Candidatos à presidência Jair Bolsonaro e Fernando Haddad

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Politică

Entre #EleSim e #EleNão, eu pergunto: como nós ficamos?

Altos números de casos de violência durante as eleições são registrados. Mas não quero discutir sobre política. Quero falar sobre como a política está ocupando os nossos corpos.

Antes de qualquer coisa, vou me apresentar a você para começarmos essa conversa. Sou mulher, negra e nordestina. Atualmente moro em São Paulo. Estou com medo. E você? Antes que me venha falar em alarde por coisa pouca, peço que se olhe no espelho, por favor. Depois, pergunte-se: quem é você e no que você acredita? De verdade. E então? Mas não precisa me responder agora. Só peço atenção a algumas coisas que vou lhe contar.

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Enquanto apurava esta matéria, lembrei que há menos de uma semana escrevi sobre os casos de violência durante as eleições. De lá pra cá, os números só aumentaram. Foram registrados mais de 70 casos de agressões, sendo que 50 foram de apoiadores de Bolsonaro. Mulheres. Negros. Gays. Ou qualquer pessoa que esteja simplesmente em oposição política. E o embrulho no estômago permanece. Afinal, o que está acontecendo com as pessoas e quem são essas pessoas? Eu realmente gostaria de saber.

Imagina que você é uma jovem que está voltando da aula de doutorado à noite, no bairro da Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro, por volta de 1h. A aula acaba tarde e você mora longe da faculdade. Daí você desce do ônibus e vê andando dois homens bastante fortes, do tipo rato de academia. Eles seguem na mesma direção que você. Só que atrás e conversando bem alto. “Mulher é tudo vagabunda! Tem que meter o pau e depois meter o pé”. O que você faz?

Para evitar problemas, você acelera o passo e segue em frente. Sinal verde. Puta merda! Vou ter que parar e esperar os carros passarem. Eles pararam atrás de você e falam mais alto ainda. Nitidamente para você ouvir. “Ah, vou olhar para trás pra ver se calam a boca”, pensa. Eles vêem a blusa que estou vestida escrito “Piranha” e a ilustração de um peixe, uma piranha especificamente. (Ah, mas você pediu, hein?! Vestida com uma blusa escrita um nome de peixe!) Eles continuam a falar e dessa vez diretamente para você: “Ah, é piranha mesmo? Vem aqui pra gente provar!”. Você fica constrangida, mas segue andando. De repente para um na sua frente e outro atrás e começa o show de atrocidades: Feminista vai morrer! Mulheres como você não vão mais existir no governo do Bolsonaro. Isso é falta de surra! Que eu tinha que tomar umas porradas…”.

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Mas você é uma mulher feminista e atuante politicamente, claro que não vai deixar barato isso! Só que não. Pois você sente medo e não reage. Até que aparece um senhor e grita “Covardes! Dois homens desse tamanho contra uma mulher! Covardia!”, logo surge uma outra mulher e se une também chamando-os de covardes! Eles se afastam, mas de longe seguem gritando: Mito! Mito! Mito! Você é advogada! Decide prontamente ir na delegacia registrar o ocorrido. Chegando lá, não tem atenção do policial de plantão, que segue a conversa com outro policial, que se diz ser “fulano”, o tal candidato. E mais uma vez o medo lhe envolve e você decide ir pra casa. Respira fundo e segue.

Relato da vítima Paola Bettamio / Reprodução Facebook

Agora digamos que você é negro. Negro retinto, pele lindamente escura. Mais um dia na grande São Paulo e você bem de boa pega um ônibus sentido Consolação, Av. Rebouças. Está lá sentado, pega o celular, coloca o fone e já vai logo preparando a playlist para o trajeto. A primeira música mal começa e já escuta “Nojo! Ele é preto!” Ãh?”, de repente um estalo te faz despencar para uma realidade que teimam não querer enxergar. E se dá conta da situação ocorrida segundos atrás. Flashback: Três jovens se aproximam de você, um rapaz e duas moças, quando uma delas faz menção de sentar ao seu lado, mas logo é repreendida pela amiga que grita: “Sai daí! Que nojo, ele é preto!”.

