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‘Gilmore Girls’ é uma série sobre como é difícil ser mulher, avó, mãe e filha

Enquanto o termo “sororidade” é embelezado e constantemente esvaziado, a relação das mulheres Gilmore é um lembrete de como essa relação de fato se dá.

Emily, Lorelai e Rory, três gerações de mulheres Gilmore na nova temporada da série que vai ao ar no Netflix. Foto: Divulgação.

No começo dos anos 2000, quando eu era adolescente Gilmore Girls passava dublado no SBT sob a alcunha de Tal Mãe, Tal Filha.O primeiro e único episódio que assisti envolvia Lorelai Gilmore dando uma voltinha por Stars Hollow com a filha enquanto disparava um número impraticável de palavras por segundo sobre não usar calcinhas em público. A dublagem mal conseguia acompanhar a dicção daquela personagem; eu, do alto dos meus treze anos, fiquei impressionada com a eloquência daquela mulher que poderia ser minha mãe, mas não agia como tal.

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Eu fiquei negativamente impressionada.

Essa cena, que deve ter durado no máximo um ou dois minutos, bastou para que eu decidisse que Gilmore Girls era mulherzinha para mim; decisão que mantive por 16 anos, mais ou menos até o revival da série agora disponível no Netflix ser anunciado junto com opiniões positivas e bem embasadas que começaram a aparecer de forma consistente por aí.

A verdade é que há falhas de Gilmore Girls. Era outra época, claro, e não havia a preocupação de hoje com a exibição em HD do material; a neve de Stars Hollow é claramente feita de espuma, a maquiagem das personagens só aparece boa em vídeo, os travellings são tão malfeitos que a qualidade da imagem muda conforme a câmera é trocada. Sem falar dos furos no roteiro: Lorelai e Rory se entopem de hambúrgueres e pizzas todos os dias e não engordam, talvez por terem o hábito de largar refeições gordurosas no meio para resolverem crises sempre tão urgentes, sempre tão frívolas, que marcam o cotidiano de sua cidadezinha mágica.

Esse clima fantasioso tornou a série muito atraente para adolescentes. Não para os adolescentes com quem convivi: a gente preferia Buffy porque ela sentava a porrada na vampirada. Mas, assim como a gente gostava ativamente de Buffy pela porradaria e não pelo subtexto sobre autonomia feminina, dá para entender o apelo de Gilmore Girls. Rory é uma garota inteligente, comportada e organizada que sonha em ir para Harvard receber a educação Ivy League que merece. Lorelai é uma linda mulher de trinta e poucos anos que cria a sua filha sozinha com um emprego cheio de horários vagos, garantindo um salário bom o bastante para ambas morarem numa casa enorme com um piano na sala e nunca prepararem as próprias refeições. Emily, a mãe com quem Lorelai mantém uma relação afastada, é uma socialite rígida que preza por convenções sociais em detrimento da felicidade da sua família, e só aceita pagar a prep. school — que leva o convenientemente aristocrático nome de "Chilton" — da sua neta mediante visitas semanais das duas à sua mansão em Hatford (outro nome chique, vejam só).

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Mas o foco de Gilmore Girls não é mostrar o quão perfeitos são os sonhos de Rory, a vida prática de Lorelai e as expectativas de Emily. É preciso dar uma dimensão maior para essas personagens sem se deixar seduzir pela atmosfera açucarada que a televisão do começo dos anos 2000 fazia questão de retratar.

Gilmore Girls não tem esse nome à toa. A série é sobre três mulheres de uma mesma família e suas interações entre si. Os homens aparecem como acessórios: Richard, o pai de Lorelai, é um senhor adorável e distante, que mal ergue os olhos do jornal para participar dos diálogos entre as mulheres da sua família. Os namoradinhos de Rory são tão irrelevantes que a criadora da série Amy Sherman-Palladino recentemente fez um apelo aos fãs pedindo para que parem com a obsessão tosca em torno desses personagens secundários. As atenções são intencionalmente voltadas para Emily, Lorelai e Rory e sobre como é difícil, tortuoso e cansativo ser mulher, avó, mãe e filha. Mesmo sendo uma mulher… Gilmore.

Mas o que é ser uma mulher Gilmore?

Em primeiro lugar, envolve falar rápido. Rápido e espirituoso demais.

