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quadrinhos

Laerte

Sim, ele também falou sobre se vestir de mulher, mas seu tio-avô deve fazer a mesma coisa e você não fica perguntando essas coisas para ele que nem um tarado, né? Então relaxa e aproveita.

E como você fez para se esconder?
Eu viajei pro Espírito Santo. Eu tinha uma namorada que era de lá, achei que ninguém tinha essa informação [risos]. E fez o que lá?
Estava escondido. Ela estranhou, ela não sabia de nada. Aí eu falei: “Olha, vou te contar uma coisa, eu sou do Partidão”. Ela quase pulou de alegria: “É mesmo? Ah, que legal, eu também quero”. Ah, foi muito legal (irônico). Aí passou essa fase brutal e animalesca, o Frota foi limado pelo governo e entrou aquela fase da “distensão lenta e gradual”. Voltei ao jornalismo sindical em 78, quando começaram as greves do ABC, eu me juntei ao Antonio Carlos Felix Nunes, que fazia uns jornais sindicais na região, e reconstruí o elo com o jornalismo sindical. A gente fundou uma empresa chamada Oboré para fazer isso, para atender a vários sindicatos, desenvolver uma linguagem de jornalismo e propaganda sindical, de campanha, de luta, e fiquei nisso até 80 e tantos. Nessa fase você fazia alguma coisa autoral que não tinha a ver com essa luta política?
Não, eu estava com uma demanda reprimida interna. Eu trabalhava na Oboré e naGazeta Mercantil. Tinha alguns projetos, algumas ideias de fazer histórias, mas que eram vinculadas à luta sindical, alguma coisa na linha daqueles filmes do Gian Maria Volonté, aqueles filmes políticos, mas não consegui fazer. É verdade que nos anos 80 o Glauco te deu um sermão na rua, e que isso fez você sair daGazeta Mercantil?
Encontrei ele na rua, em Pinheiros, estava indo fazer feira ali na Mourato Coelho e encontrei o Glauco completamente “exuzado”, provavelmente com álcool, cocaína, tudo que ele tinha juntado, e ele começou a me provocar: “Você está jogando a sua vida fora!” . E meu queixo caiu, a Noeli, minha mulher na época, deu apoio a ele, e eu comecei a considerar o assunto mesmo. E daGazeta Mercantilvocê foi direto para a Editora Circo?
Sim, graças a uma proposta do Toninho Mendes, que fez a mesma proposta ao Glauco. Ele nos pagava adiantamentos fixos sobre o que a gente fosse fazer para as revistas. Tem uma coragem aí por parte do Toninho.
Muito corajoso e generoso. Foi o que me permitiu sair daGazetae permitiu ao Glauco dar os passos dele. Eram para as colaborações mesmo. Revista era um negócio bastante ágil, fazer revista para banca, porque você botava e um mês depois tinha acerto de conta, essas coisas. Mesmo considerando a facada fenomenal que a parte industrial comia, era uma boa grana, para nós autores, e acho que para o Toninho também. Ele se fodia muito nessa parte da papelada, acho que ele não tinha capital de giro. Foi o que fodeu com quase todas as editoras da época do chamado “boom dos quadrinhos”. Quando você criou a revista já tinha a tirinha diária dos Piratas?
Não, a tirinha veio depois. “Piratas do Tietê” inicialmente foi uma história para aChiclete com Banana, não era para passar disso. Até hoje tenho dúvidas se deveria ter passado disso [risos]. Mas é verdade, personagem para mim é uma das coisas que acontecem na história. Existem roteiros, existem imagens, vistas, tomadas, planos e personagens, eles fazem parte da história. Tocar um personagem, dar vida a ele fora da história que o contextualizou é para mim quase uma forçada de barra. Você não fica louco de ter que inventar uma história nova todo dia?
