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Edição Uganda

Quando as Armas Falam Mais Alto Que as Palavras

Falamos sobre liberdade de imprensa quando as ruas de Paris foram tomadas por um milhão de pessoas. Mas, se não agirmos, logo o silêncio voltará – e se transformará no mais perfeito de todos.

Te vejo no próximo massacre. Te vejo na próxima vez que uma carnificina congregar todo mundo. Toda a atenção, toda a união que se seguiu ao tiroteio no Charlie Hebdo já começou a perder força, e logo nos depararemos com o próximo ataque entre abraços e declarações de que a liberdade de expressão deve ser defendida como base de todos os outros direitos. Mas onde estavam todos antes da chacina?

A pessoa que está lendo este artigo talvez more nos EUA. Talvez considere a liberdade de expressão um direito inato. Talvez não consiga imaginar a possibilidade de morrer por um livro, um artigo ou, simplesmente,uma forma de dizer algo. Claro, muitos jornalistas norte-americanos morreram nos últimos tempos por dizer a verdade: Steven Sotloff, James Foley, Daniel Pearl e Luke Somers, para ficar só em alguns exemplos. Mas eles faleceram na Síria, no Paquistão, no Iêmen – não em Nova York ou no Texas. Esse risco está sempre associado a uma zona de guerra. Mas a liberdade de expressão está sitiada em todo lugar.

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Sergei Dolgov, editor de um jornal de língua russa na Ucrânia, está desaparecido desde junho do ano passado, e há quem diga que esteja morto. O fotojornalista russo Andrey Stenin foi assassinado em seu país natal em 2014, assim como o fotógrafo italiano Andrea Rocchelli. A jornalista turca Sedef Kabas está cumprindo pena de cinco anos de prisão por postar críticas ao governo Erdogan no Twitter. A lista é longa. Nos EUA, o processo por difamação é o instrumento mais importante para coibir jornalistas. Em outros lugares, as ferramentas são balas e grades de cadeia.

Impressionou-me a fala profética do editor assassinado do Charlie, Stéphane Charbonnier, que era amigo meu: "Não tenho medo de retaliação. Não tenho filhos, nem mulher, nem carro, nem crédito. Pode parecer meio pomposo, mas prefiro morrer de pé do que viver de joelhos". Charbonnier, o Charb, fazia cartuns. Era diretor editorial de um semanário satírico. Mas suas palavras pareciam a declaração de um monge guerreiro, um provocador solitário consciente de que cada uma de suas escolhas poderia se voltar contra aqueles ao seu redor.

Chantagem e medo são as ferramentas utilizadas para destruir a liberdade de expressão. E tenha cuidado, pois ela está sendo destruída. Não acredito na posição idealista de pessoas que dizem: "Agora que a mensagem deles se espalhou e chegou a todos os lugares, aqueles jornalistas venceram". Não, não e não. A vida é mais preciosa do que um direito que só pode ser defendido através de um sacrifício como esse. E, mesmo assim, o risco foi subestimado.

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A proteção a Charbonnier, constituída apenas de um motorista e um homem armado, não era um serviço de segurança de verdade. E quando seus colegas mudavam a redação de endereço, perdiam essa segurança na entrada e, em vez disso, recebiam uma patrulha, que fazia rondas eventuais para ver como estavam as coisas, o que não é nada eficiente nesses casos. O público raramente leva a sério repórteres, escritores, artistas e editores em perigo, a não ser quando seu sangue lava o chão. Na verdade, o público muitas vezes suspeita deles. Veja Salman Rushdie, a quem escritores britânicos repetiram palavras que conheço muito bem por experiência própria: "Você devia levar flores para o túmulo do Khomeini, porque, sem ele, você não seria tão famoso". Ameaças contra uma pessoa quase nunca provocam solidariedade de verdade com o ameaçado, apenas suspeitas de que ele encontrou um jeito esperto de aparecer. Contudo, a liberdade de expressão não é um direito adquirido para ser praticado apenas nos jornais e em tribunais. É um princípio que transcende todos os papéis legais e encarna a característica essencial que torna o Ocidente um mundo livre.

Eu estava em Nova York quando aconteceu o ataque. No parque Washington Square, onde foi feita uma homenagem aos mortos pelos terroristas em Paris, quase todos eram franceses. Poucas pessoas nos Estados Unidos entendem que as balas atiradas contra cartunistas e outros inocentes também limitaram a sua própria liberdade de expressão. Aqui nos EUA, a maioria dos jornais fez um "blecaute" contra os cartuns. O respeito à liberdade religiosa camuflou o que era, na verdade, medo – medo de que publicar uma charge desencadearia uma vendeta. Entendo a crença de que um cartum pode ofender, mas, diante de uma sentença de morte anunciada por causa de um desenho, a necessidade de se defender o direito à blasfêmia é mais importante do que a necessidade de se ser cortês.

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Embora a França tenha respondido muito melhor do que outros governos europeus (em situações semelhantes) às ameaças e ao ataque decorrido, declarando que qualquer um que afirme se sentir ofendido com o trabalho deles poderia tomar medidas legais, a violência acabou inundando o povo francês. A reclamação contra o Charlie foi registrada não em um processo ou em pedido de indenização por danos, mas no único tribunal que esses fanáticos conhecem e frequentam: o esquadrão de fuzilamento.

