A China quer se livrar de seus cybercafés ilegais
Por dentro de Hao Fengjing, um dos cybercafés legais dentro da China. Crédito: MOTHERBOARD

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Tecnologia

A China quer se livrar de seus cybercafés ilegais

O governo chinês quer acabar com um patrimônio cultural do país: a LAN house sujona e cheia de gente viciada em jogos.

Uma jovem de vestido e chapéu roxos, ambos aparentemente afanados do set de filmagens de uma versão barata de Alice no País das Maravilhas, atravessa a sala de reuniões equilibrada em sapatos de salto alto. Isso inspira Wang Dapeng, gerente da rede de cybercafés Wang Yu Wang Ka, a tirar seu celular do bolso e me mostrar seu novo app.

A tela exibe fotos de várias garotas, incluindo a senhorita que acabou de passar por nós. Ao lado de cada cara sorridente, há uma idade, classificação (de um a cinco) e preço por hora.

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"Os clientes podem usar esse app para escolher com qual dessas garotas eles querem jogar videogame", diz Wang enquanto conversamos na sala de funcionários de uma das unidades do café em Sanlitun, uma das áreas comerciais mais movimentadas de Pequim, na China.

"São elas que escolhem os valores", ele continua. "Aquelas que se consideram mais bonitas e melhores jogadoras cobram mais. Os clientes as avaliam como jogadoras e acompanhantes. Um cara rico que não gosta de jogar sozinho pode contratar uma, duas ou até três garotas para jogar com ele. Ele pode criar seu próprio time."

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Pode não parecer um serviço sofisticado, mas esse diferencial é uma das várias medidas que cybercafés de luxo tomam para se diferenciar dos concorrentes que operam na ilegalidade e mancham a reputação da indústria. O problema é tão grave que o governo chinês criou uma operação que visa fechar todos os cafés ilegais do país.

"Estamos fazendo nossa parte para salvar a indústria"

Segundo o Ministério da Cultura da China, existem por volta de 14 mil cybercafés ilegais no país. O Ministério afirma ter revogado dois mil alvarás de funcionamento de cybercafés no ano passado. Foram investidos cerca de 20 bilhões de yuans (US$3.1 bilhões) para acelerar o processo de desmantelamento.

"Embora os cafés localizados em áreas urbanas obedeçam às leis, muitos estabelecimentos localizados em áreas periféricas ou rurais, onde a supervisão é falha, escolhem o lucro acima do cumprimento da lei", publicou a Xinhua, uma agência de notícias governamental, no mês passado. A matéria continua: "A campanha tem como objetivo localizar estabelecimentos que não oferecem um ambiente limpo para seus clientes e promete punir as irregularidades mais graves com a suspensão do alvará de funcionamento".

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Como esse submundo clandestino sobreviveu à ascensão do Wi-Fi? E o mais importante: quem o frequenta?

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Fundada em 1998, a rede de cafés Wang Yu Wang Ka têm 373 unidades espalhadas pela China, 13 destas localizadas em Pequim. A unidade na qual Wang dá sua entrevista é muito diferente da imagem dos cybercafés ilegais que o governo combate. As paredes e as cabines individuais são de um branco estonteante, com computadores novos da Apple dispostos ao redor de um aquário. Se Steve Jobs tivesse projetado a sala de controle da nave Enterprise, ela seria parecida com isso daqui.

Tudo isso é muito impressionante, mas pergunto a Wang se o aplicativo de compra de garotas não poderia levar a situações desagradáveis entre as funcionárias e seus clientes. O sistema não parece estar de acordo com a nova regulamentação higienista do governo chinês. Mas ele não pareceu estar preocupado com a possibilidade do app criar uma sensação de posse e poder entre os clientes.

