque aéreo atingiu sua casa em 25 de agosto de 2017. Ela lembra em detalhes vívidos o momento em que os bombeiros a tiraram dos escombros, enquanto os gritos de vítimas próximas iam parando.Sara estava entre os poucos sobreviventes desse ataque aéreo saudita que matou 16 civis, incluindo sete crianças — dois irmãos dela. Naif, de dois anos, e sua irmã mais velha, Sharoug, de 14, morreram na hora. Uma investigação na Anistia Internacional concluiu que uma bomba feita nos EUA foi usada no ataque.
SARA
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“Quando cheguei ao hospital, percebi que minhas roupas estavam encharcadas de sangue”, disse Sara. Três dias depois ela começou a conseguir mover as pernas, mas ainda sentia dores fortes nas costelas por quase ter sido esmagada pelos escombros.
As experiências de Sara, Ahmed e Yasser são só algumas das histórias que explicam por que o diretor regional da UNICEF para o Oriente Médio e Norte da África, Geert Cappelaere, recentemente descreveu o Iêmen como “um dos piores lugares para ser criança do planeta”.Crescer marcados pela violência e as consequências de longo prazo da desnutrição agora é um legado inevitável para uma geração de milhões de crianças iemenitas. Poucos escaparam do impacto dessa guerra aparentemente sem fim que deve piorar, agora que Houthis e lealistas de Saleh entraram em conflito entre si nas ruas da capital na segunda-feira, resultando na morte do ex-presidente Ali Abdullah Saleh. Os que sobreviverem depois de testemunhar a brutalidade do conflito ficarão com memórias terríveis para o resto da vida.“Um estava sem a perna, outro estava sem a mão, e um estava com o cérebro espalhado”, disse Ahmed, apontado para o chão onde os amigos morreram. “Eles estavam todos quietos.”Iona Craig é uma jornalista independente com foco no Iêmen e na Península Árabe.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.