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Como é ser traficado e escravizado no Reino Unido nos dias de hoje

Falamos com um homem húngaro que viveu sob um sistema de trabalho escravo na Inglaterra e depois de conseguir a liberdade passou a ajudar outras pessoas na mesma situação de escravização.

É quase impossível estimar a verdadeira escala da escravidão moderna no Reino Unido.

Os escravos de hoje trabalham e moram ao nosso redor, geralmente traficados para dentro do país, mesmo com a sua exploração escondida estando bem à vista de todos. Os traficantes confiscam os passaportes e os documentos, deixando essas pessoas impotentes num país onde elas não têm uma rede de apoio e não falam a língua nativa. É basicamente impossível saber o que está acontecendo sem que as vítimas contem o que estão passando, e a pergunta "Você está sendo escravizado?" não costuma surgir nas conversas normais.

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Em 2015, as autoridades britânicas identificaram 3.266 vítimas de tráfico humano, um aumento de 39% se comparado com o ano anterior, que já tinha mostrado um aumento de 34% em relação a 2013. No pior dos casos: mais pessoas estão sendo traficadas. No melhor dos casos: as autoridades estão conseguindo libertar mais vítimas. De qualquer maneira, está claro que o tráfico e a escravidão são problemas consideráveis no Reino Unido hoje. O parlamento inglês aprovou uma nova lei — a Modern Slavery Bill — em 2015, especificamente para ajudar as autoridades a lidar com o problema.

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Muitos dos casos modernos de escravidão que viram manchete nacional estão relacionados com servidão doméstica: pessoas sendo mantidas em residênciass e forçadas a fazer trabalhos domésticos sem remuneração, como as três mulheres libertadas em 2013 após 30 anos em que passaram dentro de uma casa de Lamberth [um bairro no sul de Londres], ou a mulher de 28 anos resgatada de Rochdale [em Manchester] no início de fevereiro.

O que recebe menos atenção da mídia são casos nos quais as pessoas traficadas são colocadas em empregos regulares, mas são os seus captores que ficam com os salários. É uma ocorrência surpreendentemente comum e levanta todo tipo de pergunta: por que, por exemplo, as vítimas não contam aos colegas de trabalho o que está acontecendo com elas? Por que não procuram imediatamente a polícia? Como elas acabam nessa situação em primeiro lugar?

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Com ajuda do Ministério do Interior inglês, consegui marcar uma entrevista com "K", um húngaro vítima desse tipo de escravidão de 30 e poucos anos. Ele concordou em falar comigo sob a condição de permanecer anônimo. Sentado à minha frente num café do sudeste da Inglaterra, K — vestindo preto e segurando nervosamente seu café — respirou fundo e começou a me contar sua história.

Adotado aos três anos junto com o irmão mais novo, K nunca conheceu os pais biológicos. Os irmãos foram criados numa pequena cidade da Hungria, perto da fronteira com a Eslovênia, e depois que seu pai adotivo morreu, K arrumou trabalho numa fábrica para pagar as contas.

"Trabalhei até sofrer um acidente de carro em 2002", ele disse.

Depois do acidente, K passou três meses em coma e outros seis tentando juntar os cacos de sua vida. Sua memória foi prejudicada, e só depois de achar recibos e cartas em sua bolsa ele conseguiu lembrar onde costumava trabalhar. "Voltei ao trabalho e perguntei se eles me conheciam, e acabei conseguindo meu emprego de volta", ele lembra, tomando um gole de seu café.

Ele tinha encontrado o lugar, mas operar a máquina que antes ele costumava conduzir com uma mão agora era uma luta, e depois de pouco tempo ele foi dispensado.

"Me tornei um sem-teto — o tipo de sem-teto que quer ser sem-teto", ele disse. "Eu não queria que ninguém me encontrasse. Fui para as ruas e dormia onde a noite me levasse."

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Depois de alguns anos nessa vida — e de um curto período trabalhando para um cafetão local, que depois o entregou à polícia — K ouviu sobre uma oportunidade para começar de novo. "Alguém me falou sobre um trabalho na Inglaterra, e sobre essa família que estava pegando pessoas aqui", me disse. "Agora entendo o que aconteceu. Quer dizer, eu não falava inglês e não conseguiria chegar aqui sozinho, mas sentia que precisava fugir".

