reportagem

Dentro da zona da morte na “Casa Infernal” em Faluja

Quinze anos atrás, uma batalha alterou o curso – e a percepção – da Guerra do Iraque.
O terceiro pelotão Companhia Kilo patrulha Faluja em novembro de 2004. Foto por Lucian Read. Gráficos por Alexander Stockton, Ana Simoes, Kris Cave e Robyn Whaples.

O Cabo R.J. Mitchell e seus fuzileiros se alinharam encostados na parede e espiaram pela porta. Raios de luz do sol entravam numa sala grande, iluminando a poeira no ar.

No meio da sala estava o corpo de um homem morto pelos últimos fuzileiros que entraram na casa. Mitchell sabia que havia outros insurgentes na casa, mas não sabia onde.

Ele estava numa missão para resgatar soldados feridos, e podia ver o quarto onde eles estavam presos. Os fuzileiros teriam que cruzar a sala no meio da casa para chegar lá, um espaço grande sem cobertura. Mitchell bateu no ombro do homem na frente dele e eles avançaram.

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Mitchell conseguiu. Mas quando ele começou a cuidar de um dos feridos, os soldados atrás de Mitchell no meio da sala foram derrubados por uma chuva de balas vinda de cima. Alguns homens estavam empoleirados sobre eles num patamar no segundo andar, em posição para atirar em qualquer um que entrasse na sala.

Aquela era, nas palavras de um fotojornalista presente naquele dia, uma perfeita zona da morte.

Os fuzileiros de Mitchell eram a terceira onda de soldados a cair na armadilha dos insurgentes. Agora, oito soldados estavam presos dentro da casa, seis deles feridos.

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Mitchell, segundo da direita, se prepara para entrar na zona da morte. o braço de Mitchell tem um curativo de um tiro do dia anterior. Foto por Lucian Read.

Os fuzileiros que sobreviveram aos eventos de 13 de novembro de 2014 em Faluja, no oeste do Iraque, chamam o prédio onde lutaram por suas vidas de a “Casa Infernal”. A batalha se tornou lendária para o Corpo Militar de Fuzileiros, e a intensidade da luta a tornou um episódio definidor na saga de nove meses do exército americano em Faluja.

Quinze anos depois do começo da batalha em Faluja, a VICE News falou com os sobreviventes da Casa Infernal. Faluja representou uma guinada na Guerra do Iraque; os EUA tinha invadido o país apenas um ano antes, mas os soldados americanos agora encaravam uma insurgência organizada. Combatentes da região começaram a ir para o Iraque, tornando o país um campo de batalha onde militantes islâmicos disputavam o poder entre si e enfrentavam os americanos.

Os relatos brutais dos veteranos da Casa Infernal mostram quão rápido uma guerra pode evoluir, e são um lembrete do vazio das previsões da administração Bush de que as tropas americanas seriam recebidas como libertadoras no Iraque.

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Um jihadista dentro da Casa Infernal. Foto por Lucian Read.

E num nível granular, o que os fuzileiros experimentaram na Casa Infernal representa um estilo visceral de combate que legisladores americanos tentam evitar na era da guerra com drones. Drones só se tornaram uma alternativa para mobilização de tropas na administração Obama, quando o uso deles em ataques a alvos individuais proliferou.

A luta em Faluja foi marcada por duas batalhas, a primeira em abril de 2004. Durante os meses sem a presença dos EUA, a insurgência teve uma metástase. No verão daquele ano, oficiais militares acreditavam que seu líder tinha uma base em Faluja, mas disseram que a inteligência não era forte o suficiente para justificar um segundo ataque. Os americanos só fizeram uma ofensiva contra a insurgência em Faluja novamente em novembro, um mês onde 84 soldados americanos perderam suas vidas na cidade, mais de 600 soldados foram feridos em ação e cerca de 2 mil insurgentes foram mortos.

Bing West, escritor e ex-soldado que se incorporou a unidades de fuzileiros durante as batalhas, acredita que o atraso permitiu que a violência se espalhasse – e talvez tenha sido uma oportunidade perdida de encontrar o líder Abu Musab al-Zarqawi, que depois fundaria o ISIS e foi morto por um ataque aéreo americano em 2006.

“Como resultado, as coisas por todo o Iraque começaram a deteriorar”, West, autor de “No True Glory”, um relato das linhas de frente que inclui a primeira descrição detalhada da batalha na Casa Infernal, disse a VICE News.

