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Foto: Wikimedia Commons

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Cultură

Em novo livro, Houellebecq abre seu crânio pra mostrar o que há nele: nada

"Sérotonine", o mais recente romance do autor francês, expõe uma França inteira dentro da gente, mesmo que estejamos lendo seu romance no centro de São Paulo.

Um comprimidinho branco e oval. Captorix. Talvez ele seja o grande protagonista do novo romance de Michel Houellebecq, lançado na França há pouco mais de um mês. Um coquetel de substâncias variadas para controle de sinapses e de recepção e retenção de serotonina dentro da sua cabecinha conduz todo o livro, mesmo que de maneira sutil, sem sabermos que é ele que está no controle.

Houellebecq, o autor, poderia ser o seu melhor amigo se o tivesse conhecido na escola e mantivessem contato até hoje. Ao mesmo tempo, pode ser uma das figuras mais execráveis da literatura contemporânea. Como foi um pouco Phillip Roth, ou um Saul Bellow, mais recentemente. Se você fuma compulsivamente e se diverte quando ele diz a uma das revistas mais prestigiadas dos Estados Unidos (a Harper’s) que Donald Trump é um bom presidente, só de tiração, bem-vindo(a) ao clube: a gente ia ligar pra ele e dizer “meu, o que foi aquilo que você escreveu? Topa um bar mais tarde?”. Ele recusaria o bar, mas nos divertiríamos ao telefone às custas do Donald. No mesmo artigo, há uma passagem fantástica em que ele diz que está pouco se lixando pros Estados Unidos. O negócio dele é a França. E a França “não é Wyoming”.

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Alguém que reduz os Estados Unidos a Wyoming merece respeito ou, pelo menos, um olhar atento. Afinal, o que são os EUA senão a grande deep America povoada de caubóis que atiram entre Los Angeles e Manhattan? E Donald não seria a expressão mais sintomática dessa sociedade que não tolera muito o que está para além de um tão sonhado muro?

O negócio de Houellebecq é a França, com uma sociedade igualmente afundada em conflitos e paradoxos. A grande chave de uma literatura decente é quando seu autor, e seus leitores, conseguem universalizar algo que é particular.

Sérotonine expõe a vida de um agrônomo de meia-idade em crise. Com uma “namoradinha” japonesa viciada em “soirées libertines” ele decide largar tudo, como se diz, e se fechar em um mundo particular de Captorix, mergulhado em memórias, traumas, instinto, falta de instinto, buscando respostas que não encontra ou encontra com dificuldade. Tudo isso em meio a um turbilhão interior e exterior, uma combustão de estímulos que são muitas vezes congelados pelo comprimidinho mágico – ele observa um movimento de trabalhadores, que alguns críticos (a meu ver, erroneamente, ou gratuitamente) associam ao movimento dos coletes amarelos Gilets Jaunes, anestesiado por uma vida que vai perdendo o sentido. É a França, é o francês, é todo tipo de francês, em suas nuanças – só que uma França inteira dentro da gente, mesmo que estejamos lendo seu romance no centro de São Paulo.

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A receita completa de desfaçatez e da ideação suicida, do homem que deseja garotas “baba cool”, ecológicas, com uma camisetinha curtinha dos Ramones, e que ao mesmo tempo planeja com zelo sua própria morte. O mundo segundo o Captorix, taí um bom título, intimamente relacionado à nicotina, tão cara ao autor, a “droga perfeita” que se define pela falta e pela cessação da falta.

Os Stones já cantaram sobre o Valium, e, apesar de Houellebecq tratar de um outro tipo de medicação, na ordem dos antidepressivos, e não dos benzodiazepínicos, a cultura absorve a psiquiatria, em especial a partir da virada do século passado. O antidepressivo não te deixa feliz, e este é o mote do livro, que o autor deixa claro nas primeiras páginas: o encadeamento de circunstâncias que deixam um homem infeliz. Não é o Captorix que vai extrair a fórceps a tristeza e o sofrimento do cérebro de Florent-Claude Labrouste, ele apenas vai encobrir esses sentimentos com uma massinha química que vai anestesiar os acontecimentos, anestesiar, em última instância, a morte, sua aproximação, o seu desejo. Tudo está vazio em nossas cabeças, apesar das trilhões de frenéticas sinapses em tilt nos bilhões de neurônios.

Há um processo proustiano na reconstituição dos acontecimentos e das memórias de Florent-Claude, ainda que sob o signo da medicação psiquiátrica e da nicotina. Houllebecq chega a ser explícito em usar expressões de Proust e ricocheteia no nosso cotidiano: a sociedade narcotizada, o desejo mais primitivo do homem, a suposta liberdade sexual da mulher, vista sob o olhar cético de um homem fracassado, e ilustrada na figura oriental: que Florent pensa que o próprio ato do sexo de uma oriental com um ocidental deve ser considerado zoofilia pela cultura japonesa.

(Em tempo: Houellebecq se casou faz pouco tempo com uma misteriosa chinesa, em uma cerimônia que bizarramente foi fotografa e registrada em um post do Instagram por Carla Bruni – sim, este é o mundo de Houellebecq, em busca de seu tempo perdido.)

O grande Serge Gainsbourg dizia que podia resumir a sua vida em três grandes vértices: Gitanes, alcoolismo e garotas. Um espírito francês possui esse corpo de letras que é a vida e obra de Houellebecq, um espírito que não é, como diz o autor, Wyoming, jeca, redneck, alt-right que atira em caribous pra matar o tempo enquanto não encontra uma boa razão pra atirar em um negro. Florent pode ser extremamente desprezível, talvez tanto quanto o babaca americano de Iowa. Contudo, a literatura, e a arte como um todo, não é feita de personagens bonzinhos. Não somos bonzinhos.

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