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'Chi-Raq' É tão Louco Quanto você Esperaria de um Musical de Spike Lee Sobre Violência Armada

O diretor está de volta aos holofotes, fazendo o tipo de filme de confronto frustrante de que só ele é capaz.

Há muito tempo um cronista da experiência negra norte-americana em filmes como Faça a Coisa Certa (1989), Malcolm X (1992) e Todos a Bordo (1996), Spike Lee volta sua atenção agora para uma questão social urgente: violência armada. Essa é uma preocupação nacional nos EUA – casos chocantes acontecem todos os dias –, mas, em seu novo filme, a comédia musical Chi-Raq, Lee localiza sua história numa das áreas mais afetadas pelo problema: a região predominantemente afro-americana de South Side, em Chicago.

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Alguns moradores de Chicago reagiram com horror ao primeiro trailer do filme, temendo que Lee, um nova-iorquino, estivesse banalizando um problema sério. Num sinal desanimador dos nossos tempos, jornalistas destruíram o longa-metragem em artigos de opinião raivosos antes mesmo que qualquer um tivesse assistido a isso. Entretanto, Lee está familiarizado com esse tipo de polêmica: em 1989, analistas como o colunista conservador Joe Klein previram erroneamente que seu filme mais conhecido, Faça a Coisa Certa, iria provocar tumultos entre os jovens espectadores afro-americanos.

No caso de Chi-Raq, o diretor, claramente irritado, respondeu às críticas lançando um trailer no qual insiste que o filme é sério e satírico. (Esse é um caso curioso em que a vida imita a arte: no começo do longa de Lee de 2000 A Hora do Show, o protagonista explica o significado de sátira para o público – será que Lee imaginava que um dia teria de fazer o mesmo?) Ele também rejeitou categoricamente pedidos, como o do prefeito Rahm Emanuel, para mudar o título, um trocadilho com Chicago e Iraque cunhado pelos locais para conotar a volatilidade da área.

Chi-Raq também é o nome do personagem interpretado por Nick Cannon, no qual a tragédia, a violência e as aspirações da cidade são sublimadas. Chi-Raq é um rapper talentoso e líder da gangue roxa Spartans. Seus rivais, os Trojans, que usam laranja, são comandados por Cyclops (Wesley Snipes de tapa-olho). "Pray 4 My City", o rap cantado por Cannon que abre a película, estabelece o tom triste e revoltado. Talvez fazendo referência ao clipe de 1987 de Prince "Sign O the Times", a letra aparece em vermelho na tela preta enquanto é cantada por Cannon: "Too much hate in my city / Too many heartaches in my city / But I got faith in my city".

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O enredo irônico de Chi-Raq é uma atualização audaciosa e fiel da peça de 411 AC de Aristófanes Lisístrata, em que a personagem homônima convence suas colegas a parar de fazer sexo para acabar com a Guerra do Peloponeso. Aqui, a morte de uma menina por uma bala perdida é o catalisador da greve de sexo liderada pela namorada de Chi-Raq, Lysistrata, interpretada pela carismática Teyonah Parris, de Querida Gente Branca.

No contexto da carreira de Lee, Chi-Raq é um paradoxo: algo totalmente diferente do que ele fez antes e um compêndio abrangente de seus tiques estilísticos e suas obsessões temáticas. O abismo entre o assunto sério e a abordagem não ortodoxa nunca foi mais profundo e desafiador. Ele já tinha feito um musical antes – Lute Pela Coisa Certa (1988) –, porém sua exuberância se adequava bem ao conto de estudantes corajosos na guerra e no amor. Já seu drama nova-iorquino Irmãos de Sangue (1995) era caracterizado pelos visuais sóbrios e pela abordagem tonal, fora algum floreio estilístico ocasional.

Numa tentativa de equilibrar tragédia e comédia em Chi-Raq, Lee joga muita coisa na parede esperando que alguma coisa grude. É uma experiência cinematográfica estranha: num momento, você sente um nó na garganta quando a mãe enlutada (Jennifer Hudson) limpa a poça de sangue da filha morta; no seguinte, você vê o proprietário de um clube de striptease de olhos esbugalhados (Dave Chappele) gritando que "essas putas" – as grevistas – "literalmente derrubaram a rede elétrica dos pintos!". E essas transições não são suaves, embora Lee mereça crédito por se arriscar nessa justaposição rude de comédia obscena e tristeza profunda, endêmica da experiência urbana negra.

