Como me descobri negra
Foto: Felipe Larozza/VICE

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Semana da Consciência Negra 2018

Como me descobri negra

Tive que viver 17 anos pra esse momento acontecer.

Fui fruto da relação entre um homem negro e uma mulher branca. Ambos nasceram em São Paulo alguns anos depois de meus avós migrarem para cá em busca de uma vida melhor, como milhares de brasileiros.

Na minha família a descendência vem de Portugal, Espanha e algum país da África. O continente, que virou nação por conta do esquecimento histórico que não fazem questão de recuperar, também foi esquecido por mim.

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Eu, de pele branca e cabelo crespo, cuidava da minha irmã mais nova, de pele negra e cabelo liso. Nela confirmavam a descendência indígena, e em mim, negavam a descendência africana.

“Você é muito branca pra falar que é preta, menina! É parda.” É parda que chama. Muito branca pra ser negra, mas muito negra pra ser branca. Só que isso, eu só fui perceber depois de 17 anos sentindo na pele – e desculpe o trocadilho – o que é estar no meio da régua do colorismo.

Muitas questões vêm à tona quando você tem que se descobrir negra. Mas essas questões só aparecem quando você tem conhecimento sobre. Eu tinha zero conhecimento do que era a negritude por toda a minha infância e adolescência, e tem gente que nunca sequer chegou a esse questionamento.

Quando eu era criança, os bebês brancos achavam o meu cabelo estranho, os adultos queriam tocá-lo pra sentir a textura, os meus colegas de classe jogavam mini bolinhas de papel e eu não podia usá-lo muito armado. Eu gostava de jogar bola, mas se jogasse com os cabelos ao vento era chamada de Biro-Biro, jogador brasileiro que atuou como meia no Corinthians em 78. Se prendia o cabelo, eu teria que ficar o dia inteiro daquele jeito, porque só quem tem cabelo crespo sabe o incômodo que é tentar deixá-lo solto depois de ficar preso por muito tempo. A maioria de nós aprende da pior forma.

Chorava muito enquanto meus pais, que tinham acordado trinta minutos mais cedo para arrumar meu cabelo, desembaraçavam-no enquanto, ainda, o dia não contemplava a luz do sol. Não sei se era por conta das puxadas de escova e muito gel na testa, ou porque sabia que quando chegasse lá, os coleguinhas de classe inventariam mais uma piadinha pro meu penteado novo.

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Minha mãe, que muito se esforçava pra fazer esses penteados e ficava frustrada com meu chilique, me sugeriu uma progressiva pela primeira vez quando eu tinha 10 anos. Aceitei na hora. Afinal, nada melhor do que acordar trinta minutos mais tarde e passar despercebida pela galera mais foda do colégio.

Foi aplicado em mim o tal do relaxamento, porque me avisaram que a progressiva tinha formol, uma combinação química que já foi muito usada para a preservação de animais mortos. Não adiantou muito o aviso. Depois de alisar a primeira vez, fiz a tal da progressiva por três vezes, e muitos outros relaxamentos, só por desencargo.

Lembro do ritual da progressiva e a tática de guerrilha do cabeleireiro. Ele colocava uma máscara, um óculos, um par de luvas e virava o ventilador pra mim. Enquanto preparava a fórmula da poção milagrosa, virava pros clientes na espera para avisar do perigo que se aproximava. “Quem tiver alergia ou não gostar da fumaça, melhor ficar no quintal.”

Eu, enquanto jogava joguinhos no celular, não tinha nenhuma proteção. Fechava os olhos de vez em quando e contemplava as pausas que ele fazia, de 20 em 20 minutos, para pegar algum ar puro. O creme ardia no couro cabeludo, mas saía de lá sem nenhum frizz, raiz lisa e um pouco de rinite.