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Enquanto a guerra se estendia para seu segundo ano, o plano de Washington de tomar Bagdá com colunas de tanques deu lugar a uma luta sangrenta casa a casa. O Corpo Militar de Fuzileiros, que treina especialmente para esse tipo de combate, não tinha realmente lutado assim desde a Batalha de Huế no Vietnã.

“É o mais próximo que você tem de combate corpo a corpo”, disse Jesse Grapes, comandante de um pelotão de infantaria em Faluja. Mitchell era um dos 83 homens sob seu comando. O Terceiro Pelotão do Tenente Grapes, parte da Companhia Kilo, foi encarregado de limpar a parte oeste da cidade.

As ruas da cidade eram estreitas e alinhadas com casas cercadas de pátios e muros de tijolos. Os combatentes empregavam uma estratégia de “defesa em profundidade”: lutando de uma casa e depois recuando, tomando uma nova posição em outro prédio, uma tática para cansar os soldados americanos.

E quando os fuzileiros eram atraídos por uma casa, eles não podiam mais pedir mísseis ou armamento pesado por causa do risco de fogo amigo.

Para os americanos, a Casa Infernal não foi apenas difícil, mas também estranhamente satisfatória. “Mesmo não tendo simpatia pela causa deles, pelo menos respeitávamos o fato de que esses caras tinham colhões para, sabe, ficar e lutar”, disse Grapes.

A zona da morte

O 1º Sargento Brad Kasal e o cabo Alex Nicoll tinham seguido Mitchell na zona da morte, com os fuzis apontados pra cima. Eles examinaram a sala. Ela ficava no centro da casa, com várias portas levando a outros cômodos. Uma escada dava a volta numa parede e levava a um patamar no segundo andar, e a sala de dois andares tinha uma cúpula cheia de claraboias.

Segundo o livro de West, Kasal então andou até uma porta embaixo da escada. Ele usou seu fuzil para iluminar a pequena sala e descobriu um homem escondido perto do interruptor de luz. O homem disparou seu fuzil contra Kasal mas errou. Kasal enfiou sua arma no peito do homem e disparou.

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Aí os tiros explodiram do alto.

Kasal levou vários tiros nas pernas, e se arrastou até o pequeno banheiro onde ele tinha encontrado o insurgente. Nicoll ainda estava no aberto, recebendo mais tiros. Kasal esticou o braço pela porta para agarrá-lo, e foi baleado de novo. Ele arrastou Nicoll até o banheiro.

O quarto

Enquanto isso, os insurgentes ainda estavam disparando pra baixo. Mitchell, que tinha algum treinamento médico, aplicou pressão no ferimento do Anspeçada Cory Carlisle. Ele conseguia ouvi-lo gritando entre os tiros; ele tinha levado um tiro na coxa e estava perdendo muito sangue.

Aí Mitchell ouviu outra pessoa gritando em agonia. Espiando de volta na sala central, ele pode ver Nicoll e Kasal no banheiro adjacente.

Para chegar até eles, Mitchell precisava reentrar na zona da morte.

“Eu estava pensando comigo mesmo que essa era a coisa mais idiota que já fiz na vida”, Mitchell disse a VICE News. “Meu próximo pensamento foi 'Isso vai doer muito'. E corri.”

Enquanto ele corria, uma granada explodiu num flash brilhante. Tiros acertaram a parede atrás dele, e uma bala ricocheteou para a coxa dele. Mas ele chegou até os soldados no banheiro da sala central da casa.

Agora, Mitchell, Kasal e Nicoll estavam no banheiro, enquanto os três soldados que eles vieram resgatar ainda estavam presos no quarto. E, na cozinha fora da zona da morte, estavam dois soldados feridos que tentaram um resgate anterior. Eles também foram pegos na emboscada.

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Como Grapes diz, era um verdadeiro show de merda.

O banheiro

Mitchell conseguiu chegar ao banheiro, mas encontrou Kasal e Nicoll gravemente feridos. Kasal, sangrando e lutando para continuar consciente, pediu que Mitchell tratasse Nicoll, que estava ainda pior que ele.

