O trigo como arma de guerra na Síria

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O trigo como arma de guerra na Síria

Como o regime sírio, rebeldes, jihadistas e ONGs estão lutando pelo controle de um dos principais recursos do país.

Nota do editor: Essa é a primeira parte da nossa série de três matérias — originalmente publicadas no MUNCHIES US — sobre o papel fundamental que sementes, trigo e pão desempenham na crise atual na Síria, como relatado pela jornalista Emma Beals. Aqui, Emma conta como o trigo sírio tem estado no coração do conflito desde o início.

Esta matéria foi originalmente publicada na edição impressa de junho da revista VICE.

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O catalisador da guerra civil síria, e o papel que vários produtos têm desempenhado nela, tem sido muito debatido, mas desde o começo do conflito, sementes, trigo e pão estão no coração do problema. Focar apenas no petróleo como o recurso mais poderoso e influente é negligenciar a importância do suprimento de alimentos do país e o poder exercido por quem controla essa indústria.

"Está faltando comida", disse Abu Wael, um morador da zona rural de Homs, uma das primeiras regiões a se revoltar contra o governo do presidente Bashar al Assad em 2011. "Está assim nos últimos quatro anos, e está piorando. Pão é fornecido a cada três ou quatro dias. Antes estava disponível diariamente. Não temos uma rota regular de trigo ou pão." Apesar de várias resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (UNSC) sobre acesso humanitário e bilhões de dólares em auxílio global, o governo da Síria ainda controla boa parte do fluxo de alimentos para os cidadãos do país, mesmo os fornecidos por ONGs internacionais.

Acesso a comida é uma arma de guerra na Síria. Assad já usou táticas de cerco para fazer áreas lideradas por rebeldes passarem fome, e seu exército já bombardeou em ataques aéreos filas do pão e padarias. Conforme a guerra piorava, o acesso limitado à agricultura e ao ciclo de produção de alimentos fez o país antes autossustentável depender de importação de trigo e outros produtos alimentícios — facilitada pela Rússia, Irã e aliados militares — para alimentar a população de áreas controladas pelo governo. Esse apoio é sem dúvida tão útil quanto o apoio militar de outros países ao regime de Assad.

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Ainda assim, nas áreas sitiadas e no norte da Síria, grandes ONGs internacionais estão trabalhando ao lado de grupos locais para enfrentar o controle do ciclo de alimentos, tentando derrubar o sistema centralizado e comandado pelo governo e devolver aos civis o controle de sua subsistência.

"A Síria é a intervenção humanitária mais complicada da história, na minha opinião", disse Daniele Donati, vice-diretora da Divisão de Alimentos e Agricultura de Emergência da ONU (FAO). "Estamos falando sobre uma crise de alimentos. Estamos falando de uma crise de vida. Estamos tentando apoiar as pessoas para que elas não tenham ainda mais uma razão para abandonar suas terras."

A Fundação Humanitária IHH, uma ONG de Reyhanli, Turquia, fornece pão aos sírios. Várias organizações estão trabalhando para alimentar a população deslocada e reconstruir a infraestrutura agrícola do país. Todas as fotos por David Hagerman.

"A principal razão para as pessoas deixarem suas casas são os ataques aéreos", disse Rami Alkatib, um trabalhador sírio que hoje atua no sul da Turquia. "Mas se apoiarmos a agricultura, podemos manter as pessoas em suas áreas. A maioria das zonas sob controle da oposição são áreas agrícolas. Você tem ataques aéreos à produção de alimentos no solo, então não tem como as pessoas ficarem [nessas regiões]." Segundo Donati, resolver o problema da agricultura na Síria vai além de alimentar os famintos; é um veículo para a paz.

O principal alimento da Síria é o pão. Os sírios comem seu pão achatado e redondo, geralmente vendido em dúzia, em praticamente toda as refeições. Historicamente, o país sempre teve um sistema centralizado sobre sua fonte principal de alimento; o governo fornecia sementes, subsidiava a produção de trigo, comprava as safras e regulava a produção de trigo, junto com a produção e venda de pães. Investimentos do governo de Assad e de ocasionais parceiros comerciais de outros países, como a Nestlé, tornaram a Síria um país com "alimentos assegurados" no final do século 20. A nação estava produzindo trigo suficiente para a população sem necessitar de importações, o que era visto como um sucesso numa região instável e árida.

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Mas entre 2007 e 2011, desastres ambientais assolaram o país e a seca afetou pesadamente o setor agrícola. A produção de trigo caiu 50%, e o preço dos alimentos subiu quase um terço apenas em 2008. Apesar de uma breve recuperação depois de uma colheita particularmente fraca, a combinação de rendimentos mais baixos, custos mais altos e políticas oficiais que continuavam focadas na liberalização do mercado deixou muitos trabalhadores rurais desempregados, e no começo de 2011, as pessoas saíram às ruas. O descontentamento rural geralmente não é visto como a causa da revolução, mas o impacto da seca no interior aumentou o apoio aos protestos contra o regime.

