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Relembrando o Hipster

O hipster negro que nunca foi

"Eu fui o cara negro no rolê por 20 anos. E a única coisa que acho que aprendi com certeza é que, não importa a roupa que você veste, ser negro e ser hipster são duas coisas totalmente incompatíveis."

Desde que o mundo alcançou o Auge Hipster, já passou tempo suficiente para podermos olhar para trás e enxergá-lo como um movimento, uma febre ou um meme, ou que porra tenha sido, e tentar fazer um balanço para entender o que significou, se é que é possível. Então esta semana é exatamente isso que vamos fazer com uma pequena coletânea de matérias.

Nas semanas que se seguiram ao 11 de setembro, lembro que tive uma conversa com William Harvey, o hipster primordial de Williamsburge ícone da moda que toca baixo no Lord Calverts. Harvey entendeu a tragédia como o anúncio da morte da ironia. Mesmo na época, um distanciamento irônico da vida já tinha virado um certo clichê em Nova York, talvez desde os tempos de, sei lá, Warhol? Foram décadas de jovens (artistas, escritores e pintores, mas ainda assim essencialmente jovens) que se esforçaram ao máximo para viver ironicamente, porque fazê-lo com seriedade era muito idiota ou muito aterrorizante.

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A teoria de Harvey era de que essa tentativa exige um distanciamento da realidade que só é possível se a realidade coopera, mantendo distância de você. Em outras palavras, você só consegue viver como se tudo fosse uma bobagem se apenas coisas bobas acontecem com você. É por isso que o hipsterismo e o conceito retórico que o motiva, a ironia, ficam completamente reservados a pessoas que nunca passam por nada ruim. Coisas que parecem ruins podem acontecer. (Você pode não conseguir pegar uma menina que queria, ou não ter entrado no time de futebol aos 13 anos, ou os pais podem ter se divorciado e o seu pai ter se mudado para a cidade vizinha e você pode ter tido que comer cereal na tigela de plástico no jantar e dormido no sofá ao visitá-lo no apartamento pequeno dele…) Mas nada ruim de fato – tipo, muito ruim – acontece com você.

Coisas muito ruins tornam o mundo real. Se o seu mundo é desprovido de coisas ruins nível mundo, ele não é completamente real e, portanto, a ironia faz muito sentido para você. Era disso que o Harvey estava falando. Parado, como ele descreveu, no meio da rua em Greenpoint, segurando duas crianças que se debatiam, vendo a fumaça tomar o céu, sabendo que milhares de pessoas estavam morrendo bem ali diante deles, ele percebeu que o que estava acontecendo era tão ruim, tão real, para tantas pessoas ao mesmo tempo, que não seria mais possível continuar mantendo um distanciamento irônico da realidade. Assim, ele previu que 11 de setembro de 2001 seria o começo do fim do hipster.

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Entrei na vida adulta em Williamsburg e Bushwick nos anos 90 e fiz um grande esforço para ser hipster. Comprava todas as coisas que eram de se esperar: bici fixa, filtros de café especiais, máquinas de escrever, discos, plantas aéreas, madeira de demolição, agasalhos de avô, arte taxidérmica, mantas de tricô, acordeões. Tudo. Eu fui o cara negro no rolê por 20 anos. E a única coisa que acho que aprendi com certeza é que, não importa a roupa que você veste, ser negro e ser hipster são duas coisas totalmente incompatíveis.

Primeiramente, o hipsterismo era ligado à apropriação. De tudo, para ser preciso. Da barba do seu avô, dos álbuns dos anos 70 e de bairros remotos que ainda são próximos do centro. Na música, na moda ou no território, roubar, reivindicar, reutilizar, se estabelecer, gentrificar – ou seja lá como você queira chamar – está no cerne do hipsterismo. Você precisa achar algo que já exista e que não seja nada descolado, e então anunciar que é descolado. E aí todos os seus amigos devem seguir para lá e se fixar, e aí você deve passar a andar como se fosse dono da área. E aí você tem que encontrar outra coisa que já exista. E repetir o processo.

