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Música

Por que as Meninas Ainda Têm Medo de Entrar nos Mosh Pits de Shows de Metal?

Você já viu um cara passando a mão no outro ou chamando de “gostoso” em um show de metal? Então por que ainda fazem isso com as mulheres?

Aos oito anos parti o coração do meu pai pedindo que não cantasse mais “Yellow Submarine” para mim antes de dormir. Ao achar uma fita cassete antiga, decidi que ouvir Led Zeppelin me traria sonhos melhores. Mas foi demais para ele. Crescer numa cidade conservadora no interior de Minas Gerais pode ser complicado, mas mesmo assim, ali comecei minha jornada no rock'n'roll e, mais tarde, descobri o mundo dos mosh pits.

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Queria ser como Robert Plant, mas o máximo que consegui foi estudar canto lírico no coral da igreja. Em uma versão exagerada, poderia descrever minha infância como em “Kickapoo”, do Tenacious D. Aos 13 anos já respirava Iron Maiden, Metallica, Pantera e Black Sabbath. Assistia aos shows que conseguia na época da internet discada, via os moshs e imaginava como era estar ali. Pareciam, ao mesmo tempo, agressivos e libertadores. As meninas na escola me olhavam torto, afinal, isso ou “era coisa do demônio” ou era “coisa para meninos”.

Aos 14 anos fui ao meu primeiro grande show: Angra. Com estrutura pífia e o som estourando para todos os lados, ainda assim achei a coisa mais legal do mundo. Foi a primeira vez que vi uma "tentativa" de mosh pit ao vivo. Na verdade, parecia mais uma dança dessincronizada, ou uma oportunidade para que aqueles amantes do rock'n'roll de coração enjaulado colocassem tudo pra fora enquanto balançavam agressivamente seus corpos e seus cabelos compridos. Garotas? Estavam acompanhando amigos/namorados/maridos ou eram inexistentes.

“Os shows de rock sempre foram um espaço mais masculino, em que os homens vão para extravasar. Os mosh pits são espaços usados para que toda a agressividade, estresse e o que os incomoda vá embora na batida da música”, diz Fox Machado, filósofa e pesquisadora do Sagrado Feminino; fundadora e ex-baterista da banda Ozone, pioneira no glam metal nacional.

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Antes mesmo de eu começar a me sentir deslocada por gostar de metal, Fox já arrebentava nos palcos. “Nós não víamos mulheres 'quebrando tudo' na cena, ao menos aqui no Brasil. Tinham apenas as groupies, que também olhavam a gente de lado. Se hoje ainda é pouco fechado, imagina nos anos 80. Entrávamos no palco e assustávamos os caras. Eles não esperavam que uma banda formada apenas por garotas agitasse tanto sem se importar com a opinião de ninguém”.

Banda Ozone

Comecei a frequentar shows de death, thrash e metalcore pouco tempo depois, ao me mudar para São Paulo. Continuava também na cena do heavy metal, minha grande paixão. Passei por todos os ambientes de um show: grade, stage diving, mosh pit. Enfrentei problemas por ser mulher e percebi que esse universo do metal, mesmo em constante evolução, ainda precisa caminhar e se abrir mais. No ano passado, em um show dos pioneiros do Korzus, o seu lendário vocalista Marcello Pompeu interrompeu a apresentação por alguns minutos por presenciar o assédio sofrido por uma garota no mosh pit.

“Esse tipo de atitude só afasta as mulheres dos shows. Ajudei a criar essa cena no Brasil e o mosh pit é uma brincadeira saudável. Existem riscos involuntários, mas sempre existem também pessoas ‘emburrecidas’ que se aproveitam da situação. Qualquer dia desses, em um show nosso vou parar e dizer: ‘Essa música é somente para mosh pit feminino! Só as meninas! Precisamos incentivá-las e não afastá-las”, prometeu Pompeu.

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Caio MacBeserra, vocalista da banda paulistana Project46, também já parou um show por perceber que uma mulher estava sendo assediada. “Vi um cara se engraçando com uma garota e ela tentando fugir. Parei o show e pedi para que ele se retirasse. Nossos shows não são lugares para esse tipo de coisa. Mulher não é um pedaço de bife e merece respeito. Só digo para esses caras que nem show nem roda é lugar de passar a mão, de ser babaca com as garotas. O mosh serve para você se desprender de tudo que te puxa para trás, não isso”.

