Tecnologia

O Zimbábue está tentando construir um estado de vigilância ao estilo da China

“O partido Zanu-PF e seus agentes no governo têm tudo que precisam para prender oponentes usando a internet.”
Zimbabwe Is Trying to Build a China Style Surveillance State

O fim da brutal ditadura de 37 anos de Robert Mugabe no Zimbábue em 2017 foi recebida com cenas de comemoração nas ruas de Harare, com pessoas vendo seu sonho de independência de uma minoria branca no poder se tornar tirania sob a liderança do ditador envelhecido.

Mas foi nas redes sociais que os zimbabuanos encontraram sua voz para se levantar contra o ditador de 93 anos, com plataformas como WhatsApp, Facebook e Twitter se mostrando vitais para mobilizar e coordenar protestos por todo o país.

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Agora, apenas dois anos depois, ativistas dizem que o governo que substituiu Mugabe está tentando silenciar essas mesmas contas nas redes sociais com uma legislação que conta com todos os marcos da censura e sistema de vigilância distópica da China.

É uma legislação aterrorizante.”

O Parlamento do Zimbábue está analisando uma lei que pode autorizar o uso de tecnologias de vigilância, garantir poderes para derrubar usuários de redes sociais e permitir que o governo espie comunicações privadas de seus cidadãos. A última versão da lei – conhecida como Lei de Crimes Cibernéticos, Cibersegurança e Proteção de Dados de 2019 – foi aprovada pelo gabinete do presidente Emmerson Mnangagwa mês passado, e agora está sendo discutida para publicação e aprovação do Parlamento, onde ela deve ser aprovada facilmente sob a maioria do partido Zanu-PF de Mnangagwa.

Ativistas alertam que as coisas podem ficar feias logo depois disso.

“É uma legislação aterrorizante”, disse Bekezela Gumbo, pesquisador do Instituto de Democracia do Zimbábue, a VICE News. “É tudo que o partido da situação Zanu-PF e agentes do governo precisam para ter base legal para prender oponentes usando a internet.”

Mesmo que o público ainda não saiba como exatamente será a versão final da lei, ativistas dizem que ela provavelmente será ampla demais e sem os tipos de proteção necessárias que grupos de direitos de liberdade de expressão pediram no passado.

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“As definições de crimes são descritas em termos tão amplos que eles podem prender pessoas por dizer algo numa plataforma de redes sociais para criticar o governo, ou dizer algo que é injusto para o governo”, disse Kuda Hove, especialista legal do Media Institute of Southern Africa, a VICE News, se referindo a uma versão anterior da lei que ele viu.

Do Twitter para as ruas

Zimbabwe protests

Profissionais de saúde marcham nas ruas de Harare, em 19 de setembro de 2019. Médicos do Zimbabwe protestando contra o suposto sequestro de um líder sindical ganharam na Suprema Corte o direito de marchar e entregar uma petição no Parlamento. A Associação de Médicos Hospitalares do Zimbabwe diz que seu presidente, Peter Magombeyi, foi sequestrado depois de pedir uma greve por aumento de salários, e os membros dizem que não voltarão ao trabalho até que ele seja encontrado. (AP Photo/Tsvangirayi Mukwazhi.)

Em 2016, as redes sociais foram a faísca para os protestos que acabariam com Mugabe sendo deposto em 2017. Foi no Facebook, Twitter e principalmente no WhatsApp que a gênese do movimento de protestos começou a tomar forma.

Na época, o WhatsApp respondeu por mais de um terço de todos os dados móveis usados no Zimbábue, enquanto os cidadãos compartilhavam notícias antigoverno e informações sobre os protestos.

As autoridades não tinham poder na época para impedir a onda de dissidência online, e começaram a explorar maneiras de limitar isso. Foi durante esse período, enquanto Mugabe estava perdendo poder, que a primeira versão da Lei de Crimes Cibernéticos foi escrita.

Desde a partida de Mugabe, a lei passou por várias revisões. A versão mais recente pode estar cercada de mistério, mas inclui um mandato vago para proteger o “ciberespaço”, segundo Mnangagwa.

O gabinete do presidente não respondeu nossos vários pedidos de comentário sobre a última versão aprovada por eles. O único oficial que falou foi Ivanhoe Gurira, o diretor do Ministério da Informação, que negou que a lei pode promover censura, dizendo que o Zimbabwe tem outras leis que protegem acesso a informação e liberdade de expressão.

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Quando perguntaram sobre as críticas de ativistas sobre a nova lei, Gurira disse: “Só pessoas que querem operar fora da lei vão dizer isso”.