A segunda questão chave para ser hipster é manter um distanciamento adequado da realidade. Por isso a ironia era o fiel copiloto do hipsterismo. Você vestia roupa de nerd, mas – surpresa! – na verdade era descolado e popular. Usava boné de caminhoneiro, mas – surpresa! – na verdade era um grande conhecedor de música erudita que morava em um prédio sem elevador. Tinha um bigode de quem molesta criança, mas – surpresa! – na verdade não concorda com a pedofilia. Nada era o que parecia ser. Nenhuma pessoa era real. A vida estava em outro lugar. As pessoas eram ideias. A realidade era teoria.

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A questão de tentar fazer isso sendo negro, no entanto, é que dá uma puta dor de cabeça. Enquanto ser hipster significa que você está sempre olhando para o passado em busca de uma descoberta pitoresca para dar a ela novo propósito, ser negro significa que você olha para o passado e pensa: Cacete, eu podia ter sido linchado. Enquanto ser hipster significa achar a música dos seus pais hilária, ser negro significa que a música dos seus pais leva você às lágrimas, porque está conectada com a sua luta pessoal e espiritual pela humanidade. Enquanto ser hipster significa que nada importa, ser negro significa ter um movimento coletivo para lembrar ao mundo que a sua vida importa, sim. Quando se é negro, o bicho sempre pega. Sua cara está sempre de frente para a Terra. Não só quando se é negro, mas também quando se é pobre ou vítima de opressão, violência, assassinatos, destruição sistemática. Quando se é refugiado. Quando não se tem água encanada. Quando não se tem sapato. Quando a sua família está presa. Quando se é veterano de guerra. Quando você não sabe onde vai dormir à noite. Quando você pode morrer por dizer "não". Quando viver é uma luta – não para encontrar sentido na vida, mas uma luta para viver, tipo no nível mais básico da hierarquia de Maslow. Se, em outras palavras, você faz parte da maioria das pessoas do planeta, pois é, o hipsterismo nunca foi para você. E não são as ideias caprichosas que te excluem. É o espaço necessário para tê-las. Ser hipster significa que sua luta é para dar um sentido para a vida. Ser qualquer outra coisa significa que a sua luta é pela vida em si.

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O autor, pós-hipster

E a questão é que todo mundo está virando outra coisa, até os hipsters. Este artigo deveria ter saído em novembro, mas foi adiado porque 130 pessoas foram mortas em Paris. Enquanto eu trabalhava na revisão, mais 20 pessoas foram baleadas em uma festa de fim de ano para adultos com problemas de desenvolvimento, cacete.E essa tinha sido a segunda chacina do dia nos EUA.O atentado de 11 de setembro, que teoricamente seria a pior coisa que poderia acontecer, foi há 15 anos. E ainda não paramos de fingir que as coisas não importam. Desde então, o número de mulheres mortas por seus companheiros já superou o de todos os soldados norte-americanos mortos nas subsequentes Guerras contra o Terror. Houve mais ataques de atiradores nos EUA em 2015 do que dias no ano.Não se sabequantos cidadãos norte-americanos desarmados foram mortos pela polícia nos últimos 15 anos, mas aqui vão 70só para você começar a contagem. Coisas muito ruins estão acontecendo com todo mundo. Não importa quem você seja.

Resumindo, a porra é real e está ficando cada vez mais para mais gente o tempo todo. É hora de basicamente todo mundo dar uma reduzida no distanciamento, na ironia e no sarcasmo e aumentar a dose de sinceridade, amor, angústia, paixão, coragem, da batida do coração, de dar as mãos. É hora de se livrar da parte de si que acha que essa última frase foi idiota. É hora da previsão do Harvey se realizar. É hora da ironia sossegar. E aí, talvez, a última coisa que o hipsterismo se apropriará do resto do mundo antes de sumir na escuridão será nossa absoluta recusa de tratar nossas vidas como uma piada teórica.

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Tradução: Aline Scátola

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