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Música

O Plágio É uma Ferramenta Criativa e Libertadora na Música do Escalier

Com uma proposta ambiciosa que remonta às vanguardas iconoclastas do século 20, banda punk mineira lança seu álbum de estreia com exclusividade pelo Noisey. Escute na íntegra.

O Escalier é uma banda de Belo Horizonte que está levando adiante a proposta já experimentada por outros músicos da cidade nas antigas. Refiro-me ao punk anti-arte do coletivo que foi responsável pelos grupos Saddest Day/Libertinagem/Retórica. Aquela coisa de atuar mais como um disseminador de ideias provocadoras do que como uma banda, nos termos do senso comum. Daí a razão pela qual o álbum de estreia do septeto, Os Ombros Não Suportam Mais o Mundo, ser um disco, uma série de vídeos, a trilha de uma performance, um zine composto por texto e imagem, e uma narrativa literária que se desenrola pelo repertório. O álbum, que o Noisey lança nesta sexta (16) com exclusividade, vai ter show de lançamento às 22h, na Matriz Casa Cultural.

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Formada em 2012 por ex-integrantes de bandas representativas da cidade como Hold Your Breath, Overstate, Backbreaker, Possuídos, Prozac Nation, Piedad, See More Glass e Incerto, o projeto tem influências, no som, de nomes como Neurosis, Godspeed You! Black Emperor, The Espectacle, Refused, Converge, Explosions In The Sky, Cult of Luna e Catharsis. Já as letras, tiram referências de escritores como Sarah Kane, James Joyce, Samuel Beckett, Charles Bukowski e Carlos Drummond de Andrade, dentro outros. A criação deles é toda baseada no plágio, ou seja, confeccionam as músicas-letras-vídeos-imagens a partir de colagens e détournements – aquele conceito gestado no movimento Internacional Letrista, e depois desenvolvido pelos situacionistas. Quem leu o Assalto à Cultura está ligado.

Pelo jeito eles piram na França. Não só a ideia de détournement vem de lá, mas também o nome da banda, que remete à expressão "L'esprit de l'escalier", criada por Denis Diderot. A expressão é usada para definir aquele momento que você pensa numa resposta ótima para uma pessoa, mas a situação já passou - "o pensamento tardio em um contra-argumento que nos aflige quando saímos de uma discussão perdida", reforça o release. Sobre a narrativa das músicas, a história é situada em único dia na vida de um sujeito sem rosto, que sai de casa e começa a caminhar pela cidade confrontando suas próprias escolhas e erros. Mais acerca disso e de outras fitas na entrevista abaixo, respondida pelo Paulo Rocha.

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Noisey: Percebe-se o forte intento da banda em amarrar um projeto narrativo e imagético à música. Isso significa que o grupo está mais para um coletivo criativo do que para um conjunto musical?
Paulo Rocha: Para falar a verdade nunca paramos para pensar nisso, porém, meu primeiro impulso é falar que nós não nos vemos como um coletivo artístico. Digo isso porque, ao menos na minha experiência com esse modelo associativo, na maioria dos coletivos as ligações internas costumam ser bem mais fluídas. Costumo brincar que coletivos são promíscuos, pois os laços são mais abertos e instáveis. Bandas muitas vezes perversamente parecem casamentos… e não, não é um elogio.

Quanto à nossa preocupação com o caráter imagético, narrativo e conceitual, isso vem dos diversos interesses que temos, além da música. O Heverton, por exemplo, escreve, produziu curtas, e agora está trabalhando em seu primeiro filme. O Bruno tem muito interesse por fotografia. Minha formação é em teatro, atuei recentemente em um longa-metragem e me interesso muito por performance e anti-arte. Participo também do coletivo [conjunto vazio]. Viemos todos do punk/hardcore, então essa preocupação com elementos diversos (como os elementos visuais, os zines, textos, os conceitos) tidos como comumente externos ao universo sonoro é visto por nós como algo totalmente atrelado ao som e igualmente importante. O que fizemos com a banda é que ao invés de encará-la como um elemento separado dos nossos outros interesses, queremos que ela atue como um ponto de convergência.