E é nessa hora que vem o estalo. Você pergunta à moça o que ela disse. Daí é o bastante para a sequência de gritaria e xingamentos começar. Preto imundo! Você não deveria estar aqui. Volta pra senzala. Esse celular e essa mochila são roubados. E outras tantas que, para sua saúde mental, seu cérebro prefere deletar. Mas quando uma delas insinua que você tocou nela, você realmente fica perturbado, já que sequer tocou neles. E as pessoas do ônibus? Nada. Silêncio. Ninguém esboça empatia com você. Viram o rosto quando você busca proteção ou ajuda. E há quem realmente parece concordar que você não deveria estar ali. Humilhado e impotente, você nem sabe nomear o sentimento que é angustiante e chega a doer fisicamente.

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Relato David_Reprodução Instagram

Postagem da vítima David em rede social / Reprodução Instagram

Ahh, mas isso foi racismo, porque não vai à delegacia? Você não registra queixa pois não se sente à vontade em procurar proteção com quem normalmente te enquadra apenas por estar parado na esquina esperando alguém. Além disso, os agressores ainda dizem: Chama a polícia que quem vai sair daqui preso é você”. E infelizmente eles possivelmente estavam com a razão. Para sua segurança, você desce do ônibus.

Relato da vítima David / Reprodução Instagram

Postagem da vítima David Mechiasu / Reprodução Instagram

Mas o tal candidato dos discursos de ódio representa uma parcela grande da população que agora sente que seus preconceitos e sentimentos nocivos estão validados por ele, como uma das vítimas afirma. Mas o cuidado prevalece e ainda encontra ânimo para conselhos: “Apaziguem seus corações, busquem afeto e proteção nos seus núcleos próximos de apoio como amigos e família. Esse clima de medo e insegurança é exatamente o que eles querem. O intuito é nos paralisar e nos fazer voltar atrás. Mas nós resistiremos juntos! Firmes e nos cuidando. Não retrocederemos jamais!” E aos apoiadores de Bolsonaro, somente uma coisa a dizer: “Suas mãos estão sujas”. Duras palavras, porém doídas, não é mesmo?

Ainda tem fôlego? Então vamos agora para Salvador, Bahia. Você é um jovem escritor e ator na Bahia. Recentemente estreou um espetáculo teatral (“Criança ferida ou De como me disseram que eu era gay”) que conta a história da descoberta de ser gay. Feliz com seu trabalho, pois a peça aborda o tema com muita delicadeza, você segue com a apresentação em um bairro periférico da cidade, para crianças. Ao longo da peça, todos recebem papeis para expressarem o que sentiram. Eis que lhe entregam um bilhete com os dizeres: "Bala nos viados, Bolsonaro 17".

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Ator Vinicius Bustani / Foto: Lia Cunha

Você não registra um B.O, até porque são crianças, o que lhe deixa mais triste ainda. Escutamos as pessoas falarem na rua de forma mais aberta coisas desse tipo, parece que está autorizado esse discurso. É importante se proteger, mas não deixar que o medo tome conta. Deseja que a gente nesse momento não se cale e deixe de entrar no embate. Estarmos atentos, como a gente sempre esteve durante a nossa vida. A gente se sente muito pequeno, mas não vamos deixar de lutar.

Você sabe o que sentir nesse momento? O que lhe vem à cabeça? Ah, mas você não é mulher, negro ou negra e nem gay. Ok, mas aposto que você costuma dar aquele passeio de bike na Faria Lima, em São Paulo um carro vai em sua direção e o motorista grita: quando Bolsonaro for presidente eu passo por cima! Ou simplesmente pelo fato de você ser uma transsexual é motivo para ser atacada com uma barra de ferro?

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Essas situações que fiz você se colocar no lugar não nasceram da minha imaginação. Infelizmente são casos verídicos. E não estou aqui para atacar ninguém, muito menos dissipar mais ainda o medo. Ele já está instaurado e não precisa ganhar ainda mais força. A gente precisa de luta. Mas luta através do respeito e do cuidado. Essas pessoas têm família. São mães, filhas, netos, esposos, namorados. São pessoas. E parece que às vezes nos esquecemos disso.

E aos apoiadores de Bolsonaro, umas das vítimas desabafa: fico muito triste que as coisas tenham chegado nesse lugar, em que a gente não consiga olhar um pro outro; se identificar, ter uma mínima empatia. Um tempo em que a violência esteja à frente dos valores democráticos, do respeito, do diálogo. E que isso é muito nocivo para todos nós”. E complementa: “As pessoas estão sendo infladas pelo discurso de ódio. Uma prática de desumaniza as pessoas”, me contou uma das vítimas. E o que a gente precisa nesse momento? “Laços de solidariedade. Uma palavra amiga nesse momento eu acho que é urgente, essencial. O que vai nos manter de pé”.

