Drogas

Neste momento de isolamento social, é uma boa viajar com psicodélicos?

A pandemia de COVID-19 tem deixado muita gente em casa, sozinho. Psicodélicos são um jeito de viajar sem sair do lugar.
JS
Toronto, CA
MS
Traduzido por Marina Schnoor
psicodélicos ácido, coronavírus
Ilustração por Paige Mehrer.

O mundo tá parado. Então por que não – você se pega imaginando, olhando o saquinho com pó de cogumelo que sobrou daquele festival, ou os quatro quadradinhos de LSD que você guarda numa matryoshka que comprou numa feira de artesanato – por que não viajar pra dentro, explorar os cantos da própria consciência, investigar as vastas paisagens metafísicas sempre em mutação que se revelam, enquanto seu ego dissolve e você flutua, livremente, através de alucinações, cruzando o que o falecido pesquisador de psicodélicos Dr. Sidney Cohen chamava de “o além interior”?

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Pelo lado positivo: chapar parece um bom jeito de passar seis, oito ou 12 horas de quarentena. Tomar ácido, especialmente, é tipo um compromisso. Dizem que uma viagem propriamente dita leva três dias: uma para se preparar (especialmente se você segue protocolos mais severos sobre fazer jejum antes), um para a viagem em si, e um para se aclimatar novamente à realidade, que hoje em dia é muito, muito zoada. Usar o tempo sozinho para experimentar com psicodélicos e explorar seu interior parece uma boa ideia durante esse período bizarro de fechamento social consensual.

Mas será que é mesmo?

Primeiro: não recomendo usar drogas, que podem ser legais ou ilegais de onde você está lendo isto. Segundo: tenho essa sensação desagradável que ultimamente a experiência psicodélica em si meio que se degradou, ou até se gentrificou. Tem alguns fatores contribuindo pra isso, como a ascensão em popularidade da microdosagem (tomar doses pequenas “sub-perceptíveis” de psilocibina ou LSD para depressão ou para melhorar performance), ou a onipresença de reportagens estilo “Fui pro velório da minha tia-avó Bernadete… depois de tomar ácido”, onde psicodélicos são usados como uma chave de fase para tornar o trivial estranho, ou o que já é estranho mais estranho ainda. (A VICE dominava esse mercado antes de 2015.)

A normalização do uso de psicodélicos, tanto por hobistas comprometidos quanto programadores do Vale do Silício buscando um efeito tipo anfetamina de baixa dose para aguentar uma maratona de 24 horas escrevendo o código de um aplicativo, meio que diminuiu a profundidade de uma experiência com dose alta de psicodélicos. Sabe, a experiência do tipo sincera e embaraçosa que já foi comprovada com algo que se aproxima de epifanias místicas, que é toda outra categoria diferente de só “tomar ácido” e ir pra um labirinto de laser tag ou um restaurante de fast food com uma iluminação que te deixa enjoado. Esse é o tipo de odisseia psicodélica que me interessa, tanto pra esta matéria como no geral. E é uma experiência que, historicamente, moldou vários contingentes que seria bom considerar antes de partir para uma longa e alucinante jornada no meio de uma pandemia global.

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Antes da era dos cultos, hippies cabeludos e evangelismo estilo Timothy Leary de São Francisco que marcaram a explosão psicodélica dos anos 1960, expansão da mente era um negócio sério. Uma rede de elite e meio underground de cientistas, sábios, excêntricos e conhecedores de psicodélicos – incluindo o autor de Admirável Mundo Novo Aldous Huxley e o psiquiatra de Saskatchewan Humphry Osmond – começou a experimentar com psicodélicos incluindo mescalina e LSD no meio dos anos 1950, acreditando que essas drogas poderiam ser poderosos conduítes para experiências transcendentais. Como Osmond escreveu numa carta para Huxley:

Para entender o inferno ou o voar angelical,

Tome uma dose de psicodélico

Onde “experimentar com drogas” acabou virando um jeito cabeçudo de dizer “usar drogas”, esses testes psicodélicos pareciam mais ou menos como experimentos científicos mesmo. O controle-chave aqui era a noção de “set and setting” (indivíduo e ambiente). A ideia emergiu quando os primeiros pesquisadores, incluindo Osmond, perceberam que o cenário antisséptico, clínico e todo branco das pesquisas em hospitais poderia ter afetado negativamente os experimentos com psicodélicos. Psicodélicos originalmente eram chamados de “psicotomiméticos”, por sua suposta habilidade de imitar estados de psicose. Como tal, os primeiros voluntários para testes de pesquisa eram realmente tratados como pessoas com problemas mentais no meio do século 20, ou seja, algo não muito condutivo de good vibes.