Críticas aos desenhos foram sussurradas, e por vezes bradadas, por toda parte. A revista foi acusada de extrapolar os limites para sair do vermelho. No entanto, a blasfêmia se torna um direito, e até uma obrigação, quando surgem certas questões de princípio. Devemos lembrar que os mesmos jornais que consideraram o sacrilégio do Charlie indecoroso publicam todo tipo de foto de fofoca e violam privacidades sem restrições, coisa que os editores dessa publicação nunca fizeram. O motivo para não publicarem os cartuns não era piedade, mas covardia. Ninguém deveria manter silêncio ou praticar autocensura por medo de ser morto, ameaçado, chantageado ou simplesmente odiado.

Hoje em dia, nos meses que se seguiram ao ataque como nos que o precederam, a Europa esqueceu o direito à liberdade de expressão. O continente não o apagou, mas relegou sua defesa ao hábito; negligenciou-o e continuará a negligenciar até que novamente alguém tente enterrá-lo sob uma montanha de balas. Para além do terrorismo islâmico, a complacência também se reflete no caso das máfias. Na minha experiência, os governos hesitam e os tribunais raramente consideram ameaças como crimes em si, mas apenas meros corolários – ou o reconhecem somente na presença de sangue. Será que você sabe quantos jornalistas morreram no ano passado em todo o mundo? Sessenta e seis foram mortos e 221, presos.

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Como é possível esquecer que, na Turquia, um candidato a membro da União Europeia, 23 profissionais da mídia estão presos por produzirem notícias críticas ao governo? Como pudemos em grande medida ignorar Raif Badawi, o blogueiro que a Arábia Saudita, aliada dos EUA e sua mais lucrativa cliente de armas, sentenciou a mil chibatadas por abrir um fórum de discussão na internet sobre islamismo e democracia? Na Itália, muitos repórteres investigativos, entre os quais eu me incluo, são forçados a viver sob proteção policial 24 horas por dia, enquanto a máfia prospera com impunidade. Na Dinamarca, fanáticos tentaram, em diversas ocasiões, matar o cartunista Kurt Westergaard por fazer uma caricatura do Profeta Maomé, e os apuros dele quase não passam de uma nota de rodapé, mesmo com seu nome no topo da lista dos Mais Procurados da Al-Qaeda. Será que já esquecemos do diretor holandês Theo van Gogh, assassinado em 2004 depois de lançar Submissão, filme que tratava da violência contra as mulheres muçulmanas? Meses atrás, María del Rosario Fuentes Rubio foi assassinada no México por suas campanhas no Twitter contra os cartéis e dezenas de estudantes tiveram o mesmo destino por participarem de um protesto. Mas parece que ninguém na imprensa, e menos ainda no governo, se importa. O fato de que essas coisas não aconteceram em Paris ou Berlim parece ser motivo suficiente para ignorá-las. Independentemente de sermos todos Charlie Hebdo ou não, marchamos em solidariedade somente depois que sangue é derramado. E isso só em algumas ocasiões.

O Charlie não chegava a milhões de pessoas. Estava sempre em crise e à beira de fechar as portas. Não estamos falando de um ataque à CNN ou ao maior jornal da França. Mas o maior não necessariamente será o que mais assusta os extremistas. Em vez disso, eles focaram a agressão em uma das publicações mais decididamente honestas da França, uma revista que criou formas novas, muito visíveis e imediatamente inteligíveis de satirizar as contradições do fanatismo. Com cada vez mais frequência, em vez de atirar em uma base militar ou em um prédio de governo, os terroristas estão mirando em artistas, intelectuais e blogueiros, um esforço para reprimir o próprio pensamento. Traficantes de drogas e regimes tirânicos estão igualmente imersos na guerra contra as ideias. Isso significa intimidar todo mundo, criando uma identificação imediata entre opinião pública e a pessoa assassinada.

Estamos diante de um ataque, não a prédios ou instituições, mas ao último espaço que separa o Ocidente de seus descontentamentos: a liberdade de expressão. Nos últimos dez anos, vivi sob proteção policial por causa de ameaças recebidas da máfia napolitana, e há inúmeros outros como eu pelo mundo. Ecos da indiferença a esses riscos podem ser ouvidos em qualquer encontro político do qual participo. Quem estiver lendo isso agora pode fazer a diferença, compreendendo e dando voz àqueles que estão condenados à morte por uma palavra: aqueles como María del Rosario Fuentes Rubio e os muitos bravos estudantes que sucumbiram depois dela. Os governos deveriam estabelecer a liberdade de expressão como um pré-requisito para relações comerciais, mas o petróleo da Arábia Saudita e o baixo custo da mão de obra chinesa não permitirão que isso aconteça jamais. No ponto em que os governos falham, a sociedade civil pode fazer muita coisa: criar programas para manter essas notícias circulando, dedicar a elas o espaço e o tempo que merecem. Até mesmo minha própria história mostra como a resposta dos leitores e do público é importante. Eu teria sido completamente esquecido se não fosse a divulgação que foi dedicada a mim. O Estado italiano, profundamente corrupto e comprometido, jamais teria me defendido sem a pressão que veio de fora.

Falamos sobre liberdade de imprensa quando as ruas de Paris foram tomadas por um milhão de pessoas. Mas, se não agirmos, logo o silêncio voltará – e se transformará no mais perfeito de todos.

Traduzido do italiano para o inglês por Kim Ziegler e do inglês para o português por Aline Scátola.