Guia Noisey para usar sample no Brasil

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Guia Noisey para usar sample no Brasil

Um pequeno manual para produtores e músicos de toda sorte evitarem dores de cabeça jurídicas pós modernas.

Sample é um assunto nebuloso. São raros os produtores que falam abertamente sobre esse tema porque,muitas vezes, apenas de comentar sobre o assunto publicamente você pode conjurar do éter jurídico um processinho, um pedido de retirada da música de todas as plataformas e/ou aquela indenização básica. O Rodrigo Ogi já passou por isso, o Don L também… vários outros passarão e recentemente o Baco Exu do Blues viu a faixa "Oração à Vitória" sair dos sites de streaming por causa de uma amostra usada de um fonograma do Milton Nascimento. Em meio a todas essas tretas, a gente se pergunta: tem como fazer isso de um modo legal? Sim, tem. Por este motivo o Noisey fez um tutorial abordando os passos e as dúvidas sobre como proceder. Mas um aviso importante: antes de você mergulhar no meio desse mar de sample, caso não tenha visto, recomendamos que você gaste uns minutos da sua vida lendo o nosso guia sobre direito autoral para entender melhor o funcionamento da lei no Brasil.

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ABRI O FRUITY LOOPS. PRECISO PEDIR AUTORIZAÇÃO?

Vamos com calma. Se você sentou na frente do seu computador e está mexendo no Fruity Loops ou no Ableton, colocando um break do Marvin Gaye no loop e criando um beat, você não precisa correr atrás disso. Não ainda, explica Tiago Barbosa, advogado do Laboratório Fantasma. "As pessoas quando iniciam seus estudos não pedem licença pro dono da pesquisa original ou anterior pra criarem, desenvolverem algo. Isso só acontece no momento em que o material vai ser lançado, distribuído e comercializado". Ou seja, a partir do momento que você quiser colocar esse trampo pra circular, aí sim você pensa em pedir essa licença.

DUAS MANEIRAS DE SAMPLEAR E DOIS CORRES A FAZER

Antes de tudo, a gente precisa saber o tipo de sample que você vai usar. Existem dois. "Pode ser um sample, por exemplo, da gravação da música original. Você recortou o fonograma original e colocou aquilo numa nova gravação. Ou pode ser só o sample da obra fixada naquela gravação: ele não vai usar a master original, com os instrumentistas tocando, ele regrava aqueles acordes e aí o contexto muda um pouco", conta Tiago.

Então se você pegar um som do Marvin Gaye e tocar aqueles acordes, sem usar a música original do Marvin Gaye, você precisará entrar em contato apenas com a editora responsável por cuidar do direito autoral daquela obra, pedindo a autorização, pois você em momento algum mexeu com o fonograma (a música em si, que a gente ouve no YouTube ou no celular) apenas com a autoria daqueles acordes.

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Se você foi além e cortou um pedaço da música original do Marvin Gaye, aí o rolê é um pouco maior. Você precisa negociar em duas frentes: primeiro com a editora, que administra o direito autoral daquela faixa, depois com o produtor fonográfico daquela obra, quem detém o direito daquele fonograma. No caso do Marvin Gaye, certamente seria uma gravadora, mas se o artista é independente, pode ser ele mesmo.

Supondo que você seja um artista independente e não tenha uma gravadora que seja dona do direito fonográfico da sua obra, quem deve correr atrás disso tudo é você, ao lado de um advogado, claro. "Quem deve buscar a editora do artista original é o produtor fonográfico original dessa nova música que você está criando. É uma gravadora? É um artista independente? Se for, ele precisa procurar enquanto escritório. Se tiver uma obra fixada nessa nova música que eu tô fazendo, tem uma autoria que já existe, teria que procurar a editora dessa pessoa pra resolver a parte autoral, se além disso tiver um sample do fonograma — tiver usado a master — eu vou ter que procurar além da editora, o detentor dos direitos do fonograma original", diz Tiago.

A LEI DETERMINA ALGO NO ACORDO?

