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Identidade

A editora brasileira que publica majoritariamente pessoas negras LGBTQI

Uma entrevista com Tatiana Nascimento, fundadora da Padê Editorial, sobre a importância de recortes.
Foto: Daysi Serena

O Pedro é designer na VICE. Ele também tem uma editora, a Pipoca Press. Por isso, ele sabe que tem muito trabalho foda de muita gente foda que está circulando pelas feiras e eventos de publicação no Brasil e fora dele. Aqui, na Guilhotina, você vai conhecer esses trabalhos e essas pessoas. A novidade é que a coluna semanal ganha publicação diária durante a Semana do Orgulho 2018.

No ano passado, escutei um texto recitado por Luedji Luna em seu show Apocalipse Cuier, de Tatiana Nascimento. Aquelas palavras me atravessaram e meses depois descobri que sua autora é também o nome por trás da editora brasiliense Padê Editorial.

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Conversei com Tatiana sobre projetos editoriais e também sobre a convocatória aberta que vai publicar, até o ano que vem, 60 títulos de autoras lésbicas, travestis, mulheres trans e mulheres bissexuais.

Foto: Grace Kelly Sodré Mendonça

Vamos falar um pouco sobre a Padê?
Tatiana Nascimento: Eu e Bárbara Esmenia fundamos a Padê. Lançamos 11 títulos já, desde 2016, a maioria de poesia. Em 2017, algumas das autoras publicadas, que são nossas amigas, começaram a colar junto nos mutirões de costura, produção de saraus, shows e na Semilla, que é a feira de publicadoras que fazemos desde 2016, começou também no cerrado, e esse ano vai ter a terceira edição em São Paulo em julho. Tenho pensado que somos cada vez mais um coletivo editorial, com tentáculos em Brasília e em São Paulo.

Conheci a Padê conversando sobre a falta de diversidade no universo da publicação independente. É algo que sempre me pegou e que me questiono. Quando eu soube da convocatória para LBTs achei algo muito necessário, obrigatório e fundamental.
Legal ouvir de seu questionamento. Quando fui à feiras vi uma maioria de pessoas brancas hétero-cis expondo e isso me decepcionou um pouco quanto ao mercado independente mas, na real, nenhuma novidade, né?

A Padê tem um recorte editorial muito específico: “autoras negras periféricas, lésbicas, fora dos grandes (curto-)circuitos literários”. Num cenário onde observa-se liberdade no que publicar, como vocês enxergam o devir e dever sobre “o que publicar” e “quem publicar” a partir desse recorte que vocês propõem?
Hum… tô matutando nisso de ficar entre o devir e o dever. Acho que pensando nas nossas escolhas editoriais optamos pelo dever ao devir. Minha pesquisa em expressões artísticas negras da diáspora sexual dissidente tem sido, há uns anos, por buscar onde é que em nossa literatura, em especial na poesia preta LGBTQI, estamos nos dando o direito ao sonho, ao devaneio (ao devir também, em alguma medida: como nossa literatura nos permite vir a ser? Quens/comos temos nos constituído desde nossos escritos? Pensando a coisa da demanda por constante resistência/denuncismo mesmo).

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Nisso acho que eu e Bárbara nos encontramos muito, em termos optado por selecionar escritos dissidentes dentro da dissidência. Queremos publicar essas vozes/palavras/imagens que contém outras narrativas sobre nós que não só sobre a dor, sobre o racismo, sobre a heterocisnormatividade, LGBTQIfobias.

Essa estereotipia de temas sabota a complexidade de experiências e narrativas LGBTQI. Sei que a dor (da colonização, do racismo genocida, dos transfeminicídios, do estupro corretivo contra lésbicas) é um ponto comum entre pessoas LGBTQI negras, mesmo. Vivemos num dos países mais assassinos do mundo em termos de sexual-dissidentes e/ou pessoas pretas, mas de jeito nenhum nossas vidas são subsumidas pelas opressões. Existimos antes e adiante delas. Retomar pelas narrativas escritas essa complexidade também é resistir – nesse caso, ao estereótipo de que somos seres cuja única experiência que nos legitima ou justifica nossa expressividade seja a dor (narrá-la, narrar a resistência a ela).

Como a literatura é um laboratório de imaginários muito frutífero e essas frutas podem alimentar realidades no sentido de oferecer novos modelos (ou nem tão novos assim, né), acho imprescindível apostar no sonho, na loucura, no dizer de novos jeitos esse tal indizível.