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Chi-Raq também é uma sobrecarga brechtiana, obrigando o espectador a reconhecer sua artificialidade (nos figurinos e cenários espetacularmente estilizados) e mostrando seu caráter documental ao mesmo tempo. Depois do rap de abertura de Cannon, uma enxurrada de estatísticas sobre violência armada inunda a tela, seguida pela narrativa da vida nas ruas do pastor real de Chicago Michael Pfleger, interpretado no filme por John Cusack. Em seguida, somos apresentados a Delomedes (Samuel L. Jackson), o coro de um homem só que contextualiza a narrativa em monólogos alegres diretamente para a câmera. (O papel lembra seu personagem focal DJ Mister Señor Love Daddy em Faça a Coisa Certa.) A maior parte do diálogo é entregue em versos rimados, com resultados mistos. Para cada dístico ironicamente engraçado, outros parecem tirados do hinário "Meu Primeiro Rap": "Da Greek Aristophanes penned a play satirizin' his day / And in the style of his time, ' Stophanes made dat shit rhyme!"

Apesar da fonte de Chi-Raq ser de séculos atrás, Lee e o corroteirista Kevin Willmott se esforçaram para definir sua atualidade. Eles encheram o roteiro com referências a incidentes recentes de racismo, incluindo menções a George Zimmerman, Michael Brown, Eric Garner, Sandra Bland e até Dylann Roof, o atirador do massacre na igreja de Charleston em junho deste ano. Apesar disso, não é possível sentir uma ideologia consistente por trás de Chi-Raq além de seu desespero geral com a existência da violência armada.

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Uma longa elegia de Cusack define uma crítica social, situando a violência de gangues e a brutalidade policial dentro de um contexto maior de subdesenvolvimento econômico e racismo estrutural. O discurso é uma tréplica crucial para noções simplistas de "crime entre negros", mas a sequência parece estranhamente divorciada da narrativa geral. Lee parece criticar a política de respeitabilidade "levante as calças" (na forma de um oficial negro pomposo interpretado por Harry Lennix) ao mesmo tempo em que a abraça: Chi-Raq literalmente levanta as calças em certo ponto, e há referências no roteiro a "genocídio autoinfligido". A política sexual do longa também é confusa. Chi-Raq mostra algo novo, particularmente no contexto do cinema pudico de Hollywood, por retratar francamente o sexo como uma necessidade básica humana e uma fonte de bem-estar. Só que isso é contrabalanceado por uma sensação de comédia baixa – que não ajuda o registro da política sexual de Lee (por exemplo, a comédia de tom lésbico Elas Me Odeiam, Mas Me Querem) – que reforça a ideia de que o diretor realmente vê uma greve de sexo como uma solução viável. Pelo menos foi isso que ele disse numa entrevista recente, uma opinião desmantelada por Ta-Nehisi Coates num artigo contundente para o Atlantic. Coates comparou a ideia de Lee aos pedidos para que as mulheres parem de usar minissaias para evitar estupros. O diretor tinha satirizado o desejo sexual masculino de maneira mais efetiva numa única montagem de seu filme de estreia She's Gotta Have It (1986).

No entanto, em última análise, apesar das deficiências de Chi-Raq, é uma alegria experimentar Lee abordando de novo um assunto pelo qual ele é apaixonado – e apoiado por um orçamento considerável (US$ 15 milhões da Amazon Studios, a primeira produção deles). Os últimos três filmes de Lee – o remake triste de Oldboy, de Park Chan-Wook, ensanduichado entre duas produções de micro-orçamento: Verão em Red Hook e Da Sweet Blood of Jesus – tinham transmitido uma sensação preocupante de estagnação criativa. Agora, Spike Lee está de volta aos holofotes, fazendo o tipo de filme de confronto frustrante de que só ele é capaz.

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Tradução: Marina Schnoor.

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