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Conversei com o advogado Dr. Bruno Candido Sankofa, advogado e pesquisador em Segurança Pública pela UFF, presidente da Comissão de Igualdade Racial e intolerância Religiosa da 24° Subseção OAB/RJ e delegado da Comissão de Segurança Pública da 24° Subseção OAB/RJ. "A pessoa agredida ou na possibilidade de ser agredida, deve recolher o máximo de provas e dirigir-se a delegacia ou ao próprio Ministério Público, dependendo do caso, requerer da autoridade medidas de urgência que garantam sua integridade, de física a moral", recomenda o advogado.

Bruno explica que com o novo teor da Lei do Racismo, a lei passou a reprimir e a criminalizar o crime de genocídio, prevendo de forma expressa a questão do nazismo no §1º, do art. 20, in fine: Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.

Com relação ao universo das mulheres, conversei com as advogadas Mariana Serrano, mestre em direito do trabalho pela PUC/SP, sócia fundadora de SKB Advocacia e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), e Maira Bayod, advogada eleitoral, membra da Rede Feminista de Juristas, Presidente da comissão da mulher Advogada da 95ª subseção da OAB/SP. Pois é bastante importante sabermos se tais condutas são enquadradas como crimes legalmente. Medo também é parente da desinformação. Esses casos são crimes. E não podem ficar impunes.

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Para as advogadas da DeFEMde, crimes contra a parcela da população que é tida comumente como “minorias políticas" sempre aconteceram. Só que até então havia um consenso social mínimo de que esse tipo de discurso e atitude não eram aceitáveis, e os crimes vinham ocorrendo de forma mais velada. Porém, a partir do momento em que um candidato expõe essas ideologias sem ser reprimido pelo Judiciário ou pela mídia, não perdendo espaço político, as pessoas passaram a sentir-se legitimadas a agir de forma violenta.

A advogada e feminista Mariana Serrano comenta o quanto tais casos são categorizados como crimes. "Condutas praticadas contra a honra podem ser enquadradas como calúnia, injúria, difamação. O mesmo se dá com relação a ameaça. E o que temos visto ultrapassa tais delitos. Lesões corporais, inclusive de natureza grave, bem como homicídio já foram praticados desde o início da eleição. Racismo, LGBTfobia e misoginia são outras condutas praticadas por tais pessoas e que merecem punição".

As pessoas revolucionárias são movidas por grandes sentimentos de paixão. Não estamos diante de momentos fáceis, mas também nossos direitos foram conquistados e não dados de graça. A história mostra que já resistimos antes. Não devemos nos intimidar, pois é isso que os fascistas querem: instaurar a política do medo. Temos que nos fortalecer e permanecer unidas, para que o medo passe rápido, ao olharmos nos olhos das pessoas ao nosso lado", desabafa Maira Bayod, membro da DeFEMde.

A jornalista e escritora Eliane Brum certa vez escreveu sobre a crise das palavras e realmente parece que estamos vivendo em um tempo que as palavras já não servem. Se ninguém as escutam, nada dizem. Os gritos estão sendo lançados há tempos. E ganham força. Ganham forma. Intimidações. Ameaças. Agressões. E, em alguns casos, morte. Se tiver estômago e alguns minutos, pode dar uma olhada no Mapa da Violência, e verá um compilado de relatos de casos de violência envolvendo eleitores no Brasil.

E então, foi difícil chegar até aqui? Conseguiu sentir alguma coisa? Agora volta até aquela imagem do espelho que você viu no início e tenta se responder. Quem é você desse percurso? Em tempos de medo e ódio, #EleSim e #EleNão, sigo me perguntando como nós ficaremos. O debate e reflexão são imprescindíveis. A democracia não pode morrer. Mas para lutar por ela, precisamos estar vivos e saudáveis. E a empatia talvez seja nosso combustível. Para finalizar, ou melhor, para seguirmos em frente, Julyanna Barbosa, Luisa Alencar, Paola Bettamio, David Mechiasu, Vinicius Bustani, e outros tantos: minha solidariedade.

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