O primeiro problema de Nicoll era a perna esquerda, que tinha levado seis tiros logo abaixo do joelho. Mitchel aplicou um torniquete, cortando o fluxo de sangue para o ferimento. Ele começou a arrancar a armadura corporal de Nicoll e encontrou uma entrada de bala nas costas dele, logo sobre os pulmões. Ele fez um curativo com uma válvula para impedir que ar fosse sugado pelo ferimento.

Mitchell então se voltou para Kasal. Ele estava sem suprimentos médicos, então apertou as tiras do coldre na coxa de Kasal, onde ele tinha sido atingido. Ele entregou a tira para Kasal e disse a ele para segurar firme. O soldado também levou um estilhaço quando os insurgentes jogaram outra granada nele e Nicoll; Kasal rolou sobre o outro soldado e absorveu o impacto.

Kasal segurou seu torniquete improvisado com uma mão e uma pistola, que ele manteve mirando a porta, com a outra.

Segundo o livro de West, Kasal disse para Mitchell encontrar uma saída antes que Nicoll sangrasse até a morte. Depois de uma década em meia, Mitchell não lembra os detalhes da conversa, mas lembra do barulho dos tiros fora da casa. “Parecia que eu estava embaixo d'água. Estávamos gritando a plenos pulmões”, disse Mitchell.

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Enquanto Kasal vigiava a porta, Mitchell focou de novo em Nicoll, que estava ficando inconsciente. Mitchell deu um tapa na cara dele e disse para ele continuar acordado.

O reforço

O comandante do pelotão, Grapes, estava patrulhando a várias esquinas de distância quando ouviu pelo rádio que soldados tinham sido feridos. Grapes e Mitchell tinham sido mobilizados para o Iraque um ano antes, durante a invasão. Mitchell tinha uma habilidade natural de incentivar outros soldados e manter a cabeça fria, qualidades que Grapes valorizava.

“Você sabe quem são seus melhores caras”, disse Grapes, “e Mitchell era meu melhor líder de esquadrão”.

Grapes se juntou ao Corpo Militar depois de trabalhar brevemente como consultor de uma corporação. Católico devoto, ele sentiu o chamado do dever no 11 de Setembro, vendo uma resposta para uma deriva com que ele lutava desde a faculdade. Ele foi para um escritório de recrutamento no dia seguinte.

Agora, ele estava correndo para o sul em direção a casa, chegando com os Humvees com armamento pesado e mais soldados a pé.

Grapes chamou Mitchell pelo rádio, pedindo a ele uma descrição do que estava acontecendo lá dentro. Ele percebeu que a tática dos soldados de fazer fila e entrar na sala foi exatamente o que fez eles ficarem presos. “Estávamos fazendo o que fomos treinados pra fazer”, disse Grapes.

O problema era que os insurgentes no segundo andar sabiam disso.

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O telhado

Grapes precisava de um plano.

No final das contas, ele e o cabo Francis Wolf decidiram que a única esperança de tirar seus homens de lá era passar uma equipe de resgate pela zona da morte. Mas eles precisavam parar o fogo do patamar do segundo andar. Eles acharam que o telhado da sala central poderia ser uma vulnerabilidade; se eles pudessem atirar pelas claraboias, eles podiam ganhar tempo suficiente para uma equipe de resgate tirar os soldados feridos da casa.

Grapes levou uma equipe para um telhado do outro lado da rua, de onde eles podiam disparar nas claraboias. Ele esperava poder atingir os insurgentes – ou pelo menos obrigá-los a se abaixar – enquanto a equipe de Wolf tentava o resgate.

Wolf, enquanto isso, liderou sua equipe para a porta da sala central.

A equipe de Grapes começou a disparar no telhado da Casa Infernal. O Sargento Byron Norwood, um comandante de Humvee que tinha se voluntariado para o esforço de resgate, se curvou na porta para verificar a zona da morte.

Um insurgente atirou na testa dele, o matando instantaneamente. Wolf, que estava ao lado de Norwood, assistiu o amigo morrer, e depois tomou um tiro no peito. Ele caiu no chão e descobriu que seu colete parou a bala.

A cozinha

Do telhado oposto, Grapes ouviu pelo rádio que Norwood tinha sido morto. Foi um soco no estômago; Grapes gostava muito de Norwood e não sabia que ele era parte da equipe de resgate.