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Como não somos profissionais e nem temos essas pretensões (muito menos a pretensão de sermos "artistas"), podemos nos propor a encarar tudo em um mesmo plano e tentar produzir algo que aposta minimamente numa descentralização do sentido. Importante frisar que tudo isso não tem absolutamente nada de novo, já foi feito e refeito por diversos outros. Digo isto justamente porque tudo pode parecer muito pretensioso, mas só estamos tentando fazer jus às experiências das bandas e artistas que gostamos… Tudo bem que, de maneira bem mais punk/DIY e tosca!

Fala um pouco do conceito por trás da história do sujeito sem rosto que é contada no álbum. Com que tipo de escolhas e erros ele se confronta? E por que ele não tem rosto?
A proposta do álbum conceitual veio primeiramente da nossa sincera vontade de que, ao fazermos shows com o Escalier, não precisarmos ter que assumir "personas" no palco, como por exemplo falar ao microfone mesmo que o público esteja muito perto, agradecer mesmo que sejam só amigos assistindo, apresentar os músicos (como o famigerado: "e agora na bateria/baixo/guitarra…" seguido de um solo). Enfim, veio da negação da obrigação de ter que assumir um caráter distanciado e falso no palco.

Foi por essa vontade que começamos a trabalhar nas possibilidades de agrupar as músicas em um mesmo bloco conceitual e imagético. De maneira igualmente arbitrária e inconsciente foram surgindo elementos como: caminhar, cidade, suicídio, etc. A partir desses elementos criamos uma pequena narrativa sobre um homem que acorda de um sonho ruim, vaga por seu apartamento, caminha até a praia, bebe até cair nos bares, anda pela cidade, volta para a casa e pensa na morte.

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Esse homem não tem rosto porque ele pode ser qualquer um, assim como nós que constantemente nos gabamos por nossas individualidades sem perceber que somos homens comuns, absolutamente nada diferentes uns dos outros. É como o Bloom de Ulysses nas palavras do Comitê Invisível: um ninguém em um tempo sem heróis.

Falando sobre o conceito talvez possa dar a impressão de que é um disco essencialmente narrativo ou cerebral, porém notamos que a necessidade de ter que explicitar essa pequena narrativa no zine e também nessa entrevista veio exatamente por seu caráter obscuro e confuso. Em suma, nem nossos amigos percebiam que havia uma história de fundo!

De que forma vocês integram o diálogo com a performance art, o plágio criativo/collage e o conceito de détournement aos shows? Vocês usam vídeos nos shows? Que tipo de vídeos?
Esses procedimentos são essenciais em nossos shows e na própria constituição do álbum. A partir do uso de elementos já criados por terceiros nos propomos a colá-los, editá-los e desviá-los para os nossos próprios interesses. Alguns poderão dizer que roubamos a "Arte" dos outros, porém o que fazemos é nessa abundância de elementos disponíveis (imagens, sons, textos, ideias, etc) utilizá-los! Como diria Brecht, "tudo pertence a quem melhor utiliza". O que poderia ser um simples procedimento formal ou um delito se transforma em um estilo.

Nossos shows são sobrepostos por vídeos feitos a partir desses processos de collage e détournement, formando camadas de fruição muitas vezes desconexa e estranhos já que nem sempre os sentidos convergem e nem isso nos interessa. Acabamos usando vídeos caseiros a filmes clássicos, videos desconhecidos, documentários, filmes de família, reportagens… enfim, tudo que estava disponível (e reforço: quase tudo está).

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Importante fala que também lançaremos esses videos juntos com o álbum e um fanzine (projeto em parceria com um enorme amigo e artista gráfico Matheus Ferreira) com textos e imagens também desviadas.