O negócio foi fechado depois de duas semanas. K conheceu seu traficante, que copiou seus documentos e comprou as passagens de avião. Isso não era o que eu esperava de uma rota de escravidão: não houve sequestro, coerção, nenhum negócio ostensivamente estranho. Já tínhamos conversado por meia hora nesse ponto, e pela primeira vez interrompi K no meio de uma frase. "O que você esperava?", perguntei a ele. "Você sabia que estava se voluntariando para ser um escravo?"

"Eu não sabia realmente o que ia acontecer", ele respondeu. "Eu sabia que esse era o tipo de cara procurando por escravos — pessoas que não se importavam mais com a vida, que só precisavam de comida e abrigo, sabe. Era tudo o que eu queria deles. Eles nunca me disseram que eu seria pago, para ser honesto, nunca perguntei isso."

As despesas foram pagas e a rota de fuga se abriu diante dele: K chegou à Inglaterra em outubro de 2004.

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Mais vítimas de escravidão moderna estão entrando em contato com a polícia, mas acredita-se que milhares de outras ainda não estão. O consultor do Ministério do Interior professor Bernard Silverman, estimou em 2013 que havia de 10 a 13 mil vítimas potenciais de escravidão moderna no Reino Unido.

O site modernslavery.com.uk, comandado pelo Ministério do Interior e apoiado pela NSPCC, informa que as vítimas de escravidão moderna no Reino Unido vêm de vários países — Nigéria, Albânia e Vietnã entre eles. A Hungria é outro país que aparece com frequência em casos de tráfico de pessoas e escravidão, mais recentemente, em janeiro deste ano, quando o dono de uma fábrica em West Yorkshire foi condenado por empregar um grande número de húngaros como "mão de obra escrava".

A situação era bem parecida em 2004, quando K chegou ao Reino Unido.

"Aterrissei em Luton e um cara veio me buscar", me disse K. "Quando cheguei aqui, eles me mostraram meu quarto, que eu dividiria com dois outros caras, húngaros também."

Havia apenas três quartos na casa na cidade de Stoke-On-Trent, no meio oeste da Inglaterra, mas 22 pessoas moravam lá. K tinha cigarros, café e um dicionário de bolso para ajudá-lo a aprender inglês: "Tudo que eu precisava na verdade".

Ele começou a trabalhar no dia seguinte, e apesar de ter mantido seu passaporte, nunca viu nenhum de seus salários. "Sem dinheiro e sem saber a língua, você não chega a lugar nenhum aqui, então eles não precisavam tirar meus documentos", disse K quando perguntei por que ele não tentou fugir.

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K ficava com £50 [cerca de R$ 289] por semana de seu trabalho em período integral, o restante ia diretamente para seu traficante. "Ele preencheu todos os formulários quando assinei meu contrato — nunca mais os vi".

Em abril de 2005, K foi levado para Bolton, em Manchester, para começar num novo emprego.

"Fiquei nesse trabalho por uns 18 meses", continuou K. "Trabalhávamos e eles ficavam com o nosso dinheiro. Acabei ganhando menos de £50, porque os traficantes disseram que estavam me protegendo de outro mafioso. Eu não recebia quase nada".

Com o tempo, o inglês de K melhorou e ele começou a desejar novamente a liberdade. "Depois de dois anos, eu quis minha independência de volta", lembra K. "Eu já tinha dado muito da minha vida a eles. Eu não queria dar mais do meu tempo a eles".

No passado, K já tinha considerado fugir, mas disse que não via uma maneira viável de fazer isso. "O que eu podia fazer? Viver nas ruas de novo? Não", me disse ele. "Pensei em tentar ficar na Inglaterra — o clima é mais ameno aqui; eu poderia sobreviver nas ruas. Mas tinha medo de que eles me machucassem. Se uma pessoa escapa, isso significa que as outras também podem escapar, e eles não vão deixar isso acontecer".

Percebendo que não podia fazer isso sozinho, K se juntou a outras pessoas na mesma situação que ele. Bolando um plano em colaboração com o gerente da firma onde trabalhava em Bolton, tudo começou a caminhar para uma solução. Um dos gerentes levou K e os outros para um banco, os ajudou a abrir contas próprias e começou a pagar o salário diretamente para eles. Logo, os traficantes começaram a reclamar, perguntando para onde estava indo o dinheiro, mas o gerente disse que havia acontecido apenas um erro bancário.

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"Uma semana depois, a empresa disse aos traficantes que a polícia estava procurando por eles", relatou K. "Então eles pegaram suas coisas e fugiram do país".