"Tudo depende da mentalidade da garota", diz Wang. "O app parece com o WeChat [o maior aplicativo de mensagens da China], as pessoas o usam para conversar. A maior parte dessas garotas é freelancer ou estudante. Elas estão mais preocupadas em jogar do que sair para jantar com os clientes. Depois que jogam umas dez vezes e criam uma relação de amizade, talvez saiam para jantar. Se a garota quiser, podem fazer sexo. A gente não interfere."

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Uma cliente do Hao Fengjing. Crédito: MOTHERBOARD

Menores de idade são proibidos de frequentar os 156.000 cybercafés da China, mas o Ministério afirma que essa lei não é obedecida. Há também outro grande motivo pelo qual é tão difícil defender os cybercafés chineses: há, dentro de cada cabine esfumaçada disposta de forma industrial, um adolescente espinhento que passa dias ali.

A motivação por trás desse ataque aos cybercafés ilegais vai além do desejo de transformar a imagem nerd e nojenta desses lugares em algo mais apresentável. Esse cerco está ligado a indícios de que os cybercafés estão ligados, ainda que muitas vezes perifericamente, a diversos tipos de crimes, desde o acesso à pornografia ilegal e sites de apostas a assassinatos.

Em outubro, três jovens com idades de 11 a 13 anos mataram um professor na província de Hunan. Duas das crianças foram presas alguma horas depois em um cybercafé. E em julho, um garoto de 17 anos de Gongguan, uma cidade na província de Guangdong, foi assassinado em um cybercafé por um colega, que cortou sua garganta após uma briga.

Histórias sobre as infinitas horas que os clientes passam na frente das telas de computador são corriqueiras o bastante para ferir a imagem da cultura de cybercafés da China. Mês passado, a mídia chinesa noticiou o caso de uma mulher de 24 anos da província de Zhejiang que foi encontrada uma década depois de fugir de casa por causa de uma briga de famíla. A jovem foi pega pela polícia depois de usar uma identidade falsa para entrar em um cybercafé. Ela contou às autoridades que vivia de doações e que jogava videogames durante o dia.

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A imagem pública da indústria se tornou controversa depois de 2002, quando 24 pessoas morreram em um incêndio num cybercafé em Haidan, Pequim. O café, que tinha promoções durante o turno da noite, estava sempre cheio de estudantes. O incêndio começou pouco depois das 2 horas da manhã; testemunhas contam que as barras de ferro das janelas prenderam os clientes dentro do café.

"Os pais estão demonizando toda nossa indústria", diz Wang. "O vício em internet entre a população jovem está cada vez mais sério. Mas nosso objetivo é oferecer um lugar saudável, feliz e controlado. Quando o governo tomou conhecimento da nossa proposta, ele viu uma oportunidade, porque nós somos diferentes do resto da indústria. Há alguns anos, o a palavra 'cybercafé' era sinônimo de lugares apertados, sujos, bagunçados e cheios de álcool, cigarros e menores de idade. Estamos fazendo nossa parte para salvar a indústria".

A maioria dos cybercafés ilegais da China cobra cerca de quatro yuans (63 centavos de dólar) por hora de permanência. O Wang Yu Wang Ka está tentando impor uma distância equivalente à Grande Muralha da China entre esses estabelecimentos e suas lojas: cobra entre 13 a 20 yuans por hora em um ambiente confortável e com equipamentos de última geração.

A rede possui salas de vídeo com telões criadas para abrigar torneios de jogos profissionais, um dos maiores filões da indústria. Enquanto Wang checa o perfil dos melhores jogadores dos últimos torneios em uma tela touch screen à la Minority Report na entrada do café, os funcionários penduram cartazes enormes para anunciar a próxima competição. Graças ao sucesso entre o público mais rico, eles estão tendo facilidade em cumprir as novas exigências do governo; além disso, a empresa criou um lugar de encontro para a comunidade gamer. Os negócios vão muito bem, obrigado.

