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Música

Por que ‘Bedtime Stories’ é o Disco Mais Importante da Madonna

O disco foi vendido como um pedido de #desculpasqn pelo seu comportamento sexual, em resposta ao problema das artistas mulheres serem medidas pela sua sexualidade e não pela sua música.

Ao longo de toda a sua carreira, Madonna enfrentou inúmeros ataques por conta de sua sexualidade. Talvez ela seja o alvo mais consistente na indústria da música, tendo atraído críticas por mais de três décadas. As análises feitas sobre o trabalho dela têm servido como referência de como esquadrinhamos as mulheres em cada fase da sua carreira musical. Fosse a especulação sobre por que ela não era “como uma virgem”, fosse a censura ao seu corpo de meia idade em um collant, a condenação pública teve muitas faces, apesar da sua resolução inabalável: ela vai longe demais.

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É por isso que Bedtime Stories, passadas duas décadas, ainda é o seu trabalho mais importante. Durante os meses que antecederam o lançamento, o disco foi vendido como um pedido de desculpas pelo seu comportamento sexual, e os críticos esperavam que fosse o seu retorno à inocência. Em vez disso, Madonna deu a eles um #desculpasqn musical e uma resposta ao problema das artistas mulheres serem medidas pela sua sexualidade e não pela sua música. Como resultado das preocupações morais do público, tornou-se o disco mais importante dela, definindo o modo como as artistas lidam com críticas à sua sexualidade.

Em 1992, Madonna lançou Erotica, um disco conceitual de techno e uma ode ao bondage, junto com o livro Sex, um catálogo de fotos pornográficas softcore suas e de seus amigos. O lançamento simultâneo gerou uma enorme revolta, com diversos países proibindo a execução do disco nas rádios. O Vaticano chegou mesmo a banir a própria Madonna de seu território. Ela já era um ícone bem estabelecido, mas as suas letras francas sobre sadomasoquismo e fotos de analingus incitaram a maior revolta pública da sua carreira. Bedtime Stories foi planejado para ser a sua última chance de redenção, e a Warner Brothers concordou em produzi-lo sob o auspício de uma imagem menos provocadora.

A gravadora e a sua relações-públicas, Liz Rosenberg, fizeram tudo o que podiam para minimizar os danos causados pelos seus últimos projetos. Fizeram-na lançar um single para o filme Com Mérito, “I’ll Remember”, para dar à Madonna um hit “para toda a família” e aumentar a especulação de que Bedtime Stories seria o seu pedido de desculpas. O vídeo promocional prometia que não haveria “referências sexuais no disco”. Madonna até aparecia dizendo: “sou uma nova pessoa! Vou ser uma boa garota, prometo”.

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A condenação pública de Madonna foi moldada de duas formas: primeiro ela foi desprezada por sua sexualidade, depois foi eclipsada por ela. Como citava o sex appeal como seu único valor, o vídeo promocional fez todo mundo se perguntar sobre o que ela iria cantar se o assunto não fosse sexo. A especulação que antecedeu Bedtime Stories focava no seu plano de fuga para tornar-se irrelevante, se ela planejava fazer cirurgia plástica futuramente e o que ofereceria ao público quando chegasse na meia-idade.

“Quando você é uma celebridade, só tem direito a um traço de personalidade. O que é ridículo”, ela disse ao Detroit News em 1993. Quando Bedtime Stories finalmente foi lançado, em 25 de outubro, ela atacou os dois aspectos da condenação pública. Apesar das promessas no vídeo promocional, seguiu expressando seus desejos sexuais, embora também tenha experimentado, tanto musicalmente quanto nos temas abordados nas letras. Começando com “Survival”, uma música que co-escreveu com Dallas Austin, Madonna não hesita ao falar do repúdio que causou e canta: “Nunca vou ser um anjo / Nunca vou ser uma santa, é verdade / Estou muito ocupada sobrevivendo”. As letras seguem uma espécie de narrativa sobre os castigos que recebeu da mídia e os seus sentimentos anteriores ao lançamento, e as músicas têm, na sua maioria, melodias de R&B produzidas por Austin, Nellee Hooper e Babyface.

