O revival psicodélico brasileiro fica ainda maior com o novo livro de fotos inéditas d'Os Mutantes

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O revival psicodélico brasileiro fica ainda maior com o novo livro de fotos inéditas d'Os Mutantes

A fotógrafa Leila Lisboa fala sobre sua convivência com Os Mutantes, que resultou nas imagens de 'A Hora e a Vez', e como eles eram mais caretas que a gente.

Todas as fotos por Leila Lisboa

Em tempos de seca, um motivo a menos pra se lamentar é que a fonte do rock psicodélico anda tão cheia que até transbordou dos limites fonográficos. Tem muita coisa rolando: só neste mês, por exemplo, houve o lançamento do segundo álbum do Boogarins e outro do Supercordas, e a “volta” do festival Banana Progressyva. A fotógrafa Leila Lisboa joga mais água nessa fonte com A Hora e a Vez, livro de fotos inéditas d'Os Mutantes lançado na terça-feira (27). As imagens estavam há tempos esperando para serem publicadas, mas só vieram a público agora, por meio de financiamento coletivo – uma prova da renovação do espírito psicodélico brasileiro.

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A Hora e a Vez reúne 130 imagens inéditas e muitas vezes íntimas feitas entre o final dos anos 60 e início dos 70 com a formação clássica da banda: os irmãos Arnaldo Batista e Sérgio Dias, a Rita Lee, o baterista Dinho e Liminha, baixista e namorado da Leila naquela época.

Mostramos algumas imagens exclusivas do livro (em preto e branco) e batemos um papo com a fotógrafa sobre a intimidade d'Os Mutantes, que embarca nos ensaios, nas tretas, as drogas e outras histórias de quem estava lá para contar. Vem junto:

Noisey: Leila, como e por que você começou a fotografar Os Mutantes?
Leila Lisboa: Na época, eu trabalhava em um estúdio onde aprendi as técnicas de revelação e fotografia em geral. Estava sempre com a minha câmera. Então comecei a namorar com o Liminha e, naturalmente, passei a fotografar Os Mutantes.

Então tudo rolou despretensiosamente.
Ah, sim. Eu não era "a fotografa d'Os Mutantes", era mais a amiga que fotografava o pessoal. Tenho cerca de 500 fotos feitas entre 1969 e 1973, das quais foram selecionadas 130 para compor o livro.

Por que suas fotos ficaram engavetadas durante tanto tempo antes de serem publicadas?
Não foi por falta de tentativa. Há 20 anos estou tentando publicar estas fotos e, nesse tempo, fui recusada por muitas editoras, projetos de incentivo à cultura e tudo o que você possa imaginar.

Para fotografar Os Mutantes, valia tudo ou havia algum tipo de regra?
Não tinha regra nenhuma porque eu fazia parte da turma. No livro há o cotidiano da banda, os momentos de diversão e de tudo um pouco do período que convivi com eles. O livro é um flashback da época da magia, ele traz esse clima. A gente sobreviveu com alegria em tempos de ditadura, e o livro expressa isso.

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"Época da magia", você pode falar mais um pouco disso?
Foi a geração paz e amor, de um jeito que não houve antes e nem depois. Acreditávamos fielmente que a paz e o amor poderiam reinar. É a geração John Lennon; a geração que recusou ir para a guerra; a geração colorida; a geração que juntou um milhão de pessoas em Woodstock sem brigas. Tudo era elevado, e Os Mutantes foram um dos porta-vozes disso tudo.

Você acompanhou os ensaios, os shows e a intimidade da banda. Qual era o momento mais difícil e o mais prazeroso de fotografar Os Mutantes?
O mais difícil era nos shows fechados, pois eu não uso flash, então tinha que ter filmes bem sensíveis à luz e caçar os holofotes. Mas, em geral, tudo sempre foi muito prazeroso.

Por que você escolheu a música A Hora e a Vez como título do livro?
Essa foi a única música d'Os Mutantes censurada pela ditadura militar. Os Mutantes eram tão alegres, brincalhões e coloridos que os militares não entendiam as mensagens subliminares nas canções. Mas depois de uma mudança, a música foi liberada. De certo modo, isso é um paralelo com o que aconteceu com as minhas fotos. Esperei tanto tempo para fazer esse livro sair que finalmente chegou a hora e a vez disso acontecer.

Como você descreve a personalidade de cada um dos integrantes do grupo?
Só posso falar da personalidade deles daquela época. A Rita era muito engraçada, fazia personagens e brincava o tempo inteiro, e o Arnaldo brincava mais ainda. Ele era a cabeça, o gênio do grupo, quem comandava tudo. O Liminha era o moleque, o mais novinho. O Dinho [baterista] era o mais velho e também muito engraçado. O Serginho estava sempre assim, nas nuvens. Ele era o mais paz e amor de todos.