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Eu mesma já tive experiências libertadoras em moshs, mas já saí com roxos pelo corpo e costela machucada. Riscos “involuntários” existem, como descreve Pompeu, mas sempre existem aqueles que entram com o único objetivo de bater e “disputarem um torneio de kung-fu”, palavras do Castor, baixista do Torture Squad, referência no death/trash metal nacional desde a década de 90.

“O mosh pit sempre foi território masculino. Até hoje, mesmo com o aumento de garotas que se arriscam, dependendo do show, são vítimas de brutalidade e sexismo. Quando as meninas dão o stage diving, a galera se aproveita e passa a mão. A roda tem que ser mais democrática, já que o mosh pit é uma celebração de uma cultura jovem e esclarecida”, opinou o Ratos de Porão, que faz parte do cenário pioneiro do punk rock, mas também contribuiu com influências no thrash metal nacional.

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Além do aspecto que diz respeito ao assédio e violência, muitas mulheres não se sentem à vontade para se expressar em shows por medo de julgamento. E muitos homens se aproveitam disso para tirar vantagem. “Participo de mosh pits há anos, e alguns caras abusam sim na hora do ‘empurra-empurra’. O que me incomoda também é a grade. O pior show nesse aspecto foi o do Lamb of God em março de 2012. Estava na grade e um cara queria me tirar dali. Ele simplesmente começou a encostar ‘suas partes’ em mim. E ainda olhava e ria. Eu mandei ele parar e disse que não ia sair da grade. Muitas vezes você lutou muito para conquistar um espaço na grade do show e os caras te ‘encoxam’ para tirarem isso de você. Em junho, no show do Sepultura 30 anos, também sofri pra caramba. Um cara não parava de puxar forte o meu cabelo”, conta Pamella Young, fã de Slayer, Exodus e tudo que faz nossos corações headbangers baterem mais rápido.

Pamella Young e as amigas no show do Metallica.

A editora do Casos de Rock’n’Roll, Amanda Cipullo, também já passou pela mesma experiência desagradável. “O show do Black Label Society, em 2012, foi um dos primeiros que eu fui sozinha. Foi tenso. Tinham vários caras que tentavam me tirar da grade a qualquer custo, me dando cotoveladas violentas ou me encoxando. Foi péssimo."

O julgamento nem sempre acontece por parte dos homens, mas ainda paira o imaginário feminino. É o que explicam Lucas Simões e Igor Fugiwara, vocalista e baixista, respectivamente, da banda thrash Hollow Head. “Muitas amigas querem participar do mosh pit, mas se recusam por ‘medo’ de serem julgadas. O medo delas é entrar no mosh e estragar a vibe dos caras. Alguns homens podem pensar ‘O que essas garotas ‘frágeis’ estão fazendo aqui? Vão acabar estragando a roda já que não poderemos agir/fazer do jeito que gostaríamos por conta delas.”

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E Igor continua: “Quando eu vejo meninas no meio do mosh fico com o pé atrás. Não por preconceito, mas fico com medo de machucá-las. A mulher é [fisicamente] mais frágil que o homem. Pode ser que uma entrada mais forte para a gente seja tranquila, mas com elas, pode chegar de forma mais agressiva."

Você não vê um cara passando a mão no outro ou chamando de “gostoso” no meio de um show de metal ou no mosh pit, logo, não tem justificativa para fazer algo parecido com mulheres. A verdade é que a mulher que entra no mosh não espera ser tratada de maneira diferente, pelo contrário. Na roda, o objetivo é que todos que estão ali sejam tratados de igual para igual. Agir de forma violenta e proposital é prejudicial para qualquer um, independentemente do sexo, afinal, ninguém espera sair sangrando ou com o ombro deslocado de um show (imagino eu).

