HQ sobre resistência negra no Brasil é indicada ao 'Oscar dos Quadrinhos'
Recorte de Cumbe, HQ de Marcelo D'Salete indicada ao mais importante prêmio dos quadrinhos.

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HQ sobre resistência negra no Brasil é indicada ao 'Oscar dos Quadrinhos'

Marcelo D’Salete falou à VICE sobre o álbum ‘Cumbe’ e as questões abordadas na narrativa concorrente ao Eisner Awards

Cumbe (Veneta), HQ do paulistano Marcelo D’Salete, foi indicada ao mais importante prêmio internacional da categoria, o Will Eisner Comic Industry Awards, que rola em julho, durante a San Diego Comic Conference, nos Estados Unidos. Mais do que um bem-vindo reconhecimento do talento de Marcelo em termos de construção narrativa e composição visual, a obra leva ao público mundial questões que remetem às origens do racismo no Brasil.

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A partir de intensas pesquisas históricas sobre o Brasil colonial, D’Salete retrata, sob perspectiva expressionista e vigorosa, a luta dos negros contra a escravidão. Emocionantes, as quatro narrativas são a realidade da vida nas senzalas e a consequente resistência daqueles que não aceitavam morrer de joelhos.

O livro foi lançado nos Estados Unidos pela editora Fantagraphics com o título Run For It: Stories of Slaves Who Fought for the Freedom. Na origem, os vários significados atribuídos à palavra “cumbe”, nos dialetos congo e angolano, querem dizer “luz”, “dia”, “força”, “fogo” e “sol”. Assim, a obra colabora para desembaçar a visão sobre o nosso passado.

Pega a ideia que troquei com o autor:

VICE: Como é a sensação de ser indicado ao Eisner Awards? O Will Eisner é uma referência para você?
Marcelo D’Salete: Foi uma grande novidade, não imaginava que isso iria acontecer. O Eisner Awards é uma das principais premiações de quadrinhos do mundo, e essa notícia veio totalmente de surpresa. Em todo caso, acho que é uma indicação importante, não só no meu caso específico, mas pra todos os quadrinhos nacionais, que passam por um momento muito especial, muito prolífico, com ótimas produções, ótimos autores, desenvolvendo temas muito complexos e interessantes. Acho que é um prêmio que vem pra sinalizar, de certo modo, mostrar o quão importante é esse amadurecimento. Sobre o Will Eisner, ele foi uma referência muito forte quando eu estava aprendendo, mais especificamente quando comecei a ler sobre o formato, a mídia de quadrinhos, então fui, claramente, atrás de diversos livros dele, de ficção, e sobre ele. Eisner com certeza é uma referência da minha história.

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Cumbe já é descrito como um clássico dos quadrinhos. Quando você criou este trabalho, já sentia que ele alcançaria tamanha repercussão?
É importante falar que o Cumbe surge a partir de muitas pesquisas sobre o período Colonial. Desde 2006 eu estava totalmente focado nisso. Surgiam os outros livros, mas sempre vinha à mente fazer um quadrinho sobre o Brasil Colonial, escravidão. O projeto inicial era sobre o Angola Janga, sobre o Palmares, aos poucos eu vi ali outras histórias e isso se tornou o quadrinho Cumbe. Quando estava pra publicar ele, em 2014, foi um momento de pensar muito nessa carreira minha de HQ até então, porque os livros anteriores, Noite Luz e Encruzilhada, ficaram muito circunscritos a apenas algumas pessoas que gostavam muito de quadrinhos, que conheciam, colecionadores e tal. Na época de impressão do Cumbe eu fiquei pensando muito nisso, se eu conseguiria encontrar o público que eu queria, o público interessado nessas discussões. Cheguei até a pensar em não usar o formato impresso, web, e ver outras formas de veicular. Mas, no final, acho que o formato impresso foi o melhor pra ele. Foi muito bem aceito o projeto na editora e pelo público também. O que eu acho interessante é que o livro traz para o universo dos quadrinhos pessoas que não necessariamente leem HQ, mas que estão interessadas naquele tema e acabam ficando muito interessadas e impressionadas com o modo de contar. E isso tem a ver com a mídia HQ e as possibilidades que ela oferece.

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Página extraída de Cumbe (Veneta; 176 páginas)

O que você achou da adaptação do título para o inglês?
Bem, esse título surgiu a partir de muitas pesquisas minhas, enquanto eu me deparava com textos isso foi um termo que apareceu umas duas ou três vezes em textos diferentes e eu achei que era o título ideal. Acho que ele é muito forte, muito poderoso. Quando teve essa possibilidade de fazer a tradução pra lá, eles acabaram achando que seria interessante que fosse diferente. Por mais que não tenha sido a minha proposta eu achei uma aposta válida confiar na editora e entrar no que eles propunham de melhor pra publicação de modo que chegue num público ainda maior. De certo modo é um título que foi de sucesso, foi interessante ao público americano, as pessoas estão chegando ao livro e tendo contato com essas histórias, o que eu acho fundamental.

Como funcionou o seu processo de pesquisa e interpretação dos fatos?
Fiz uma pesquisa razoavelmente extensa sobre o período, para a feitura do Cumbe, e para o que se tornou também o livro Angola Janga. Depois, continuei as pesquisas, mas já comecei a fazer os desenhos de finalização e tal. Nesses anos todos de pesquisa a ideia era conhecer um pouco mais a fundo essas narrativas e chegar em histórias que fossem interessantes pra se tornarem quadrinhos. Eu queria fugir um pouco do que é mais comum e tentar encontrar detalhes, nuances interessantes pra pensar nesse período. Pelo menos as duas primeiras histórias do Cumbe que surgiram são bem emblemáticas nesse sentido, ainda mais a primeira “Calunga”, que fala do que a gente chamaria hoje de feminicídio, envolvendo dois escravizados e a forma como ele a trata, a vendo também como objeto, ao mesmo tempo em que ambos são vistos como objetos pelos, entre aspas, senhores.