A morte de Norwood, Grapes disse a VICE News, significava que o plano de atirar nas claraboias não tinha funcionado. Grapes ainda tinha que descobrir um jeito de incapacitar os insurgentes. E ele precisava de mais reforço.

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Grapes usando uma marreta para abrir uma janela da Casa Infernal. Foto por Lucian Read.

Grapes chamou o quartel-general da companhia pelo rádio e pediu a “força de reação rápida” de soldados de prontidão para prestar ajuda numa emergência. O Tenente John Jacobs e sua força estavam a 68 metros dali, numa casa que ocuparam na noite anterior; insurgentes e soldados tinham dormido vizinhos uns dos outros.

Grapes e Jacobs conversaram fora da Casa Infernal. O prédio vizinho não era alto o suficiente para eles acertarem o ângulo para atirar pelas claraboias; eles concordaram que precisavam colocar os insurgentes na defensiva de dentro da casa.

Eles bolaram um plano arriscado: se os soldados se abrigassem nos batentes de várias portas e disparassem pra cima ao mesmo tempo, tinha uma chance dos insurgentes terem que se abaixar e eles poderiam tirar os feridos da casa.

Jacobs e seus soldados passaram para a sala de estar e se aproximaram da porta da sala central. Um dos soldados espiou lá dentro. Os homens presos na casa gritaram “Saia da porta!” Jacobs tirou seus homens de lá.

Enquanto isso, vários dos soldados de Jacobs tentaram entrar na casa através de uma porta adjacente para uma cozinha fora da zona da morte. Eles descobriram dois soldados feridos lá, e os ajudaram a sair da casa. Jacobs então voltou para a cozinha com seus homens.

Grapes, enquanto isso, notou uma janela no lado norte coberta com barras de metal. Ele e um cabo começaram a dobrar as barras com uma marreta, aí tiraram seus capacetes e coletes para conseguir passar pela janela para um quarto. Dentro, eles recolocaram suas proteções.

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Grapes sai da Casa Infernal depois de resgatar soldados presos nela. Foto por Lucian Read.

O contra-ataque

Agora havia soldados em três portas fora da zona da morte: o quarto em que Grapes tinha acabado de entrar; o quarto da porta seguinte, onde Carlisle e outro dois soldados ainda estavam se escondendo; e a cozinha, onde Jacobs e seus homens estavam.

Enquanto os soldados se preparavam para o contra-ataque, um fotógrafo incorporado com os soldados tirava fotos furiosamente, passando pelos cômodos fora da zona da morte. As fotos de Lucian Read se tornariam o registro definitivo da batalha na Casa Infernal.

Read lembra de sentir desespero quando percebeu a única opção que restava a eles. “Você só podia atirar pro teto”, ele pensou.

No quarto principal, Grapes deitou de costas e deslizou pela porta até conseguir ver o patamar. Dessa maneira “a primeira coisa se apresentando para os bandidos era meu fuzil”, ele disse. Depois que Grapes ficou na posição, um segundo soldado se agachou sobre ele, apontando seu fuzil na direção oposta.

No quarto ao lado, onde Carlisle estava ferido, o Cabo Jose Sanchez apontou sua arma da porta.

Jacobs ficou perto da porta da cozinha com dois soldados. Ele apontou para a zona da morte, para onde eles estavam prestes a correr para resgatar Kasal, Nicoll e Mitchell. “Vocês vão precisar das duas mãos”, ele disse. Então eles soltaram suas armas.

Jacob levantou seu fuzil, fez a contagem, e todo mundo começou a disparar de suas posições.

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Grapes se prepara para atirar contra o patamar do segundo andar na zona da morte. Foto por Lucian Read.

O resgate

Entre os tiros, dois soldados de Jacob correram, desarmados, cruzando a sala principal até o banheiro. Eles agarraram Kasal pelos braços e o arrastaram de volta pela zona da morte e para fora da cozinha até o pátio. Aí eles correram para pegar Nicoll, o carregaram até a cozinha usando um poncho que fizeram com uma maca. Mitchell insistiu em correr sozinho.

Do outro lado da casa, soldados derrubaram uma parede do quarto abrigando Carlisle e os dois soldados presos com ele. Carlisle foi carregado numa maca.

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O comandante, Grapes, então mandou um especialista em explosivos para dentro da casa com uma carga de C4. A casa foi pelos ares, o concreto misturado com os corpos dos insurgentes numa névoa rosa.