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Por um tempo, as coisas ficaram estáveis. Era o verão de 2006, quando K e os outros estavam vivendo e trabalhando em total liberdade. Mas aí tudo degringolou de novo. O contrato deles expirou. As seis pessoas com quem K estava morando, todos húngaros, não falavam inglês, e encontrar trabalho sozinho era difícil. Com o resto de seu dinheiro, K voltou com os outros para a Hungria, mas logo se viu novamente sozinho, sem dinheiro e sem um teto.

"Eu não entendia mais húngaro — eu tinha mudado; a política, as pessoas, a cultura", ele disse. "Eu me sentia um estranho. Nem as ruas eram as mesmas. A cidade tinha crescido e não era mais a minha".

Então, depois de trabalhar e poupar algum dinheiro, K conseguiu voltar para o Reino Unido.

Em dezembro de 2009, ele retornou a Manchester, trabalhando em empregos precários e se sentindo miserável. Ele não conseguia pagar o aluguel e estava destinado a dormir nas ruas por outro inverno, até receber um telefonema de um velho amigo, que sabia sobre um grupo de húngaros sendo mantidos como escravos, assim como K três anos antes. "Ele sabia o que eu tinha feito da última vez, planejado nossa fuga, e me perguntou se eu os ajudaria a fazer o mesmo", disse K, sorrindo.

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Ele resolveu se disfarçar e se infiltrar. "Viajei para Leeds. Um homem veio me pegar", relatou. "Quando cheguei até a casa, o que vi me assustou muito. Todo mundo lá tinha sido traficado".

Como K sabia, construir uma confiança entre estranhos quando você está sendo explorado e manipulado leva tempo. K entrou no esquema, e como os outros, recebia £10 [cerca de R$ 57] por semana. "Finalmente, depois de alguns meses, um cara com quem eu morava decidiu se rebelar", sorriu K. "Ele começou a me perguntar o que devíamos fazer".

O que K e seus novos amigos decidiram fazer foi entrar em contato com a imprensa húngara e as autoridades. Logo depois, um mandado de prisão foi emitido e a polícia fez uma batida na casa.

Com ajuda do Exército da Salvação, K e os outros foram levados para uma casa segura e imediatamente colocados no serviço de proteção a testemunhas. "Chegamos lá depois de uma longa jornada", disse K. "Entramos na casa e ela era muito grande. Tinha até uma sala! Gostei muito".

Com recursos, K logo encontrou trabalho, e ajudou os outros a se empregarem também. "Encontrar um trabalho na Inglaterra é fácil — quem diz que não é mentiroso", ele riu.

Enquanto nossa conversa chegava ao fim, perguntei a K como ele se sentia agora, pensando em tudo que tinha acontecido com ele.

"Isso é o que é", ele respondeu. "Eu queria poder fazer mais para impedir o tráfico e a escravidão. Mesmo não sendo pago para isso — mesmo não trabalhando oficialmente — eu me disfarçaria de novo. Se eu tiver a chance de limpar este país desse lixo e ajudar as pessoas, vou fazer isso. Eu faria tudo de novo. Sou solteiro, não tenho que me preocupar com filhos, esposa ou uma casa".

A história de K coloca o consentimento em destaque; sua decisão em 2004 de praticamente se voluntariar para a escravidão, mesmo não estando totalmente consciente disso na época, levanta um ponto importante sobre o que significa ser um escravo moderno. Imaginamos isso como um processo de coerção e trabalho forçado, mas K ofereceu sua liberdade aos traficantes. Se seus traficantes originais tivessem sido pegos em 2004, isso poderia ter complicado o caso todo. Mas com a nova lei sobre escravidão, o consentimento da vítima não é mais relevante.

"Ainda lembro do sentimento de não entender o que estava acontecendo ao meu redor quando cheguei aqui", disse K, enrolando um cigarro antes de ir embora. "Eu estava desesperado, e eles tiraram vantagem disso e me exploraram. Não posso deixar isso acontecer com mais ninguém enquanto estiver vivo".

Se você suspeita que alguém é vítima de tráfico de pessoas ou escravidão, o Ministério do Trabalho brasileiro tem um aplicativo para denunciar trabalho escravo, baixe aqui. O disque-denúncia para trabalho escravo no Brasil é 100 segundo o site http://www.sdh.gov.br/disque-direitos-humanos/disque-direitos-humanos.

@MikeSegalov / oliverrobertholmes.com

Tradução: Marina Schnoor

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