Logo depois, Assad realizou algumas reformas no setor agrícola: desacelerou as privatizações, aumentou subsídios, perdoou dívidas agrícolas e montou fundos de emergência para os pobres das áreas rurais. Para manter os consumidores felizes, o regime começou a importar trigo do Leste Europeu para atender à demanda, mas não foi suficiente.

Quando os protestos deram lugar a uma guerra total, e o país tentou se ajustar à interrupção repentina na vida diária, o governo bolou uma estratégia devastadora para combater as forças rebeldes: ele bombardeou as longas filas nas padarias causadas pela escassez de trigo em áreas contestadas. Esses ataques continuaram por todo o conflito. Num incidente recente, um ataque aéreo russo teria atingido uma padaria que fornecia pão para aproximadamente 45 mil pessoas.

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Voluntários distribuem pão fresco para refugiados sírios um vilarejo nos arredores de Reyhanli. Alguns trabalhadores de ONG têm que pagar os soldados para chegar até áreas sitiadas.

O regime e os rebeldes lutam por território, incluindo silos de grãos e padarias nas regiões nordeste do país, e quando os jihadistas viram uma oportunidade para o caos, eles também tentaram controlar esses recursos vitais. Os arquivos de Haji Bakr, um chefe do Estado Islâmico, conseguidos pela Der Spiegel, indicam que o Estado Islâmico tinha um plano detalhado para tomar o controle do maior moinho de farinha do norte da Síria. Quando conseguiu, o grupo aplicou uma abordagem tipicamente disciplinada para o ciclo de produção, numa tentativa de alimentar as populações das áreas que controlavam e assim ganhar seu apoio.

Os vídeos de propaganda do Estado Islâmico louvam as virtudes de sua produção agrícola, com tomadas mostrando silos cheios de sementes, fazendeiros trabalhando em campos bem irrigados e trabalhadores descarregando sacos de grãos para fazer pão. Ainda assim, uma filmagem feita por um grupo rebelde rival parece desmascarar a propaganda agrária do EI. O vídeo, cuja autenticidade ainda não foi confirmada, sugere que o EI está fazendo um negócio sujo e vendendo os grãos de volta para o regime. O que não é tão improvável assim, isso porque em 2013, antes do EI se declarar uma entidade no país, forças rebeldes e do regime na província de Idlib conseguiram entrar numa trégua temporária. Os rebeldes enviavam trigo para o lado do regime para ser moído e recebiam a maior parte de volta em farinha, enquanto o regime ficava com uma parte para si.

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"Os arquivos de Haji Bakr, um chefe do Estado Islâmico, conseguidos pela Der Spiegel, indicam que o EI tinha um plano detalhado para tomar o controle do maior moinho de farinha do norte da Síria. Quando conseguiu, o grupo aplicou uma abordagem tipicamente disciplinada para o ciclo de produção, numa tentativa de alimentar as populações das áreas e assim ganhar seu apoio."

Hoje, as ONGs querem acabar com a necessidade desses comércios e tréguas desconfortáveis, substituindo o antigo sistema de produção centralizado criado pelo governo. Esse sistema, antes sustentável, desmoronou. O estado possui menos de metade das padarias de antes da guerra, as fábricas que forneciam fertilizante e leveduras aos fazendeiros estão fechadas ou foram destruídas, e a distribuição de sementes entrou em colapso (apenas um terço das instalações do ramo agrícola de antes da guerra ainda estão operando). O regime não tem conseguido comprar trigo domesticamente em quantidade desde 2012, devido à perda de terra cultivável para rebeldes e a impossibilidade de transportar grãos para os silos dominados pelo regime.

Por causa disso, o governo de Assad precisa de ajuda humanitária e compra a crédito do Irã e, mais recentemente, da Rússia. Em 2014, por exemplo, o Irã teria enviado 30 mil toneladas de suprimentos para a Síria. Irã e Rússia ganham facilmente contratos para reconstruir a infraestrutura agrícola na Síria, principalmente devido às sanções ocidentais sobre financiamento. Apesar da Síria já ter laços econômicos com os dois estados anteriormente, depois de 2013, essas relações se tornaram essenciais do ponto de vista de segurança alimentar.