Dormia de touca, e depois do banho matinal, tomado com muito cuidado pra não molhar nem um centímetro do meu cabelo Kourtney Kardashian, me olhava no espelho. A moça da pele branca e cabelo liso não se reconhecia, mas felizmente ninguém a notava. Nem eu. Comprava as roupas que minha mãe queria, não via ninguém diferente na TV e nem conseguia descobrir o que preenchia aquele vazio que sentia dentro de mim. Eu achava que era mal agradecida mesmo. Como assim consegui resolver meu problema e não estou satisfeita ainda?

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Eu tinha 14 anos e estava no nono ano do ensino fundamental. Nessa época meu pai comprou um computador e eu descobri o YouTube. Comecei a ver uma tal de Rayza Nicácio. Ela é uma mulher que até hoje faz muito sucesso. Negra de pele clara e o cabelo quase idêntico ao meu, ensinava penteados, falava de transição e fazia hidratação com abacate e cenoura. Foi aí que comecei a perceber que o que faltava em mim era o que eu realmente era.

Com medo de voltar com o meu cabelo crespo e voltar a ser chamada de Biro-Biro no intervalo da escola, esperei mudar de colégio e começar o novo ano como uma pessoa nova. No ensino médio eu comecei a transição, e terminei no último ano colegial. Foram três anos intensos em que me descobri como uma mulher de cabelo cacheado e que ficava até que bem de lencinho vermelho.

Foi só então que com 17 anos entrei na faculdade e, nessas andanças pelo campus, uma moça negra com um black loiro e alguns livros na mão me parou. “Oi! Tenho te visto andando pelo campus e pensei se não seria legal você participar do nosso coletivo negro aqui da faculdade.” Oi? Eu não sei quanto tempo fiquei em silêncio, mas fiquei pensando se aquela moça não tinha me confundido com alguém.

- Mas eu sou negra?

- Sim! Você é…

- Ah sim. Pega meu telefone então.

- Beleza! Eu te chamo.

Ela mal sabia, mas tinha mudado minha vida. Eu era negra e descobri porque alguém me contou isso. Tive de esperar 17 anos da minha vida para alguém vir dar esse toque. Pensei em quais eram as possibilidades dela estar certa e eu ter sido uma mulher negra a vida inteira e nunca ter percebido, nem me encontrado.

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Nessas pesquisas rápidas pela internet pra tentar verificar a veracidade da fala da moça descobri o colorismo, e junto com ele, todo o rolê e a razão pelo qual eu demorei tanto tempo pra finalmente sacar que ser negro se trata de uma parada muito mais profunda e complexa.

O colorismo ou a pigmentocracia é a discriminação guiada pela cor de pele, que é muito comum em países pós-escravocratas, como o Brasil. Esse termo se deu a partir da segunda metade do século 19, em que o antropólogo e médico carioca João Baptista de Lacerda, e outros cientistas da área ao redor do mundo, defendiam que o homem branco europeu provinha de um padrão superior aos demais. Para os teóricos, eles são os que têm mais saúde, mais beleza e maior competência para viver em sociedade.

A defesa da teoria do branqueamento também se manifestava a favor do intenso processo de miscigenação na história brasileira para que os descendentes de negros passassem a ficar mais brancos a cada geração. Isso gerou não só um país de tons e identidades mistas como também diversos níveis e espectros de racismo dependendo do tom de pele de cada indivíduo. E foi aí que saquei tudo.

Me descobrir negra foi, acima de tudo, redescobrir a minha identidade. Aquela menina que não prestava muita atenção em músicas, roupas e não ligava as piadinhas sobre seu cabelo ao racismo, começou a ouvir mais rap, se identificar com um black armado e algumas roupas com estampas africanas maneiras. Junto disso tudo, de brinde, me apropriei de um discurso de militância, encontrei e conheci pessoas que mudaram minha vida e o jeito que eu vejo o mundo. Mudei meu creme de cabelo, meu jeito de andar e a maneira como me porto na sociedade. E descobri que se conhecer é bom demais.

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