Os soldados ficaram ali perto. Depois de alguns minutos, a mente de Grapes se voltou para as listas de inventário. Ele e os soldados se aproximaram da casa, procurando por equipamento que podiam ter deixado cair durante o combate.

Enquanto eles olhavam os escombros, um insurgente preso sob eles levantou um braço e soltou uma granada.

Os soldados saíram correndo, e depois que a granada explodiu, voltaram e começaram a disparar nas ruínas. Grapes viu um homem ainda se movendo. Grapes pediu cessar-fogo, andou até os escombros e descarregou metade de seu pente na cabeça do insurgente.

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Nicoll no chão da cozinha depois de ser resgatado do banheiro. Foto por Lucian Read.

“Você sabe que vai voltar pra casa”

Onze soldados ficaram feridos e um morreu na Casa Infernal – um terço do pelotão de Grapes. Os comandantes do batalhão deram a Grapes 11 engenheiros de combate. Três dias depois, eles estavam de volta às ruas de Faluja.

Mitchell, o líder de esquadrão favorito de Grapes, não estava entre eles. A explosão de granada dentro da Casa Infernal, que encheu sua perna direita de estilhaços, foi o terceiro ferimento grave de Mitchell durante seu período de serviço; ele tinha tomado um tiro no braço direito um dia antes.

Naquela noite, Grapes chamou Mitchell de lado e pegou um flask de uísque que carregava com ele, ainda fechado desde que seu turno no Iraque tinha começado. “Você sabe que está indo pra casa”, disse Grapes. Ao pôr do sol, Mitchell foi colocado num Humvee e partiu para longe da guerra.

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Em 16 de novembro, oficiais militares anunciaram o fim do maior combate em Faluja. A Companhia Kilo deixou a cidade antes das eleições parlamentarem no final de janeiro.

“O lugar parecia Berlim em 1945”, disse Jacobs, o 1º tenente que mandou a equipe de resgate para a zona da morte. De trás de um Humvee, ele estudou a cidade enquanto saía dela pela última vez. “Era um sentimento estranho”, disse Jacobs, “ver aquele tipo de destruição e – não sei se parece sombrio ou não – mas ter um senso de orgulho de que tomamos a cidade, que fizemos o que viemos aqui pra fazer”.

Grapes deixou o serviço ativo depois que voltou aos EUA. Ele foi mandado uma terceira vez para o Iraque em 2009, numa unidade reserva, onde serviu ao lado do amigo Jacobs. Grapes agora é diretor de um colégio católico na Virgínia, onde os alunos usam uniformes estilo militar e são chamados de cadetes. “Alguém precisa atender o chamado para fazer verdadeiros homens de fé: altruístas e autodisciplinados”, Grapes diz no site da escola.

Mitchell deixou o serviço militar em março de 2005. Ele estudou engenharia mecânica no Arizona e agora trabalha como engenheiro de uma turbina a gás na maior empresa de serviços públicos do estado.

Nicoll, que perdeu a perna esquerda, se juntou a Mitchell em Phoenix quando se recuperou; eles fizeram um curso de mecânica de motos juntos. Em julho de 2006, numa cerimônia em Camp Pendleton, Mitchell recebeu a Cruz da Marinha, uma condecoração militar atrás da Medalha de Honra.

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Em maio daquele ano, Kasal também recebeu uma Cruz da Marinha por seu sacrifício no banheiro da Casa Infernal. A foto de Read de Kasal mancando pra fora da Casa Infernal, com sua pistola ainda na mão direita e sua faca na esquerda, se tornou uma imagem icônica da Guerra do Iraque. Uma estátua retratando a cena foi inaugurada em Pendleton cinco anos depois.

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Kasal sendo resgatado da Casa Infernal pelos Aspeçadas Chris Marquez, esquerda, e Dane Shaffer, direita. Foto por Lucian Read.

Kasal foi tema de uma biografia publicada por uma editora militar, mas fora isso não disse muito sobre os eventos em Faluja. Segundo o livro, médicos operaram Kasal mais de 20 vezes durante o ano após a batalha na Casa Infernal, reparando ferimentos de sete balas e 44 estilhaços. Quando ele se aposentou ano passado depois de quase 34 anos no Corpo Militar, seu discurso foi notado por sua modéstia.