“Vejo cada vez mais mulheres nos nossos shows, o que é ótimo. A presença delas é muito forte, e não têm medo de ficarem na grade e nos mosh pits. Desde que todos se respeitem, não vejo nenhum problema nisso”, me contou Derrick Green, vocalista do Sepultura, que defende a união das mulheres na cena.

Castor, do Torture Squad, reforça o papo: “Há anos o número de garotas que exigem tratamento igualitário nos shows aumenta, e a cada show me deparo com grupos femininos maiores que se impõem sem medo”.

E não é só no Brasil que as meninas estão exigindo seu espaço no metal. No último festival gringo que dei às caras, o Welcome to Rockville, em Jacksonville (EUA) no mês de abril, presenciei mosh pits com presença feminina e muitas delas defendendo seus lugares na grade. É óbvio que em um ou outro stage diving ouvi reclamações, e em alguns moshs precisei abandonar o posto. Mas ainda assim, esse fenômeno era mais raro há alguns anos.

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Uma das performances mais incríveis do festival foi do Halestorm, banda liderada pela bela Lzzy Hale, que quebra tudo em músicas como “Daughters of Darkness” e “Rock Show”, escritas com base na inspiração que teve mulheres presentes nos shows de metal. “Eu queria escrever algo que todas pudessem cantar. Essa música é para as ‘garotas duronas’ nos mosh pits!”, me contou em um e-mail cheio de empolgação.

Lzzy é defensora da igualdade de direitos e do empoderamento feminino nos shows de rock. “Você precisa estar ciente dos riscos, mas nunca hesitar em pedir uma ajudinha aos seguranças do show se você estiver se sentindo desconfortável. Se você estiver muito nervosa, converse com um deles antes do show começar. Outra coisa é que você pode ir ao show com um amigo, alguém para ficar ali ao seu lado. E lembre-se, se você for a um show do Halestorm e eu vir que você está sendo assediada ou se machucando, eu vou parar o show e pedir que os seguranças ajudem você!”. Mas ela também avisa: “O mundo sempre vai estar cheio de babacas”.

E é exatamente esse tipo de consciência que nós mulheres precisamos ter. Sabemos que os problemas em relação ao sexismo existem em qualquer lugar e em shows de qualquer estilo. Mas nós, mulheres e headbangers, somos fortes o suficiente para passar por cima disso e mudarmos esse cenário. Cada vez vejo mais e mais bandas defendendo a participação feminina e desconstruindo a ideia de que shows de metal e mosh pits são “coisas de homem”.

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A baterista Fernanda Terra. Foto via Facebook.

“Espero que as pessoas entendam que temos o direito de entrar no mosh e participar dos shows sem sofrer nenhum tipo de abuso. Certa vez fui tocar em um lugar onde eu era a única mulher. Além dos caras ficarem gritando ‘gostosa’, invadiram o palco. Os caras da banda precisaram me ajudar a sair. Mas nem por isso deixei de tocar ou parei de frequentar shows. E se eu tiver vontade, vou também pro mosh pit”, contou Fernanda Terra, ex-baterista da Nervosa e atual baterista da Extermina.

Em minha última experiência num show, o Sepultura 30 anos (até o fechamento desta matéria provavelmente terei passado por mais alguns), fui com duas amigas: a Fernanda Terra e a Tamy Castro, vocalista da Extermina.

Estávamos tímidas, assistindo ao mosh de longe. Num ímpeto, Tamy se agarrou na grade, subiu no palco e cantou junto com o Derrick Green. Ao descer, a primeira coisa que ela disse foi: “Não pulei do palco na galera porque fiquei com medo de passarem a mão em mim. Mas foi do caralho! Cantei com o Derrick! Cantei com o Derrick! Faria tudo de novo!”. Todas nós estávamos extasiadas pela atitude e pela felicidade dela.

O receio não vai sumir de uma hora para a outra, mas é inegável que as mulheres já mostraram e mostram que são tão competentes quanto os homens para fazer metal e merecem respeito, inclusive na hora de bater cabeça. Nas sábias palavras da Lzzy, babacas sempre irão existir, em qualquer lugar. Mas nós mulheres já conquistamos e vamos conquistar cada vez mais o nosso espaço, porque aí, serão esses babacas que terão receio de se meterem com a gente.