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Foram narrativas difíceis de se fazer, as do Cumbe, principalmente, pois era o primeiro momento em que eu estava me deparando com aquilo e eu queria transmitir uma ideia, um conceito, sem ser mal interpretado, enquanto lidava com coisas que não são fáceis de se imaginar, como o caso de um escravizado matando a sua companheira, ou no caso de uma mucama que tem o filho de um senhor, e da morte dessa criança. Esse processo de pesquisa foi importante pra chegar em alguns relatos sobre o Período Colonial, falando sobre conflitos que chegaram a instituições policiais, que iam parar na justiça. Nesses registros policiais tinha um pouco uma retomada do cotidiano dessas pessoas. Isso está muito ligado a um aspecto que trata de história social, você pegar os fatos mais particulares do cotidiano dessas pessoas e interpretar a partir daquilo. O que tentei fazer foi um pouco isso.

Quais foram as suas referências visuais para compor o expressionismo dos desenhos e essas imagens fortes?
O meu trabalho segue uma linha de desenvolvimento desde os primeiros livros. Não sou lá um desenhista tão versátil, que muda de desenho, de estratégia, a cada novo quadrinho. Continua razoavelmente o mesmo, com algumas mudanças, claro, devido ao que você vai aprendendo, ao que você vai vendo. A minha grande paixão sempre foi, de certo modo, o preto e branco. Gosto muito de trabalhar com cor, é uma paixão também, mas, eu nesse momento, estava tentando me afirmar, desenvolver, conhecer mais o preto e branco. Considero que ainda estou aprendendo muito e pretendo melhorar bastante. Me baseei muito em alguns artistas históricos pra fazer esse trabalho do Brasil Colonial, dos séculos 17 e 19, principalmente, como Frans Post, Albert Eckhout, Jean-Baptiste Debret, e outros da academia. Isso foi importante pra criar a ambientação de época. Agora, por outro lado, tem outros ícones, artistas emblemáticos que trabalham muito bem com preto e branco e que foram fonte de inspiração, como o Hugo Pratt, Alberto Breccia, José Munhoz e Flávio Colin, além de outros quadrinistas, até japoneses, como Katsuhiro Otomo e Taiyō Matsumoto, que admiro demais.

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Capa da graphic novel que retrata o período colonial brasileiro.

Fale sobre a repercussão do livro aqui e lá fora. A mensagem passada condiz com o que você pensou?
A repercussão no Brasil foi maior até do que eu imaginava, achei que demoraria até um pouco mais pras pessoas chegarem nesse tipo de publicação, mas logo depois da publicação chegou muito rápido num público que me interessa bastante, em grande parte negro, mas não só negro, interessado em discutir história, identidade e cultura negra, e em repensar o nosso Brasil Colonial, o nosso passado escravocrata. Isso foi uma coisa muito interessante. Muitas dessas pessoas são professores, pesquisadores, pessoal de pesquisa ligado a universidade, e interessado em ver o que está sendo produzido de novo em termos de possibilidades de leituras desse passado. Internacionalmente o livro teve uma ótima repercussão. Ele foi publicado em Portugal, França, Itália, Estados Unidos e na Áustria, com distribuição na Alemanha. Pude ir a alguns desses locais, geralmente tinha um amplo público pra poder conversar sobre essas obras, foi algo extraordinário. E também conversar com autores de fora do Brasil. Dá pra perceber que há muita gente interessada nessas novas narrativas sobre a nossa história.

A história do Brasil é uma história de horror, opressão e corrupção. Como é possível se curar de marcas tão profundas?
A nossa realidade hoje é de violências contínuas, de massacre e genocídio. A gente vive dentro de um sistema que permite que jovens sejam mortos no auge da sua vitalidade, que populações indígenas e quilombolas sejam massacradas, e outras pessoas também, em situação carcerária, vivem numa verdadeira condição de barbárie. O que a gente tem é uma letargia e uma anestesia de grande parte da população que não consegue ver isso de fato como um problema social a ser enfrentado amplamente, de todos os modos possíveis. A nossa história, infelizmente, tem afirmado isso nesses cinco séculos. Nossa história sempre foi uma experiência de garantir direitos e uma certa condição de humanidade pra um grupo da população, enquanto outro grupo da população não tem acesso a isso. E esse grupo pode ser morto, pode ser massacrado.

Precisamos superar essa visão. O que somente será possível a partir de diálogo e ações em diferentes frentes na arte, pra se criar uma nova forma de sensibilidade sobre essas questões e problemas nacionais, que muitas vezes não são tratados como problemas. É preciso de ação na política e em várias esferas no nosso universo social. Talvez, neste momento, estejamos ainda numa etapa inicial, que é a de fortalecer essas outras narrativas, fazer com que as pessoas compreendam que essa realidade não é um dado pronto, algo impassível, impossível de se alterar. Não. A gente tem que alterar isso. E a existência, a continuidade do nosso país depende disso. Se não alterarmos isso, cairemos na barbárie. Uma barbárie que pode ser que beneficie um pequeno grupo de elite, ignorando grande parte da sociedade. E, mesmo esse pequeno grupo, está ameaçado. Ninguém se beneficia plenamente, impunemente, de uma situação de barbárie, de violência irrestrita. A violência chega a todo mundo uma hora ou outra. Como superamos isso? Quais estratégias temos de mudança social para, de fato, criar uma outra mentalidade conta racismos e diversas formas de opressão.

Página de Cumbe, por Marcelo D'Salete.

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