O single definitivo do álbum é uma reprovação explícita à revolta gerada por Erotica. Em “Human Nature”, Madonna confirmava que não havia se arrependido e que ninguém mandava nela – lançando ainda um clipe que combinava perfeitamente com a música, brincando com o bondage numa espécie de revival do disco anterior. Exatamente quando está prestes a largar o microfone, ela sussurra: “Soaria melhor se eu fosse homem?”.

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Madonna afirmou sua postura baseada no fato de que não havia dito nem feito nada incomum; era apenas incomum que uma mulher o dissesse. Em uma entrevista ao LA Times, ela defendeu Bedtime Stories dizendo: “Estou sendo punida por ser uma mulher solteira, por ter poder, ser rica e dizer as coisas que digo, ser uma criatura sexual – na verdade, não ser nada diferente de ninguém, mas falar sobre isso. Se eu fosse homem, não teria tido nenhum desses problemas. Ninguém fala da vida sexual do Prince”.

Além de oferecer à Madonna a palavra final sobre o escândalo da sua sexualidade, o disco serviu para abordar a concepção errônea de que a sua persona sexual limitava sua versatilidade como artista. A narrativa de Bedtime Stories se torna imediatamente introspectiva, contando: “Eu sei rir / mas não conheço a felicidade”. Embora de modo geral pegue a sua sonoridade emprestada do R&B e do new jack swing, torna-se mais experimental com a faixa-título, assinada por Björk, acompanhada por um vídeo que não poderia ter explorado melhor o inconsciente coletivo se Carl Jung o tivesse dirigido. O clipe de “Bedtime Story” é o marco zero do longo histórico de busca espiritual de Madonna em diferentes culturas, e até hoje é guardado em uma coleção no Museu de Arte Moderna. Juntas, “Human Nature” e “Bedtime Story” provaram que Madonna estava no controle da sua sexualidade e não seria eclipsada por ela. Enquanto a primeira abraça totalmente as decisões tomadas por ela nos discos anteriores, a segunda desmantela a narrativa da “vadia”, de que a sua hipersexualidade coloca em descrédito sua profundidade como intérprete. É claro que as pessoas veriam isto como uma obra-prima feminista, não?

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Ainda assim, os críticos não entenderam. Jon Pareles, do New York Times, revelou uma nostalgia de quando “Madonna fazia sucesso, nos anos 1980, por ser sensacional e sugestiva, em contraste a um mainstream inofensivo”, chamando seu trabalho mais recente de “vulgar em vez de chocante”. A recepção da crítica continuou focada no escândalo de sua atitude e não no disco em si. “A carreira de Madonna nunca se focou realmente na música, mas na provocação, na imagem, na publicidade”, disse um crítico da TIME, nada original em sua premissa. Qualquer menção ao som experimental ou às inúmeras colaborações do disco foi ofuscada pela sua imagem promíscua, banalizada mais uma vez. Bedtime Stories não foi o pedido de desculpas que o público exigia, e a sua profundidade emocional foi largamente ignorada. No melhor dos casos, o disco foi visto como o retorno de Madonna à uma expressão mais segura da sexualidade.

O disco teve sucesso comercial com o lançamento de “Secret” e “Take a Bow”, mas as duas faixas mais importantes nunca chegaram ao Top 40, um problema que Madonna não havia enfrentado em quase uma década. Hoje, Bedtime Stories não é o primeiro disco do seu legado a vir à nossa mente. Mas ele é o mais relevante para muitas discussões culturais ainda em voga. Se ela tivesse cedido ao apelo do público por um pedido de desculpas, podia ter estabelecido um padrão perigoso para como o público pode decretar o silêncio de um artista e permitido que as categorias para artistas mulheres permanecessem imóveis. A expectativa da crítica ao disco previa ou uma pop star penitente, ou um objeto sexual unidimensional. Ela derrotou ambas – e deixou os críticos se questionando se sexualidade e consistência eram mutuamente exclusivos como esperavam.

Mary von Aue não se arrepende de absolutamente nada. Siga-a no Twitter.

Tradução: Fernanda Botta