“A Luta do Século” mostra como é difícil vencer no Brasil
Cena do documentário "A Luta do Século": último embate entre Reginaldo Holyfield (BA) e Luciano Todo Duro (PE). Foto: Divulgação

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“A Luta do Século” mostra como é difícil vencer no Brasil

O cineasta Sérgio Machado acompanha a rivalidade histórica entre os pugilistas Luciano Todo Duro e Reginaldo Holyfield num documentário que vai muito além do boxe.

O diretor baiano Sérgio Machado, 50, tinha seus vinte e poucos anos quando viu pela primeira vez a luta entre os pugilistas Luciano Todo Duro (PE) e Reginaldo Holyfield (BA). O embate que aconteceu nos anos 1980 era mais um na rivalidade que se formava entre pernambucano e baiano. Astros do ringue numa era pré-Popó, Todo Duro e Holyfield se enfrentaram em Salvador em meio a gritos de “ê, ê, ê, Pernambuco vai morrer!”, me conta Machado por telefone.

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Holyfield venceu a luta narrada no parágrafo acima e foi a partir dela que o diretor Sérgio Machado resolveu que iria contar a trajetória dos boxeadores nordestinos em seu filme A Luta do Século — o documentário entra em cartaz em março. “Eu estava na luta mais icônica deles”, fala Machado. “Tinham 10 mil pessoas no estádio, e 20 mil querendo entrar. A coisa foi ficando fora de controle, o público quebrou o estádio inteiro. Um cara deu tiro pro alto.”

Na primeira parte do filme, vencedor do 18º Festival de Cinema do Rio na categoria Melhor Documentário, o off do próprio cineasta serve de fio condutor sobre os sequenciais embates entre os boxeadores, ambos analfabetos. Ao passo que a rivalidade aumentava, os dois se tornavam importantes nomes do esporte no Brasil. Todo Duro, inclusive, chegou a lutar contra o galês Joe Calzaghe, no que marcou sua pior derrota num enfrentamento em que ficou evidente a disparidade técnica entre os esportistas. Ainda assim, Todo Duro é até hoje conhecido como o maior boxeador de Pernambuco. Holyfield, por sua vez, chegou a lutar em Las Vegas até ver sua carreira entrar num marasmo e sofrer as consequências físicas em decorrência de contínuos golpes na cabeça.

A Luta do Século mostra também o cotidiano simples de dois nordestinos que um dia foram ídolos e hoje vivem com pouco dinheiro em bairros periféricos de Salvador e do Recife. Machado me fala que a ideia original do filme era “contar como duas pessoas de origem muito humilde não têm possibilidade de vencer no Brasil”. O cineasta diz que a maior parte das filmagens mostravam os pugilistas com mais de 50 anos em suas respectivas casas. “Tínhamos muitas horas de material filmado do cotidiano, eles fazendo nada, [o filme era] muito sobre o vazio de dois caras que foram ídolos”, conta.

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Holyfield se preparando pra Luta do Século. Foto: Divulgação

No último dia de filmagem em Salvador enquanto a equipe acompanhava Holyfield, o rumo do documentário mudou. “Holyfield me falou que o Ravengar — o Pablo Escobar brasileiro — foi solto da cadeia”, diz Machado. E foi então que, com as câmeras ligadas, o emblemático traficante baiano sugeriu uma nova luta entre Holyfield e Todo Duro, os dois aposentados, fora de forma e com mais de 50 anos. O boxeador baiano, inclusive, havia tido parte do corpo queimado ao tentar salvar parentes de um incêndio.

“Não levei a sério”, me contou o cineasta. Mas ao ver os históricos rivais se preparando para luta, Machado resolveu que filmaria tudo no improviso. “Fui pedindo pra amigos de Pernambuco e Salvador pra filmarem a preparação deles, mas não tínhamos mais uma equipe organizada.”

Todo Duro, o maior pugilista de Pernambuco. Foto: Divulgação

Falar mais sobre o filme seria entregar lances muito importantes. É preciso dizer que é bom levar lenço pro cinema porque é bem fácil chorar com o documentário. Isso porque, ainda que o filme se chame A Luta do Século, e recupere a história de dois pugilistas, a produção pouco tem a ver com o boxe propriamente dito.

Conversando com Machado, ele me disse que queria fazer um filme sobre o Brasil, “falar de injustiça, de impossibilidade, de desigualdade, de quanto é difícil pra esses caras analfabetos vencerem”. A Luta do Século usa socos e jabs como metáfora pra dificuldade que é sobreviver, ainda mais num nordeste pobre. Ravengar, me conta Machado, estudou filosofia na cadeia e ao falar sempre cita nomes como Schopenhauer, Platão, Nietzsche e é do traficante a melhor definição do filme: “segundo diz Friedrich Nietzsche, uma história com tanto ódio por tanto tempo, no fundo, no fundo é uma história de amor”. Com certeza é um baita filme.

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