Mas o governo de Mnangagwa já demonstrou que quer restringir a liberdade de expressão online.

Em janeiro, o governo derrubou parcialmente a internet e bloqueou redes sociais incluindo Facebook, Twitter, LinkedIn, Reddit e Tinder. A ação veio enquanto o governo tentava conter protestos sobre um pico no preço dos combustíveis e deterioração geral das condições econômicas. A derrubada da internet foi seguida por uma brutal ofensiva militar que matou dezenas de pessoas e feriu mais de 170.

O acesso à internet foi restaurado uma semana depois, mas só depois que a Suprema Corte decidiu que a ordem do governo foi ilegal. Ativistas de liberdade de expressão dizem que a nova lei de cibercrime basicamente vai tornar outra derrubada legal.

“Com tal precedente, é indubitável que a intenção subjacente da proposta de lei é cortar liberdades políticas e civis fundamentais dos cidadãos, especialmente enquanto o governo luta para conter a queda na economia e aumento da agitação social”, disse Nhlanhla Ngwenya, diretora da Iniciativa do Sul da África da Open Society, a VICE News.

O governo também prendeu vários indivíduos por atividades online desde que Mnangagwa ascendeu ao poder, incluindo Evan Mawarire, um pastor que foi acusado de incitar violência pública depois de postar uma mensagem de apoio aos protestos trabalhistas no Facebook e Twitter.

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“Estamos num país onde liberdades básicas fornecidas pela constituição para os cidadãos estão sendo abertamente violadas. As pessoas não têm permissão para falar livremente. A quantidade de prisões de pessoas que falaram sobre ou contra o governo é chocante”, Mawarire disse a CNN esta semana.

Agora, sob Mnangagwa, o governo espera expandir a ofensiva contra a liberdade de expressão online – e fazendo isso, está seguindo o exemplo do pior abusador da internet do mundo: a China.

Os laços profundos da China

China e Zimbabwe tem laços antigos e profundos de décadas que chegam aos escalões mais altos do governo.

Muitos dos líderes sênior do Zimbabwe, incluindo Mnangagwa e o vice-presidente Constantino Chiwenga, receberam treinamento militar na China no começo dos anos 1960.

“Não dá para exagerar quão profundos são os laços entre esses dois governos”, disse Eric Olander, direito do China Africa Project, a VICE News. “Eles andam juntos há muito tempo e não há indicação que qualquer lado esteja diminuindo seu comprometimento mútuo.”

Não dá para exagerar quão profundos são os laços entre esses dois governos.”

Na parte da tecnologia, a China já está ajudando o governo do Zimbabwe a vigiar seus cidadãos. Como parte de um investimento de US$ 71 milhões de Pequim no país, o governo do Zimbabwe fechou uma parceira com a empresa chinesa de reconhecimento facial CloudWalk Technology para criar uma rede de vigilância similar a usada para monitorar os uigures em Xinjiang.

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O acordo colocou a CloudWalk para monitorar grandes centros de transporte e usar os dados para construir uma base de dados de reconhecimento facial nacional. O acordo também deu a empresa chinesa acesso a uma grande quantidade de dados de rostos africanos.

Críticos temem que a nova lei de cibersegurança aumente essa rede de vigilância monitorando outras atividades online dos cidadãos, além de seus movimentos na vida real. E enquanto o envolvimento da China nos planos de vigilância do Zimbabwe continua longe de estar claro, especialistas esperam que Harare aproveite muito o expertise de Pequim para realizá-los.

“Provavelmente não precisamos de muitas evidências para concluir que a China vai emprestar sua experiência para construir esse tipo de vigilância digital, considerando a confiança que existe entre os dois países e a experiência da China nessa área”, disse Olander. “Além disso, os chineses já têm mecanismos para fornecer financiamento, implementação e treinamento em como usar tecnologias assim.”

Na verdade, o governo do Zimbabwe já pode ter se inspirado na China durante a construção da nova legislação. Oficiais do governo zimbabuano estavam entre os representantes de trinta países que viajaram para a China nos últimos anos para seminários de uma semana sobre gerenciamento de informação, segundo Sarah Cook, pesquisadora sênior da China da Freedom House.

Com o conhecimento da China, o governo de Mnangagwa pode estar se aproximando de sufocar o tipo de revoltas que derrubaram seus antecessores antes mesmos delas começarem.

“Essa lei é uma resposta ao uso das redes sociais por ativistas, jornalistas cidadãos e pesquisadores durante protestos, monitoramento de responsabilização e mobilização política”, disse Gumbo. “É isso que o governo não quer, e a lei é um mecanismo para evitar o escrutínio público. Ela visa cortar liberdades de expressão.”

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