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Al Hubbard – uma figura elusiva e estranha dessa história, que é conhecido como “Captain Trips” e “O Johnny Appleseed do LSD”, que tinha uma ilha particular e achava que estava em contato com anjos, e que, mais importante, recebia LSD diretamente do fabricante Sandoz Labs na Suíça, onde a droga foi descoberta – foi longe tentando retificar esses ambientes clínicos não muito amigáveis. Hubbard introduziu música reconfortante e imagens religiosas em viagens. Disso, Hubbard notou que cultivar ambientes confortáveis poderia resultar em mudanças drásticas, e positivas, na experiência psicodélica em si.

A ideia foi codificada no livro The Psychedelic Experience: A Manual Based on the Tibetan Book of the Dead, de coautoria de Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert. “A natureza da experiência depende quase que inteiramente de indivíduo e ambiente”, eles escreveram, logo de cara. “Indivíduo inclui sua estrutura de personalidade e humor no momento. Ambiente é físico – o clima, a atmosfera do local; os sentimentos sociais das pessoas presentes umas pelas outras; e uma visão cultural predominante do que é real”. (Leary coloca a hipótese de que os contornos da experiência psicodélica em si podem ser “programados” através do controle de indivíduo e ambiente, o tipo de ideia que fica entre loucamente ambiciosa e totalmente doida de um jeito que define muito do trabalho dele na área.)

Isso, talvez, seja algo que todo usuário de drogas recreativas provavelmente considera garantido. Quando as pessoas falam de “acabar com o clima” e “bad trips”, elas geralmente estão falando sobre como suas experiências foram perturbadas por variáveis de indivíduo e ambiente. Mas isso, no passado como agora, sem dúvida é tão essencial para o caráter de cada viagem quanto o catalisador psicoativo em si.

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O elemento de “indivíduo e ambiente” que acho mais interessante é esse meio cultural que Leary e companhia mencionam em seu manual. Uma das hipóteses é que, durante a explosão cultural de psicodélicos nos anos 1960, as histórias sensacionalistas sobre adolescentes tomando ácido e pulando de janelas tiveram o efeito de multiplicar bad trips. É algo que pesquisadores de psicodélicos chamam de “expectativa”: a ideia de que um usuário pode ser preparado (apesar de nunca totalmente programado) para esperar uma certa reação à droga. Quando toda a mídia começou a focar em pessoas tomando LSD, perdendo a cabeça e sofrendo de surtos de esquizofrenia, a expectativa passou a ser exatamente essa.

Como o pesquisador Ido Hartogsohn escreveu um artigo de 2016 publicado no Journal of Psychopharmacology: “psicodélicos são drogas profundamente culturais que interagem intimamente com as condições coletivas de indivíduo e ambiente da sociedade”. “Ambiente” não é só questão de ter um sofá confortável cheio de almofadas fofinhas, cobrir sua TV de tela plana com um xale e acender umas velas. Isso pode ser uma extensão do contexto mais amplo no qual a experiência psicodélica é produzida.

O que nos joga direto no momento atual: distanciamento social, isolamento, quarentena, a ameaça de uma pandemia respiratória global que, pelo que sabemos, só vai piorar antes de melhorar. Enquanto psicodélicos mostraram resultados promissores em cenários de pesquisa clínica como ferramentas para aliviar – ou até eliminar – ansiedade de outras maneiras intratável, eles também podem ter um efeito agudo de amplificar a ansiedade. Imagine chegar ao ápice da razão, e aí confrontar a realidade da crise de saúde global calamitosa e muito real, e o efeito que ela terá em remodelar quase todo aspecto concebível do nosso mundo. Esses aspectos práticos chatos podem, para usuários recreativos experientes, ser meros incômodos, ou até algo pelo que um psiconauta sério precisa passar para atingir a iluminação. Mas pra mim, alguém com um interesse quase inabalável na história e implicações da pesquisa psicodélica, parece a base perfeita para uma baita bad trip.

Alguns podem argumentar, com razão, que, bom, psicodélicos talvez sejam especialmente condutivos para algo como isolamento: um cenário sereno, uma mentalidade confortável. Mas o caráter preciso desse isolamento provavelmente vai mudar quando ele não é uma questão de preferência, mas uma ordem da Organização Mundial de Saúde. Relatos de viagens em isolamento da comunidade de LSD do Reddit, na última semana, produziram evidências anedóticas de viagens meia-boca, viagens “de pesadelo”, memes sobre "viagens de família" e até comentários hiperbólicos como: “Não tem um momento melhor que agora pra comer uma cartela inteira, porra”. Distanciamento social, quarentena, e todas essas medidas necessárias acabam fazendo todo mundo se sentir um prisioneiro, até um paciente numa cela acolchoada. Essa sensação ambiente de ser privado, de estar preso, provavelmente vai contribuir para dar um caráter hostil para uma jornada psicodélica segura e confortável para o grande além interior. Pode ser uma questão de preferência pessoal, ou uma visão individual (“indivíduo”), mas duvido que alguém queira escrever “Ponderei sobre todas as ramificações globais da pandemia de coronavírus… depois de tomar ácido!” Nem alguém da VICE, bicho.

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Artigo originalmente publicado na VICE EUA.

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