Percebo que vocês têm um discurso e proposta próximos das bandas da CrimethInc, tal qual era o próprio Libertinagem. Há alguma influência ou inspiração direta nessa história, no som e nas ideias, ou é apenas uma coincidência?
Primeiro, Libertinagem é uma das grandes bandas de Belo Horizonte, Bruno e eu particularmente gostamos muito. Ainda essa semana dizíamos como a Comuna/Mansão Libertina foi um espaço importante na cidade, além do Coletivo Cisma e suas publicações, o CD do Libertinagem saiu com um zine MUITO bonito lançado pelo Cisma e L-Dopa. O álbum do Libertinagem foi claramente um dos primeiros contatos que tive com as idéias e práticas sobre plágio e détournement.

Sobre a CrimethInc. é igualmente importante porque crescemos lendo seus livros, textos, debatendo suas ideias e escutando Catharsis. Uma banda que saiu pelo selo da Crimethinc e não é tão conhecida mas tem uma forte influência no Escalier é o The Spectacle… o Fabrício sempre faz questão de tocar alguma música deles no ensaio.

Tanto a CrimethInc., Catharsis, Espectacle, Libertinagem, zine O Idealista, Saddest Day, etc. são muito importantes pelos passos críticos e estéticos que deram em relação ao meio anarquista e punk/hardcore, além das discussões sobre veganismo/vegetarianismo, amor livre, políticas horizontais e autogestionárias, das revoluções cotidianas, que são temas muito caros a nós. Ainda que não nos declaramos como uma banda diretamente anarquista (por mais que sejamos quase todos no Escalier) ou politicamente panfletária, todas essas questões nos perpassam profundamente e tentamos dialogar cotidianamente com elas.

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Este é o álbum de estreia da banda? Como vocês enxergam a evolução da banda em termos de refinamento estético de 2011, quando o grupo se formou, para cá?
Sim, nunca havíamos lançado nada. Somos totalmente procrastinadores e não profissionais!

Pode parecer clichê, mas acredito que a maior evolução da banda é no campo dos afetos. Sempre digo que o Escalier é só uma desculpa para encontrar os amigos, acho que somos movidos pelo tédio de morar em Belo Horizonte e para isso nos associamos para criar projetos estranhos (é uma banda agora mas poderia ser um filme, uma performance ou um coletivo político).

Digo isso porque passamos por mudanças de integrantes, integrantes indo fazer doutorado, morar fora, longos hiatos sem tocar, sem ensaiar, e o que de fato manteve a banda foi a nossa vontade de encontrar e criar esses espaços de expressão e convivência; a banda é apenas um aspecto dessas relações. Nesses quatro anos o que menos fizemos foi tocar com o Escalier! Sem contar que os meninos ainda estavam envolvidos em outros projetos musicais, o Fabrício tocava no Hold Your Breath (que considero uma das melhores bandas de Belo Horizonte também), o Heverton se juntou depois ao do HYB para os shows de reunião, o Bruno tocando no Possuídos. Foi quando o Heverton lançou seu projeto solo, o See More Glass Project, chamando para seus shows praticamente os mesmos integrantes do Escalier, que reacendeu a vontade de tocarmos juntos e finalmente lançar o álbum.

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Esse enorme tempo acabou mostrando como algumas das músicas que tocávamos envelheceram mal e como outras mantiveram sua potência, foram nessas que focamos. Além do que o próprio conceito do álbum, a feitura dos vídeos, a ideia de lançar um fanzine foram ficando mais claras depois de tanto tempo. Além disso a entrada do Mapuche na banda foi um acréscimo importantíssimo porque além de ser realmente um ótimo músico é alguém muito animado com a banda… lembre-se que somos procrastinadores!

Essas relações são tão importantes que é muito provável que o álbum nunca saísse sem a ajuda dos nossos amigos, isso vai da produção/gravação do álbum passando pela parte gráfica. Sempre contamos com algum tipo de amparo e isso é para nós a base do "faça você mesmo", já que somos proletarizados e dificilmente temos dinheiro para investir em nossos projetos, conseguimos produzir através dessa rede de apoio.

Todas essas coisas soam bem clichê de banda… e é, mas é como eu me sinto!

