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Entrevista

A bolsa de valores dos EUA caiu porque o capitalismo é uma bosta

Os salários estão subindo no país, então claro que os investidores entraram em pânico.
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Esquerda: foto por Peter Kim/Getty Images. Direita: foto por Michael Nagle/Bloomberg via Getty Images.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

O primeiro ano da presidência de Donald Trump foi historicamente ótimo para o mercado de ações. Isso faz um certo sentido intuitivo considerando o tipo de pessoas que cercam o presidente — investidores de Wall Street, políticos acusados de trocar doações de campanha por aprovação de leis, e caras que foram condenados desde então. Mas mesmo enquanto a investigação sobre a Rússia deslancha, tribunais se juntam contra Trump por sua proibição de entrada de imigrantes no país, e o governo federal cai no caos, a movimentação de ações tem sido selvagem. O S&P 500 subiu quase 20% no ano, alimentado por um setor de tecnologia em crescimento com investidores nem um pouco preocupados com a erosão das normas políticas norte-americanas, muito menos com uma possível crise do sistema legal. Embora as perspectivas de longo prazo para a república pareçam nebulosas na melhor das hipóteses, as coisas vão bem para o pessoal do 1%, e os gigantescos cortes de impostos do presidente provavelmente vão abastecer ainda mais a diversão.

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Aí, na sexta-feira, os investidores começaram a surtar.

Um declínio significativo nos maiores índices dos mercados de ações no fechamento da última semana se transformou numa verdadeira derrocada na segunda. Quando o sino de encerramento da bolsa tocou, o Dow Jones Industrial Average tinha perdido bem mais de mil pontos, sua maior queda num dia da história. (Não é a maior queda de índice relativo da história; a Dow ainda é muito mais valiosa hoje que anos atrás.) Mas de onde veio essa queda? Não há nenhum anúncio de novas regulamentações ou investigações em grandes bancos. O desemprego continua baixo, perto de 4%. Os únicos dados que remotamente se correlacionam com a mudança súbita nas tendências do mercado foram as notícias de que os salários estão subindo. Como o New York Times informou: “o ganho médio horário pulou 2,9% em janeiro considerando o ano anterior, o Departamento do Trabalho disse na sexta, o último sinal de uma lenta e longa recuperação econômica que só chega agora aos bolsos dos norte-americanos”.

Quem acompanha as notícias casualmente pode achar que salários mais altos são uma boa notícia – então por que isso causaria uma queda no mercado? E se as ações estão caindo devido ao aumento nos salários, isso quer dizer que deveríamos comemorar a queda das ações?

Para ter alguma perspectiva nesse estranho estado das coisas em que nos encontramos, liguei para Jared Bernstein, um membro da organização de esquerda Center on Budget and Policy Priorities (CBPP), que trabalhou como economista-chefe do vice-presidente Joe Biden. Ele está registrando a economia de Trump, incluindo sua primeira grande queda, numa coluna no Washington Post. E foi isso que ele disse.

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VICE: Essa é a primeira grande queda do mercado de ações desde que Trump assumiu. Considerando todo o caos da presidência dele, das investigações sobre a Rússia até as proibições de entrada no país seguidas das brigas judiciais, você fica surpreso que tenha demorado tanto?
Jared Bernstein: Não muito, tem uma separação entre o caos político e o que comanda os mercados, o que, falando no geral, em tempos bons — quando a economia está se filtrando — não é tão complicado assim. É algo corrente e esperado dos lucros de corporações abertas ao público. E Trump vinha sinalizando para a comunidade financeira que forneceria bens em termos de cortes nos impostos e desregulamentação. Não sei se ele fez muito na parte de desregulamentação, pelo menos relativo a sua retórica, mas ele realmente cortou impostos, o que favoreceu muito o setor corporativo.

Você pode argumentar que o mercado foi de algum modo elevado, se observar as relações de preço/lucros, mas nada muito longe dos lucros esperados. Parte do que vemos aqui é uma reação exagerada. Há uma mentalidade de rebanho que se espalha.

As perdas até agora estão afetando especialmente bancos e companhias de energia. Isso deveria preocupar uma pessoal comum? Quem realmente sai prejudicado quando as ações caem numa situação assim?
Ranqueando as famílias por riqueza, a metade de baixo tem poucas ou nenhuma ação, incluindo contas de aposentadoria. E se você olha para os donos do mercado de ações em termos de valores, bom, os 10% no topo têm 84% do valor das ações. Então, falando no geral, esse tipo de queda não prejudica uma família média.

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Se isso continuar, você pode acabar tendo um problema que afeta as riquezas. Ou seja, parte do que comanda o consumo é as pessoas se sentindo mais ricas, e mesmo se essa é uma fatia pequena da população, isso pode ter um impacto. Mas não vejo isso como um problema na queda atual.