A lei não determina muita coisa e esse acordo vai variar de pessoa pra pessoa. Podem te pedir 70% da música, 20%, vai depender do que o produtor fonográfico e a editora julgarem correto. E um ponto importante também: esse pedido pode ser negado por eles, se acharem que a nova obra fere/difama a original. Um exemplo: se eu sou um produtor de funk e pedir autorização pro Detonautas Roque Clube pra samplear "Quando o Sol se For", é capaz que eles tomem como algo ofensivo. Quanto a isso, não há o que fazer, já que este direito é inalienável. Para deixar mais claro, Tiago mostra a diferença entre dois tipos de direito que existe dentro do autoral. "Quando a gente fala de direito autoral, é bom dizer que temos o direito moral e o patrimonial do autor. O patrimonial é o que a gente pode negociar, estabelecer acordos, o direito moral você não pode negar que ele não criou aquilo. São coisas que não se misturam".

Tirando a parte de porcentagem, que vai sempre variar, a única coisa que você não pode fazer é estabelecer um acordo de direito autoral vitalício, pois pela lei brasileira, após 70 anos esse conteúdo vai para Domínio Público.

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ONDE COLOCO AS INFORMAÇÕES DE AUTORIA E ETC?

No nosso guia de direito autoral, falamos que o ISRC é o RG do fonograma. É lá dentro que a informação de que tem um pedaço de um som que não é seu vai estar, observa Tiago. "A editora que vai te dar licença da parte autoral estabelecerá um acordo comercial e um percentual de autoria pra você. Estabelecido o percentual de autoria, você vai ter que colocar isso no ISRC: nessa gravação tem essa porcentagem porque ela é derivada de outro autor. O produtor fonográfico da obra original vai entrar no ISRC dependendo do tipo de acordo que vocês fizerem, ele normalmente tem seu nome lá, mas isso vai variar de acordo para acordo". Resumindo: não existe algo fixo no mundo do direito, portanto, cada acordo vai gerar um tipo de informação. O mais comum é que o produtor fonográfico esteja no ISRC da nova música, mas isso não é uma regra.

PERDI MEU SOM E PRECISO FAZER UM ACORDO

Não são poucos os casos de artistas que perdem som por causa de uso indevido de sample. Um caso emblemático no rap é o de Rodrigo Ogi, que viu a faixa "Premonição" longe da internet durante um tempo. "Eu tinha uma música editada por outra editora e do nada entraram em contato com ela e disseram que eu estava usando sample sem autorização. Eles queriam 10 mil libras. A música foi tirada do ar, os caras da Inglaterra entraram em contato comigo, mostrei que não tinha feito esse dinheiro que eles estavam pedindo com ela e a gente fez um acordo de 70% da música ser deles". Se foi mó trampo? Ogi conta que não. "Eles me mandaram um documento por correio, olhei tudo com um advogado, assinei e mandei de volta."

Isso também rolou no longínquo ano de 2012 com o Don L. Na ocasião, a faixa "Cafetina Seu Mundo" usava o sample de "Everlasting Light", do Black Keys — que usa um sample retocado de "Mambo Sun", do T.Rex — e o pessoal da Warner veio atrás do MC pedindo para que ele retirasse o som de todas as plataformas digitais. "Eu lembro que um maluco que eu conhecia tentou fazer um acordo na informalidade entrando em contato com a Warner do Reino Unido, que era detentora dos direitos e eles mandaram pra Warner do Brasil negociar, e obviamente que o pessoal daqui não tem conhecimento e nem experiência pra lidar com isso. Eles pediram pra tirar do ar. Eu nem fui muito atrás, o cara tentou me ajudar, não rolou e eu falei: 'foda-se, vou produzir de outra forma'. A lição é a seguinte: se você tem um sample de grandes editoras, não fale pra ninguém sobre ou tenha bala na agulha pra negociar."

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Caso tenha rolado com você o que aconteceu com um dos dois saiba que não é tão treta assim resolver, diz Tiago. "O grande lance é você suspender a distribuição assim que der problema, pra evitar que você tenha mais tretas pra resolver futuramente. Busque as pessoas responsáveis pelos direitos — editoras e produtores fonográficos daquele fonograma — e faça os acordos comerciais com eles pra não perder a propriedade do conteúdo e que ele continue sendo distribuído nas plataformas originais."

QUEM CAGUETA MEU SAMPLE?

Existem diversas ferramentas para você identificar um sample. O Shazam pode ajudar, mas normalmente os gringos tem escritórios específicos que cuidam apenas disso: ficar procurando artistas que usam samples. O WhoSampled é uma plataforma que pode fazer isso também. Tome como conselho o que o Don L disse: fica suave e não dê pala, caso não queira correr atrás da burocracia.