Numa época em que os magnatas da indústria musical empenham-se em novas formas de capitalizar em cima de direitos autorais, vocês fizeram um projeto inteiro a partir de colagens e plágios, e sentenciam que "O roubo é o ato sagrado, o caminho distorcido para a expressão". Que tipo de exercício criativo ou crítica mais abrangente vocês propõem com isso?
Note que nossa frase já é um plágio! Acho que a primeira coisa a se atentar é que no capitalismo tudo é mercadoria ou está pronto para ser. De fato há um potencial crítico ao se negar a reverência da autoria e todo aparato estatal-jurídico-moral que a acompanha, porém o próprio capitalismo já transforma diversas dessas experiências em lucro. Digo isso para dialetizar um pouco essas questões e não superdimensionar um possível caráter subversivo do plágio.

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Não há no Escalier como banda uma reflexão maior ou mais aprofundada sobre isso. Somos inclusive bem descrentes sobre o papel da arte como conscientizadora ou crítica. Digo até mesmo dentro de subculturas como o punk, até onde eu me lembre as pessoas não saem dos shows de hardcore e fazem a revolução. O punk não só foi praticamente incorporado a lógica mercadológica como incontáveis vezes reproduz isso escamoteadamente em micro-escala (nós sequer escapamos dessa lógica pois não há um disco físico mas lançaremos um zine, venderemos blusas, cobraremos por shows, veiculamos nosso material em plataformas comerciais…).

Em que medida disponibilizar tudo online afronta o caráter fetichista da mercadoria? Em que medida há algum tipo de potencial crítico em nossos discursos ou práticas? Eu não faço a menor ideia! O que nos propomos mesmo com nossas limitações estéticas e políticas, é lidar com toda a historicidade que nos trouxe até aqui. Isso é, dialogar com o que achamos mais crítico e avançado no passado e presente.

Nossas pretensões ainda são bem modestas, somos apenas uma banda punk. (Isso não quer dizer que em nossas atuações paralelas não estejamos imersos em diversas críticas-práticas cotidianas ao capitalismo).

Conta um pouco do processo de composição e gravação deste álbum. Alguma curiosidade sobre o passo a passo e a rotina que norteou a produção do álbum para compartilhar com os leitores?
Sempre fomos uma banda preguiçosa que ensaiou pouco, fez ainda menos shows, adiando eternamente gravar e finalizar o álbum. As composições quase sempre surgem com o Heverton mostrando alguma ideia sonora para a banda, a partir dos ensaios as músicas vão ganhando mais elementos e camadas (fico impressionado como essa resposta costuma ser um padrão muito comum entre quase todas as bandas). A pequena diferença no Escalier é que houve um esforço para a consolidação do conceito do álbum, e tudo que isso envolve: vídeos, samplers, textos, ambiências.

A curiosidade do álbum é que ele começou a ser gravado entre 2011 na casa cheia de gatos do nosso amigo e produtor Tiago Caux (que vale ressaltar, sem ele e seu enorme empenho esse disco nunca teria sido realizado). O que culminou com a piada que o nosso álbum se chamaria Chinese Democracy, afinal, como gravávamos um trecho de música a cada ano, em dez anos o disco certamente estaria pronto. Demoramos tanto tempo que o Tiago, a Lígia Milagres (que também gravou guitarras para o álbum) e seus seis gatinhos mudaram para a Alemanha e novamente nós deixamos o álbum de lado, esquecíamos que tinhamos uma banda… devemos ter feito, juro, umas três reuniões ao longo dos anos para marcar a data de lançamento. Que obviamente não foram cumpridas.

Quando finalmente finalizamos as gravações notamos que sem nosso produtor aqui no Brasil e nossa total inaptidão para escutar e manipular nosso próprio trabalho, a melhor coisa a se fazer seria enviar o material para o Yago Phelipe e Adolfo Lothar (ambos tocam no God Demise) para que eles mixassem e masterizassem o álbum. E assim finalmente nossa odisseia tragicômica de quatro anos vai chegando ao fim.

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