Para os não-iniciados, você pode explicar por que as aparentemente boas notícias da última sexta – que os salários parecem estar subindo – ajudaram o mercado a cair?
O que está assustando os investidores é uma possível cadeia de eventos que funciona assim: Crescimento de salários desencadeia aumento dos preços ou inflação; que leva a aumento na taxa de juros; que cresce lentamente e corta margens de lucro. E lembre-se, o valor do mercado de ações é sua rentabilidade esperada. Se os investidores se convencem de que essa cadeia de eventos foi desencadeada, eles vão começar a vender. É isso que acontece.

Pausando por um segundo aqui, há provas reais de que a renda de pessoas não ricas está aumentando de maneira significativa — que a desigualdade de renda está encolhendo?
Não. É por isso acho que temos uma reação exagerada aqui, porque enquanto é verdade que uma série de salários cresceu 2,9% de janeiro para janeiro, esses são dados ruidosos, e se você suavizar os altos e baixos normais, e olhar para outra série de salários, você vai ver que os salários estão subindo gradualmente, o que é esperado de uma economia com um mercado de trabalho como a nossa. Não tem surpresa aí. E nada de inflacionário. Lembre-se, toda essa cadeia de eventos é desencadeada por inflação de salários vazando para inflação dos preços. E essa correlação tem sido bem baixa há um tempo. Isso pode mudar, e os mercados estão sempre tentando adivinhar o futuro. Entendo isso. Mas assumir que porque você teve um aumento num mês de dados confusos, que isso vai desencadear uma cadeia de eventos que acaba com uma economia crescendo mais lentamente e estreitamento das margens de lucro, isso é mais pânico dos investidores que realidade.

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Você apontou que tem algo podre num sistema econômico que surta com os pobres ganhando mais. Foi sempre assim?
Tem sido assim nos últimos 15 ou 20 anos. Lembro de, 15 anos atrás, ouvir pessoas dizendo basicamente “Esse foi um ano bom para Wall Street e um ano ruim para a rua principal”. Mas nem sempre foi assim! Voltando o suficiente, antes da nossa economia estar carregada com tanta desigualdade – desigualdade de salário, de riqueza, de renda, de poder político – havia mais tecido conectando classes de renda. Não quero contar uma história maquiada – sempre houve pessoas, particularmente minorias, encarando profunda discriminação. Mas a ideia de que ganhos nos salários poderia assustar os mercados financeiros – acho que isso teria surpreendido investidores de eras passadas.

O que está alimentando essa tendência?
No cerne desse modelo insustentável está a noção de que a lucratividade corporativa depende de reprimir custos com mão de obra – o salário dos trabalhadores. Essa é uma das razões para vermos um aumento na lucratividade e simultaneamente estagnação de salários. Acho que no coração disso você tem um problema de desigualdade. Você vê isso nos impostos, e vê muito nas políticas da administração Trump. O que acontece aqui é que os trabalhadores estão recebendo um pouquinho do bolo; então isso ameaça a lucratividade corporativa – através de inflação e juros, além de que o custo da mão de obra dá uma mordida nos lucros. É um modelo muito míope, porque uma classe média economicamente saudável na verdade ajuda o crescimento econômico.

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Quanto disso tem a ver com o que Trump e sua administração estão fazendo versus com como o mercado funciona agora?
Vejo essa disparidade há 30 anos através de administrações muito diferentes. O que há de tão nefário no que a administração Trump está fazendo na economia é que ela está exacerbando desequilíbrios preexistentes. Já temos uma economia que é muito pesada no topo, deixando muita gente para trás no meio e na base. As políticas dele pioram tudo. Alguém chamou isso de severidade desnecessária. Você já tem a economia de mercado entregando altos níveis de desigualdade, precisamos mesmo de políticas públicas para piorar isso? Claro que não.

A coisa mais infeliz é que mesmo sem o Time Trump abastecendo as desigualdades já existentes do mercado, já vimos esse tipo de dinâmica antes. A produtividade cresceu mais de 80% desde os anos 80, e a compensação média só cresceu 11 ou 12%.

Considerando essas dinâmicas, tem algum jeito de não ser loucura para pessoas de baixa renda, ou, digamos, pessoas de esquerda, torcerem contra o mercado de ações?
Acho que o mercado cair não é particularmente ótimo para ninguém. Sim, as ações estão concentradas entre os ricos, mas tem muita gente de classe média alta que sai prejudicada de algo assim. Acho que o importante aqui é menos as pessoas de renda baixa comemorarem a queda das ações e mais as pessoas de renda alta comemorarem o aumento dos salários. O fato de que muitos na classe de investidores – infelizmente, não é só que muitos investidores não entendem a necessidade do salário subir. É eles verem isso acontecer só um pouco, e aparentemente entrarem em pânico e começarem a vender suas ações. E isso mostra como o modelo está quebrado.

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