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Identidade

“A representatividade LGBTQ+ precisa estar nos grandes veículos de comunicação”

Um papo com a jornalista Milly Lacombe sobre a homofobia na mídia esportiva.
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Crédito: Caroline Lima

Essa reportagem integra a série Brazica, a nossa busca pelo lado mais inusitado do futebol nacional. Acesse todas as matérias aqui.

Pode ser uma piadinha homofóbica durante a mesa redonda, um título de reportagem com duplo sentido, uma passada de pano para alguém preconceituoso. A imprensa esportiva tem muitas formas de agir a favor da homofobia e cotidianamente ela reproduz preconceitos. Há, porém, uma parcela de profissionais que busca por mesas redondas, no mínimo, mais justas.

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Um deles é a jornalista carioca Milly Lacombe. Aos 50 anos, ela escreveu três livros e integrou programas relacionados ao futebol na Record TV e também no Sportv. Conversamos com ela sobre ser mulher e lésbica no jornalismo esportivo e sobre como a homofobia — e também o machismo e o racismo — aparecem no cotidiano da profissão.

Muito se fala da homofobia da torcida, dos clubes, mas pouco se fala da nossa, dos jornalistas. Como você vê nossa profissão quanto a essa questão?

Acho que tem uma desconexão muito grande quando o discurso é um e a imagem é outra. Você vê cinco homens brancos dentro de um estúdio falando de racismo já soa estranho. Você vê cinco homens brancos heterossexuais dentro do estúdio falando de homofobia é estranho. Tem uma desconexão que você pode não entender num nível intelectual, ou imediatamente, mas esse discurso já não está mais sendo facilmente digerido pela população. Da mesma maneira que é estranho você ver um político rico, branquinho e bem nascido falando em nome do povo. Isso não cabe mais e as pessoas começaram a entender isso. Acho que tem um movimento muito grande de estranhamento com a imagem que a gente vê na TV com o discurso que a gente vê na TV. É um barulho que não volta mais, ele vai só ganhar volume.

Mas esse barulho ainda é tímido, né?

O que falta é representatividade. Quando você simplesmente pega aquele nucleozinho duro, que é quem fala sobre o tema, e joga ele para ser o distribuidor da informação, você não está representando a massa, uma torcida ou a arquibancada ou o eleitor ou quem quer que seja. A gente precisa de representatividade e a primeira vez que a gente começou a fazer alguma coisa em relação a isso foi com o sistema de cotas. Porque a representatividade não funciona com o empresário que acordou de bom humor e decidiu contratar um monte de gente. Precisa de uma política para isso. A representatividade precisa estar nos grandes veículos de comunicação. Você precisa do gay, da lésbica, do negro. Você precisa de todo mundo falando. O lugar de fala hoje é uma coisa real e as pessoas começaram a entender a importância disso.

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Muitas vezes você esteve no estúdio de um programa de televisão sendo a única mulher e a única gay. Como era isso? Você já foi silenciada?

A questão é que todos nós fomos criados num oceano de racismo e de machismo. Isso está dentro da gente, nem sabemos mais como isso nos afeta no dia a dia. Vou falar do machismo, por exemplo. Quando eu era a única mulher dentro do estúdio, sabia que estava representando mulheres, mas num nível muito empírico. Eu não sabia, por exemplo, o que era manterrupting, eu não conseguia entender que toda a vez que eu abria a boca e alguém interrompia aquilo era uma demonstração de machismo. Era um sistema opressor se fortalecendo com a minha presença ali. Hoje entendo isso. Consciência é uma coisa muito bonita porque, quando você ganha, ela não volta, a mente não atrofia. Acho que hoje a gente começa a entender o que é racismo, o que é machismo, o que é homofobia e começamos a avaliar o que tem dentro da gente.

E como você tem feito essa avaliação?

Por exemplo, eu sou gay e tinha homofobia dentro de mim. O primeiro sintoma dela é não se assumir. Tinha uma vergonha mantida nisso. A partir do momento que você se assume, você transforma esta vergonha em orgulho. Este é o primeiro passo do movimento, que aí pode ser amplificado. Primeiro temos que resolver esses preconceitos dentro da gente.

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Crédito: Caroline Lima

Por que a imprensa não faz uma análise de seus preconceitos?