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O cybercafé Hao Fengjing, localizado a alguns quilômetros ao oeste do Wang Yu Wang Ka, é um pouco mais simplório do que seu parente chique. É proibido fumar dentro do café desde junho, quando o município lançou uma medida anti-tabagista, mas o odor dos anos de fumaça ainda ronda o lugar. Grupos de gamers controlam goblins e orcs enquanto o gerente Dong Peng entra em um pequeno escritório cheio de arquivos e cofres velhos.

Na China, onde as autoridades se esforçam para destruir qualquer forma de dissidência, poucas pessoas, especialmente dentro do setor comercial, se dispõem a criticar o governo. Dong se limita a dizer que as novas regras do governo para os cybercafés são "um pouco injustas" com estabelecimentos legais como o dele. Há cinco anos, a rede possuía cinco unidades em Pequim. Hoje só sobraram duas.

"Quando alguém passa 24 horas jogando sem parar, pedimos que ele tome um banho em uma pensão próxima com a qual temos parceria"

Dong diz que, no entorno de Pequim, longe do olhar vigilante das autoridades, é comum encontrar cybercafés que aceitem menores de idade. Ele trabalhou muito duro para adequar seu café às novas leis, embora admita que, considerando que ele cobra quatro yuans por hora, ele não atrai a mesma clientela rica do Wang Yu Wang Ka. Seus concorrentes não são os cybercafés chiques, e sim os cafés ilegais.

"Concordo que a indústria tem uma imagem problemática", diz. "O governo está se esforçando para regularizar esses estabelecimentos, mas é um processo complicado."

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Muitos clientes parecem estar ainda presos às antigas tradições que estão sendo combatidas pelas novas medidas. O fato de que eles podiam beber, fumar e cuspir livremente nesses estabelecimentos era um grande atrativo para os consumidores.

"Nunca sei como um cliente vai se comportar", conta Dong. "Se ele insiste em fumar mesmo depois de ser informado que existe um local específico para fumantes no andar de baixo, ou se ele começa a cuspir no chão mesmo depois da faxineira limpar o café, não sabemos o que fazer".

Um cliente da Hao Fengjing. Crédito: MOTHERBOARD

Para tentar manter um espaço menos pungente e se manter de acordo com as novas regras sanitárias, Dong tem que forçar os jogadores mais ferrenhos a tomar banho. "Quando alguém passa 24 horas jogando sem parar, pedimos que ele tome um banho em uma pensão próxima com a qual temos parceria", conta. "Fazemos isso com vários clientes, entre oito a dez por dia. Quando eles não obedecem, desligamos o computador à força".

Os cybercafés chineses dependem mais dos gamers do que dos usuários de internet; assim, eles oferecem telas maiores e espaços mais confortáveis do que, digamos, um Starbucks. Mas a difusão do Wi-Fi e o crescimento dos consoles portáteis, somados às novas leis, têm dificultado o funcionamento de lugares como o Hao Fengjing.

Tenho a impressão de que as autoridades gostariam de sumir com todos esses estabelecimentos — ou pelo menos transformá-los em pólos ultra-tecnológicos como o Wang Yu Wang Ka. (Wang acredita que as novas medidas do governo "são benéficas".) Mesmo que as medidas do governo consigam de fato acabar com os cybercafés espalhados pelo país, isso não justifica a perseguição desnecessária a estabelecimentos de menor porte como o Hao Fengjing.

Dong afirma que, apesar do estereótipo do gamer introvertido associado aos cafés, seu negócio é também um centro de socialização. Ele criou um fundo monetário para ajudar clientes antigos — muitos dos quais seus grandes amigos — em situações de emergência.

"Tenho clientes que frequentam o café há 15 anos", conta. "Agora estamos no inverno e muitos deles não têm aquecimento em casa. Eles preferem ficar aqui, onde eles podem sentar no sofá, ver um filme e dormir um pouco."

"Sim, os negócios vão mal", admite Dong. "Mas a gente segue as regras."

Tradução: Ananda Pieratti