Em 2005, já na faculdade de comunicação, comentei com uma colega sobre como Gilmore Girls era irritante, e ela concordou, acrescentando que esse papo de mãe e filha serem melhores amigas e dividirem diálogos perfeitos entre si era bem difícil de engolir. É uma leitura muito superficial sobre a série, mas não deixa de ser verdadeira. Os diálogos das mulheres Gilmore não são apenas rápidos e artificiais; eles seguem uma estética comum em peças de teatro e comédias high brow, e reúnem uma quantidade impossível de referências bastante específicas sobre cultura pop e literatura erudita; tanto que, em dado momento, até a Xuxa foi citada. Isso cria uma resistência comum em relação a uma série que deveria retratar relações humanas, ainda que não pareça protagonizada por seres humanos. Stars Hollow é habitada por personagens que se comunicam com cadência literária, e passar por cima disso pode ser difícil, ainda mais quando o compensado dos cenários nos faz lembrar que aquele ambiente não corresponde em nada à realidade.

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Só que, mesmo com tanta coisa aparentemente fora do lugar, a série funciona.

Gilmore Girls é uma série sobre como certos comportamentos se repetem por gerações, e segue fórmulas comuns na ficção coming of age, mas também consegue quebrá-las. Nos os últimos dez minutos do nono episódio da primeira temporada (Rory's Dance) provam que um bom roteiro consegue dissipar as críticas que são feitas (com razão) à série.

Nesse episódio Rory vai para um baile na sua escola chique usando um vestido de cetim azul feito pela sua própria mãe em poucos dias. Ela leva seu chichisbéu (sim, a palavra gentleman caller é corretamente traduzida por esse termo arcaico o qual só me deparei duas vezes além de Gilmore Girls: por parte da minha mãe, ao se referir aos meus namoricos na adolescência, e em Machado de Assis) e é fotografada pela sua avó, que passa a noite na casa da filha. No baile, Rory sedimenta sua relação com o chichisbéu e ambos adormecem, pudicamente, num prédio da vizinhança, com um livro da Dorothy Parker entre os dedos. Porém, Rory é uma adolescente, e deveria estar em casa à meia noite; Emily se levanta de sobressalto de manhã, acorda Lorelai e ambas entram em pânico enquanto tentam lidar com o fato de a menina estar desaparecida ou transando por aí. Ambas reagem mal, e de forma muito particular, nessa situação de estresse, e a leveza da noite em que a Emily finalmente parece ter conseguido se aproximar de Lorelai desaparece entre acusações mútuas de irresponsabilidade. Rory entra em casa pela porta dos fundos, consegue evitar a avó e agradece à mãe por tê-la defendido das acusações de Emily; mesmo assim, Lorelai grita com a filha, repetindo o comportamento da mãe que ela tanto critica.

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Em dez minutos a série consegue dizer a que veio, e transforma um episódio comum em qualquer ficção sobre meninas que se tornam mulheres — um baile na escola! — numa lição sobre como é difícil ser mãe e companheira da sua filha. É verdade que Rory e Lorelai são melhores amigas, e isso é tão difícil de engolir quanto minha colega de faculdade corretamente pontuou, mas a amizade entre elas é infinitamente mais complexa (e bem caracterizada) do que parece ser. Em tempos em que o termo "sororidade" é embelezado e constantemente esvaziado, a relação das mulheres Gilmore é um lembrete de como essa relação de fato se dá. Elas são mãe e filha, e apesar de Lorelai se esforçar em construir um relacionamento horizontal, é quase impossível não falhar: autoridade, codependência e conflitos em relação aos seus papéis sociais sempre vêm à tona no final. Rory está crescendo, e Lorelai precisa aprender a lidar com sua filha assim como Emily precisa aprender a lidar com Lorelai sem romper os vínculos que as unem.

Em Gilmore Girls mães e filhas refletem sobre si de um jeito que é quase impossível ver na televisão.

Rory não é uma menina perfeita. Ela falha, e falha diversas vezes, assim como a sua mãe e a mãe de sua mãe falham. A repetição é necessária; Lorelai se manteve afastada por anos por não compartilhar a visão de mundo da sua mãe, mas é essencialmente controladora como Emily. Rory se enrola com seus próprios sentimentos de forma tão patética que a opinião de Lorelai sobre o quão amadurecida é sua filha adolescente claramente não se justifica. Lorelai tenta provar para si mesma que é uma mãe melhor que Emily; Emily critica a filha, mas tenta, do seu jeito, fazer parte do mundo que ela criou em torno de si; Rory tem a idade que Lorelai tinha quando engravidou da filha.

Essas representações de relações reais entre mulheres de uma mesma família tornam uma história que poderia ser bem bobinha em entretenimento de qualidade.

E, assim como Rory também errou tantas vezes aos 16 anos, eu estava errada sobre Gilmore Girls. Essa não é uma série mulherzinha demais para mim. A verdade é que a maternidade é um rolê foda pra caralho, e a gente só se dá conta disso conforme o tempo passa. Então, se você desistiu da série por causa do tom irreal, pela quirkiness irritante dos cenários e pelas notas de rodapé que a criadora da série chama de diálogos, dê uma segunda chance.Você não vai se arrepender.

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