Haditha

Depois de Faluja, a Companhia Kilo foi mandada para um treinamento de primavera e verão na Califórnia. Em setembro de 2005, eles voltaram para o Iraque, onde foram mobilizados para a pequena cidade de agricultores Haditha.

Se Faluja trouxe o final do período de invasão, Haditha marcou um novo capítulo: lutando contra uma insurgência que acabou vazando para a população que os soldados deveriam proteger, mas que viam como hostil e sabiam pouco sobre ela.

A Companhia Kilo está no centro das duas histórias. Em Haditha, os soldados da companhia foram implicados no maior caso de crimes de guerra da Guerra do Iraque.

A série de evento que mais sofreu escrutínio começou quando uma bomba explodiu numa estrada sob um comboio da Companhia Kilo, matando um soldado e ferindo dois. Os soldados correram para outros Humvees, abrindo fogo contra cinco homens desarmados parados fora de um táxi. Aí os soldados se separaram em duas equipes e invadiram uma série de casas.

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Eles mataram 24 civis iraquianos no total, incluindo mulheres e seis crianças, segundo uma investigação criminal do exército aberta só depois que o massacre foi exposto pela revista Time.

Quatro fuzileiros foram acusados de assassinato, quatro oficiais foram acusados de não relatar e investigar as mortes. As acusações acabaram sendo derrubadas para os seis, enquanto um foi inocentado e outro fuzileiro – o líder do esquadrão acusado de liderar o massacre naquele dia – foi condenado por abandono do dever depois de fazer um acordo judicial.

Dos homens inicialmente acusados de assassinato, dois eram veteranos da Casa Infernal, levando observadores, incluindo o autor e veterano Bing West, a imaginar se o combate casa a casa em Faluja empurrou a Companhia Kilo para um abordagem selvagem numa guerra cada vez mais complexa. Os soldados não foram treinados para lidar com a população, e eram hostis a ela.

Ex-membros da Companhia Kilo, como Grapes, também apontaram que a liderança tinha rotacionado quando a Companhia Kilo chegou a Haditha – o que significava que soldados de escalão júnior tinham mais experiência de combate que os homens encarregados de dirigir e às vezes conter a violência.

O Sargento Frank Wuterich, acusado de ser o homem por trás do plano, estava em seu primeiro turno de combate, mas sua defesa se baseou no legado de Faluja. O advogado de Wuterich disse aos jurados que os soldados foram alertados pelos comandantes para esperar que Haditha fosse como Faluja. Uma testemunha da defesa disse no tribunal que os soldados seguiam um ditado em Faluja: “Entre em cada cômodo com uma explosão”.

Wuterich disse a CBS News que ele e seus homens faziam exatamente isso, jogando granadas por portas e depois avançando e atirando na poeira. Promotores disseram que Wuterich interpretou mal as regras, e deveria ser capaz de determinar que ele e seus soldados estavam matando civis. Nos registros da corte marcial obtidos pela VICE News, Wuterich admite ter dito a seus homens para “atirar primeiro, perguntar depois”, reconhecendo que seu comando levou ao massacre.

Wuterich foi rebaixado e não recebeu pena. No final, a acusação oficial mais dura veio num indiciamento do Exército gerado em segredo durante 2006. O relato acusava os comandantes de “negligência intencional” em não relatar as mortes prontamente e corretamente, e por não entender o significado das mortes dos civis.

O fotógrafo da Casa Infernal, Read, não estava em Haditha no dia das mortes, mas voltou pra lá e saiu com a Companhia Kilo numa patrulha dois dias depois. Ele foi convidado por dois homens iraquianos para uma casa onde os mortos estavam antes de serem enterrados; fotos de formas humanas despedaçadas alinhadas no chão se tornaram, como suas fotos da Casa Infernal, imagens icônicas da guerra.

Num ensaio publicado alguns meses depois das revelações, disse que se culpava por estar inconsciente de que os corpos eram evidência de um massacre, e seus laços com os soldados.

Para Read, as mortes foram, em certo sentido, um subproduto da brutalidade inimaginável a que os soldados foram sujeitados e forçados a realizar em Faluja. “É um indício da guerra em geral”, ele disse.

P.J. Tobia, Alexander Stockton, Judy Cai e Griffin Baumberge contribuíram com esta reportagem.

Materia originalmente publicada na VICE News.

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