Foto: Tatiana Nascimento

Como foi a movimentação da convocatória para LBT’s?
Fizemos um projeto pra publicar livros artesanais de autoras lésbicas, travestis, mulheres trans, mulheres bissexuais, que foi selecionado pelo Fundo Elas de Investimento Social. Recebemos mais de 300 inscrições. Talvez um terço das inscrições não tinha material. Outro terço era dessa produção mais de protesto e/ou denúncia, no caso de poesia, ou prosa acadêmica diagnóstica, com estudos de caso, pesquisas, análises. O terço derradeiro dessa literatura em que estamos mais interessadas – aí teve romance de ficção especulativa/futurista, contos de literatura fantástica, poesia, poemas inclassificáveis, autobiografias… Só num teve ninguém propondo publicar receitas veganas, o que sonhei muito (risos).

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Escolhemos um pouco de tudo, mas mais o que conversa com nossa linha editorial. Acho que no fim das contas vamos ter uma coleção bem complexa, diversificada, ampla, e claro, enorme.

Quantos títulos serão lançados até o final do ano?
São mais de 60 títulos no bonde. Temos dois cronogramas de produção/lançamentos. Um que é pra agosto de 2018, com majoritariamente lésbicas, por causa do mês da visibilidade lésbica/ dia da visibilidade lésbica, em 19 de agosto. Serão 44 lançamentos agora e cerca de 20 em 2019, culminando com o dia da visibilidade trans, em 29 de janeiro.

A artista e editora Tatiana Nascimento. Foto: Paula Carrubba

Além do lançamento, existe um trabalho de continuidade dessxs autorxs? No sentido de abertura para além dos circuitos?
Acho que estamos fazendo milagre pra publicar mais de 60 títulos com um orçamento de 30 mil reais. A distribuição é responsabilidade dxs autorxs, inclusive porque previmos, como parte dos objetivos do projeto, que o compartilhamento do ofício de encadernação e autopublicação é uma ferramenta que permite alguma autonomia econômica e possibilidade de geração de renda. O que fizemos é incluir, além dos mutirões de encadernação, uma formação específica em auto-assessoria de comunicação pra escritorxs da literatura marginal, que vai ser com a querida Jéssica Balbino, do Projeto Margens.

Nesse sentido que você tá perguntando, nossa ideia é compartilhar estratégias de auto-publicação, divulgação, venda. Noções básicas de empreendedorismo. Incluir os livros no catálogo e no site da Padê, dando visibilidade pra essas obras e autorxs a partir da janela em que a Padê tá se tornando, uma referência mesmo na publicação de autoras negras e/ou LGBTQI no Brasil, dentro desse mercado editorial independente que ainda é muito branco, muito heterocisnormativo, muito dinheirista e fetichizante.

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Luedji Luna na edição em São Paulo do Sarau Zami, promovido pela Padê Editorial. Ela é idealizadora da Mostra Palavra Preta e coproduz a mostra com Tatiana Nascimento e Cleudes Pessoa. Crédito: Daisy Serena

Como você observa a receptividade do público para esses corpos?
Por enquanto os livros que lançamos são de pessoas que são/somos bem recebidas nas cenas artísticas onde estão/estamos. Nossos livros têm sido bastante vendidos e comentados. As autoras convidadas pra falar sobre os livros, pra participar de saraus. A editora convidada pra eventos na universidade, no mercado paralelo/independente/clandestino de livros, na mídia… acho que tem uma sede de produções negras e/ou LGBTQI literárias assim como as que estamos fazendo.

E acho também que estamos num nicho, né. Fomos acolhidas pela comunidade LGBT, pelo circuito de feiras de publicação independentes, especialmente aquelas ligadas a empreendedorismo negro. Digo isso pelos convites que recebemos. Vejo ainda que a Padê é mais referência como uma editora que publica pessoas LGBTQI do que pessoas negras - por isso, e porque sou uma editora preta, e uma escritora que é sapatão preta com uma pesquisa/poética muito mergulhada na diáspora negra sexual-dissidente, assim tudo junto, faço muita questão de ressaltar que os temas estão articulados, assim como nossas subjetividades, e que publicamos majoritariamente pessoas negras LGBTQI.

[Quero] ressaltar que nosso objetivo é publicar cada vez mais pessoas pretas LGBTQI. O encruzilhar dessas diferenças é que nos movimenta.

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