Por outro lado, quem acredita que o Spotify analisa os dados da música em busca de amostras dos fonogramas alheios está acreditando errado. Procurado pelo Noisey, a empresa disse não ter um posicionamento oficial e fixo sobre o assunto e que quem faz o upload do conteúdo são as agregadoras e os selos. Quem identifica isso, pelo menos no caso dessa plataforma, é uma distribuidora digital, como a ONErpm. Quando você vai subir um som por lá, existe um algoritmo que faz esse trabalho. Isso aconteceu com o DJ Nato PK. "Uma vez fui subir um som do disco do Caprieh que eu usava um sample todo editado, mas cometi o erro de deixar uma introdução com um pequeno trecho da música original, que mesmo com filtros, foi barrada. Eles disseram: ou apresenta a autorização de uso ou remove o sample. Tirei a introdução e a faixa foi liberada."

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"A gente tem uma ferramenta de utilização interna em nosso sistema que nos ajuda a fazer a aprovação de todos os álbuns que recebemos. Uma vez que a gente reconhece que existe a utilização de conteúdo de terceiros em alguma música, a gente dá duas opções pro artista: ou ele apresenta a autorização ou ele retira a música, a batida, enfim, o conteúdo de terceiro que quer distribuir", conta Marina Reis, gerente operacional da ONErpm. Essa autorização precisa ser por escrita, logo, seu acordo verbal com seu camarada não vale de muita coisa. "É uma autorização por escrito, de alguma forma, não é algo informal, verbal. Para que isso seja validado, utilizamos os meios tradicionais de escrita. Hoje em dia email já é considerado pela justiça brasileira. Recebemos todas as formas de registro que podem ser usados como comprovação perante um juiz", informa a diretora de marketing da distribuidora, Iasmine Amazonas.

No YouTube, a política é um pouco diferente. Nesta plataforma eles dão acesso a um serviço chamado Content ID para "proprietários de direitos autorais que atendem a critérios específicos" e que "para serem aprovados, eles precisam deter direitos exclusivos sobre uma parcela considerável do material original enviado com frequência pela comunidade de usuários do YouTube". Por lá, a gravadora, o produtor ou seja lá quem for, pode gerir o conteúdo que ela detém mas que outras pessoas subiram pra plataforma. Se você receber uma reivindicação, existem algumas atitudes que pode tomar: tirar o sample, compartilhar a receita ou se eles estiverem viajando — o que provavelmente não é o seu caso, já que você usou um pedaço da música deles na sua — rola de abrir uma disputa sobre quem é o verdadeiro detentor daquela obra.

ACHEI MÓ COMPLICADO, PRECISO FAZER MESMO ISSO?

Tudo vai depender do quão disposto você está a correr atrás da parte burocrática. Para um artista iniciante ou que não esteja consolidado, comercialmente falando, talvez não seja tão interessante fazer esse corre, já que sua obra dificilmente será retirada do ar por algum representante. O produtor curitibano Nave, que trampou com Marcelo D2, Ogi, Karol Conká e Emicida, diz que só acha válido correr atrás disso quando trabalha com artistas de grandes gravadoras. "Se quero samplear alguma coisa pro Marcelo D2 ou pra qualquer outro artista que esteja em uma gravadora, eu entro em contato com a editora que fez a edição dessa música. A única coisa que deve ser feita é pedir autorização pra evitar dor de cabeça no futuro. O que pega é o alcance que a música pode ter. Tem álbuns aqui no Brasil que são inteiramente sampleados que não vão dar problema ou não deram ainda… isso porque não fizeram aquele barulho a ponto da minha tia lá no interior ter ouvido a música. Lá na gringa há escritórios que só cuidam dessa parte do clean de samples e a internet aos poucos tá virando um “cagueta”… sites como WhoSampled ajudam muito nisso."

"A recomendação pra um artista iniciante é: não se preocupe com isso. Crie, trabalhe com suas coisas, entenda que se um dia isso ficar relevante, você vai ter que procurar essas pessoas pra fazer um acerto. Agora, quando digo isso é pra um artista que não vive da música, que não tem um compromisso. Pra um cara que vive disso e tem condições, tem que fazer do jeito certo, até porque o risco dele é muito maior. Certamente você vai ter problema se não fizer", conta Tiago.