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A Rita Lee era a única mulher da banda. Para você, como isso influenciava na dinâmica deles?
Ela era a dona dos meninos [risos], super protetora, ciumenta, gostava muito deles. Mas isso tudo numa boa, de um jeito saudável e sem nenhum exagero. Eles eram os meninos da Rita, e adoravam porque ela era muito legal. Até a separação da Rita com o resto da banda, nunca rolou encrenca por causa disso.

Boa parte das suas fotos foram feitas no sítio da Serra da Cantareira, em São Paulo, que era tipo o QG d'Os Mutantes no início dos anos 70. Qual foi a importância daquele lugar e daquele momento na obra do grupo?
Na verdade, o Arnaldo já tinha uma casa na Serra da Cantareira, mas depois eles alugaram uma para ensaiar. Era super legal e não tinha nada de rotina. Se eles resolvessem pegar o carro e viajar, eles iam. De vez em quando eles acordavam e já começavam a criar e fazer música a céu aberto. Depois, com a gravação do álbum O A e o Z, eles passaram a ensaiar mais forte. Acompanhar aquilo era indescritível, um banho de luz na alma.

Não é novidade para ninguém que rolava LSD entre Os Mutantes e que isso influenciou o som deles. Para você, quais foram os aspectos positivos e os negativos que esse uso teve na música e na relação banda?
Quando se fala do uso de LSD e outras drogas, fala-se como se Os Mutantes usassem todo dia, e não era assim. Era algo de uma festa, de uma viagem. O LSD tem o dom de abrir a sua cabeça e expandir a sua criatividade. Os pintores e músicos falam muito disso. O Arnaldo acha que o LSD influenciou bastante no processo de criação dele. O Serginho, na época que eu convivi com eles, deve ter tomado uma ou duas vezes. O LSD era novo, alguém tinha que trazer da Inglaterra, então não era sempre que tinha acesso. Quando aparecia, era tudo divido. Tive poucas experiências com o LSD, e gostei, assim como tudo mundo. Era uma alegria, uma coisa colorida, alucinante, e depois passa. A gente não era de beber, de fumar. Éramos mais caretas que muitos jovens de hoje.

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Partindo dessa ideia que muita gente tem do roqueiro que está sempre vivendo à mil, que outro lado d'Os Mutantes você acha que as pessoas deveriam conhecer melhor?
O outro lado, sem ser esse das drogas que ficam falando tanto, era a maior parte de tudo e pra mim a mais interessante. Vida normal, sabe? Levantar, fazer o café da manhã, morrer de rir. Cada um tinha sua vida e os momentos em grupo. A gente foi pra Londres e nos divertimos muito, e as drogas aconteciam eventualmente. A Rita era super ligada ao pai, e o Arnaldo também super ligado com sua família, não era aquela coisa de filho desgarrado. Era tudo gente normal. E cabeluda, né? [risos]

O término conturbado do relacionamento entre o Arnaldo Batista e a Rita Lee influenciou os rumos que cada um tomou a partir disso. Você, que deve ter testemunhado bastante coisa, tem alguma opinião formada sobre isso?
O Arnaldo ficou deprimido com o término, mas seguiu com as ideias dele. Ele teve os percalços que todo mundo sabe, mas hoje continua uma graça, com a memória perfeita e engraçado. Esse fim deles foi muito triste pra todo mundo. Foi algo que começou por conta da música. Os meninos queriam se aprofundar na técnica musical para o rock progressivo, e a Rita queria ir para o pop rock. Os atritos vieram da música e, depois que a Rita deixou o grupo, ela foi para o pop rock e teve bastante sucesso com isso.

Como você vê o relacionamento atual do Sérgio, do Arnaldo e da Rita?
O relacionamento entre os três não existe. São coisas da vida, de gente que conviveu muito. Com a música e o ego no meio, a convivência ficou mais difícil depois de certo tempo. Eu entendo ambos os lados, cada um tem seu motivo, mas ainda me relaciono muito bem com todos da banda, mas a Rita se isolou um pouco de uns anos pra cá.

O seu livro foi financiado coletivamente tanto pelos fãs antigos quanto pela galera mais jovem que descobriu o som da banda recentemente. Na sua opinião, além dos motivos musicais, porque Os Mutantes continua chamando atenção tanto tempo depois do fim do grupo?
Não tem como deixar de falar da música deles. Era algo raro, de outro planeta, feito com muita criatividade e com muita qualidade. Os Mutantes são idolatrados até hoje na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde são um símbolo cult. Muitos jovens passaram a entender a força da geração dos anos 70 a partir da música d'Os Mutantes e de outras bandas, e isso é um fator que pode inspirar mudanças ainda nos dias de hoje.

A Hora e a Vez foi publicado pela Realejo Livros e pode ser comprado aqui.

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