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Esse apoio, junto com manipulações iniciais de programas de auxílio da ONU, é essencial para manter a estabilidade em áreas do país controladas pelo governo. Até que a UNSC aprovasse resoluções em 2014 permitindo o cruzamento da fronteira para fornecer ajuda humanitária sem a permissão do governo, projetos de auxílio à agricultura só conseguiam operar em segredo. Ainda assim, o governo nega o acesso de organizações humanitárias a áreas que precisam desesperadamente de ajuda. Em maio, forças do regime do posto de controle final impediram a passagem do primeiro carregamento de auxílio a Daraya desde novembro de 2012.

As manipulações do acesso a alimentos do governo tornam a intervenção humanitária crucial, visando criar um ciclo de alimentos sustentável que não seja patrocinado pelo regime.

Hoje, segundo estatísticas fornecidas pelo World Food Programme, um saco de pão na Síria custa entre duas a quatro vezes mais que antes do conflito — a depender se a padaria é pública ou privada. Ativistas relatam que, em alguns locais, o pão custa dezenas e às vezes centenas de libras sírias, dada a escassez e o custo de fazer o produto chegar até o mercado. Com frequência, o governo pede subornos e cobra "imposto" nos postos de controle nas estradas, na forma de confisco de produtos, o que aumenta ainda mais os preços e a própria escassez.

Tradicionalmente, agências humanitárias ajudam populações deslocadas fornecendo alimentos, mas hoje, os programas variam de irrigação e esforços agrícolas — incluindo germinação de sementes — até moagem, reconstrução de moinhos destruídos e fornecimento de farinha para padarias. O problema foi de simplesmente trazer suprimentos para estabilizar os preços e a distribuição do produto final.

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"Tradicionalmente, agências humanitária ajudam populações deslocadas fornecendo alimentos, mas hoje, os programas variam de irrigação e esforços agrícolas — incluindo germinação de sementes — até moagem, reconstrução de moinhos destruídos e fornecimento de farinha para padarias."

Esse é um processo complicado. Rami Alkatib disse que para vários dos projetos estabelecidos no sul da Turquia, sua organização encontra sementes em áreas do governo e depois as contrabandeia para áreas sitiadas. Alkatib e Abu Wael me disseram que precisam lidar com mercadores e soldados corruptos para entrar nessas áreas, e que o financiamento para seus programas é pequeno. A FAO por exemplo, informou que seus projetos agrícolas de emergência receberam 70% menos do que precisavam ano passado, significando que as intervenções estão longe da perfeição. "Estamos falando da segunda melhor solução", disse Donati. "Numa situação onde o acesso é tão instável."

Mas esses trabalhadores humanitários ainda acreditam que seu foco na criação de trabalhos agrícolas para remediar a escassez vai resolver a questão do deslocamento. Alkatib disse que vê famílias voltando de acampamentos de refugiados na fronteira com a Turquia para onde há comida disponível. "Há um impacto", ele disse. "Temos notícia de sessenta a oitenta famílias voltando para a área por causa da autossuficiência." Projetos de hortas permitiram que residentes se tornassem autossuficientes, mesmo quando suprimentos básicos, como farinha de trigo, não estão disponíveis por causa dos bloqueios. "Agora eles estão fazendo pão com outras sementes. Antes faziam com farinha. Agora estão usam triguilho e outras ervas."

Na zona rural de Homs, Wael montou um programa de cultivo de trigo onde as sementes e moinhos já existiam, mas não estavam atendendo as necessidades da área. Mesmo contando com sementes e moinhos, a falta de combustível continua um obstáculo, já que ele é necessário não apenas para transporte de matéria-prima, mas para colocar os geradores de energia dos moinhos e padarias em funcionamento.

Além de necessidades de consumo locais e de fornecer um modo de vida aos residentes, cuidar nas plantações e parte integral da estrutura social. Organizações civis, como os Comitês de Coordenação Local da Síria, enxergam o trigo e o pão como a melhor maneira de cobrar impostos e taxas, que pagam por serviços para a população. "Para as áreas sob controle da oposição, eles estão fazendo o possível para se sustentar por nove meses do ano ou algo assim", disse Alkatib. "Os conselhos locais estão gerando renda tendo o controle sobre as padarias e a venda para pagar o trigo que estão comprando de fazendeiros locais."

Não é segredo que Wael e Alkatib, e suas ONGs parceiras, copiaram a estratégia dos jihadistas para tentar ganhar o apoio da população com trigo e pão. Mas mais importante, eles estão trabalhando para que os sírios médios, os mais impactados pela guerra, tenham controle sobre sua subsistência. Resoluções de paz ou outra solução política continuam fora de alcance, mas Wael me disse que tem orgulho de "trazer vida e um ciclo de atividade para a comunidade e restaurar o equilíbrio natural", mesmo que em pequena escala. Quando você vive sitiado, um pouco de normalidade significa muito.

Informações adicionais por Paul Mutter.

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