Porque eu acho que esses grandes movimentos: a luta contra o racismo, a luta contra o machismo, a luta contra a homofobia elas são tão perigosas para o sistema vigente que precisam ser deslegitimadas de saída, então a primeira coisa que as pessoas fazem é ridicularizar. Então, a feminista é feia, é chata, é feminazi, porque aí não tem muito como sair desse deboche, fica estabelecido isso. A deslegitimação é o primeiro recurso de um sistema amedrontado e o sistema começa a entender que não existe mais só a luta contra a homofobia ou a luta contra o racismo ou só contra o machismo, hoje está tudo ligado. É uma luta só, qualquer grande discriminação, hoje, está no balaio das discriminações. Esse recurso, de ridicularização, é sistêmico e quer evitar o inevitável. Acho que não tem como a gente não evoluir. A evolução se dá com dor, nenhum direito civil foi conquistado com flores, são lutas que envolvem batalhas, vidraças quebradas.

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Você já sofreu homofobia ou machismo exercendo sua profissão?

A gente começou falando dessas formas miudinhas de deslegitimar um ser humano. Essas são as mais nocivas porque elas não são perceptíveis facilmente, como o fato de eu não perceber que era interrompida constantemente ou quando percebia achava que era isso que era para acontecer, porque as pessoas se interrompem mesmo. Hoje eu entendo que era um recurso do sistema para perpetuar o machismo dentro dela.

E provavelmente essas interrupções eram sistemáticas…

Exato, uma vez, duas vezes, três vezes.

Hoje isso é mais perceptível?

Eu acho que sim. E acho que quem está trazendo esse discurso à tona são os trans, que são pessoas que ficaram de um lado e estão de outro. Então, homens que hoje são mulheres vêm para este lado e dizem. ‘Peraí, o que está acontecendo? Por que estão me olhando como se eu fosse um pedaço de carne? Nunca foi assim. Por que estão se sentindo no direito de me abordar no metrô? Por que me interrompem? Eu nunca fui interrompido antes’. E essa é uma das belezas dessas pessoas que estão mostrando para a gente como essas coisas funcionam.

Quando você acha que começaremos a dar passos largos em relação a esses preconceitos?

Acho que começa com esses novos heróis. Você vê a Djamila Ribeiro furando bolhas, todo mundo quer saber o que ela tem para dizer. Tem homens brancos, heterossexuais interessados no que ela tem a dizer genuinamente. O primeiro passo é furar essas bolhas com personagens que têm a capacidade de revelar grandes verdades para uma audiência que ainda não tinha recebido isso. Privilégio é uma coisa também sobre a qual a gente pouco fala e pessoas como a Djamila estão nos mostrando o que é o privilégio. Não acho que tenha volta para isso, acho que vai ter muita dor envolvida, porque processos de transformação de consciência são extremamente penosos e há pessoas que ficam pelo caminho.

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E ao mesmo tempo que discutimos homofobia, machismo e racismo há um levante oposto a isso. Como você o enxerga?

Acho que é um movimento natural. Quanto mais transgressões e direitos civis forem discutidos, mais essas vozes reacionárias vão falar alto. Elas estão em pânico vendo o sistema desmoronar e ele está desmoronando. Pode ser que a gente não veja o fim dele, mas ele está acabando. O barulho que estamos ouvindo é o do sistema ruindo. É natural que surjam bolsominions, é natural que a gente comece a perceber que tínhamos amigos fascistas, que tomávamos cerveja na mesa do bar com fascistas. Hoje eu me levanto e saio, me recuso a encontrar. Olhamos a história do nazismo, por exemplo, e sempre gostamos de pensar que estaríamos do lado certo da história. E agora tem um lado certo nesta história e tem muita gente do lado errado que adoraria achar que, naquela época, estaria do lado certo. Fica mais fácil entender hoje quem poderia ter defendido o Hitler ou o Mussolini. Estamos vendo a história acontecer.

Qual seria hoje uma mesa redonda justa?

Uma mesa que represente a torcida. Que tenha mulheres, gays, negros, todo o tipo de classe, uma mesa que tenha operários. Esse é o papo quando acaba o jogo e vamos ao bar beber, é com essas pessoas que a gente se relaciona. Elas entendem muito do jogo, entendem de futebol também, mas podem falar sobre racismo ou sobre homofobia com lugar de fala, não ficam num papo esquizofrênico de quatro homens brancos vociferando contra o racismo.

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Assista ao nosso documentário Bicha!, um mergulho na homofobia do futebol brasileiro:

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