Realmente não tem perigo nenhum. Muitos autores novos inclusive me perguntam isso, como fazer quando tiver um branco, quando der aquele vazio existencial, um bloqueio, como entregar uma tira? O que eu digo é que não se deve ter medo. Se você quiser, existem bons facilitadores para esse momento, que é um momento meio perturbador mesmo. Anote coisas que você acha que um dia podem ser histórias, uma situação, um fragmento de ideia, vai juntando tudo numa pasta, numa caixinha de sapato, coisa assim. Chama isso do que você quiser, “fragmentos de ideias”, “fetos” (eu já ouvi essa, tinha uma amiga minha que chamava assim), “armazém”. Eu até hoje tenho isso, mas o fluxo nunca teve grandes problemas. Nem com humor, ter que fazer uma parada engraçada e que não sai?
Não, justamente eu tive o problema com o humor porque eu percebi que esse modo de fazer humor tinha virado uma estrutura mental de natureza viciosa e que eu precisava quebrar. Fazer uma piada, com o correr do tempo, vai virando um caminho mental, uma trilha, que você nem questiona. Você já tem seu modo humorístico de ver determinadas coisas. “Vou fazer uma piada. Do que estão falando por aí? Ah, o assunto é aborto…”, e a sua cabeça vai criando e enquadrando coisas, e não sei, isso pra mim deu, achei que já tinha cumprido um ciclo. Gosto do que fiz, não me arrependo. Quer dizer, me arrependo de várias coisas, mas eu gosto. Quais são os maiores arrependimentos como artista?
Não sei, é não ter feito determinadas coisas, ter passado muito tempo fazendo determinadas outras coisas, não ter tido coragem e paciência e métodos para desenvolver algumas linguagens que eu gostaria. Você chegou a ser roteirista de TV nos anos 90.
Fiz roteiros para aTV Pirata, para aTV Colosso, para oSai de Baixo. Era do mesmo jeito. A natureza das piadas e o material “ideológico” para as piadas era o mesmo que eu usava para fazer tiras. O tratamento de linguagem para a televisão é que foi um aprendizado no qual o Claudio Paiva me ajudou muitíssimo. Ele sempre foi o redator final. Em algum momento você chegou a fazer a redação final também?
No tempo daTV Piratafoi só o Claudio Paiva. Mas eu cheguei a fazer a redação final daTV Colossodurante um ano, mais ou menos, mas aí eu não aguentei, é muito complicado. Sem computador então… Eu às vezes vejo as condições em que já trabalhei—as condições em que eu ainda trabalho, sabe? Não estou mais num ponto de conquistas, estou num ponto de manutenção e olhe lá. Não tenho um estúdio, trabalho no espaço que eu arrumo aqui em casa. Hoje tenho um escritoriozinho porque a minha filha não mora mais comigo, então ocupei o quarto dela, mas antes disso, até pouco tempo atrás, eu trabalhava no meu quarto, cama, armário e mesa. Você tem vontade de fazer uma história grande, uma graphic novel?
Eu continuo pensando em fazer graphic novels, tenho uma ideia sendo gestada, para a Companhia das Letras. Ainda está meio vago, quero fazer algo nesse clima de autobiografia, e que contemple também essa história que eu vivi, social, política, afetiva, vamos dizer um pósLaertevisão. Fico pensando em outras possibilidades, de outra história baseada também em coisas que eu vivi, mas me dá uma canseira prévia muito grande. Combinando meu cansaço real de vida nesse momento com a distância que eu tenho das coisas. Quando você me perguntou do que eu me arrependo… Eu me arrependo de não ter desenvolvido melhor uma coisa de técnica. Sempre tive muita vontade disso, mas muito pouca disciplina, muito pouca paciência para ir fundo nessas coisas. Isso está me pesando hoje. Tenho uma perspectiva do trabalho que isso vai dar e me dá uma angústia, gerada pela impaciência, pelo medo de não dar certo. É uma coisa mental mesmo, porque tudo é possível, é possível enfrentar, terminar. Estou me vendo às voltas com alguns freelancers que estou fazendo agora e encarando esse tipo de problema nestes trabalhos. Por exemplo, uma história do Antonio Prata que estou empacando há meses, está resolvida do ponto de vista de esboço, rascunho, planejamento, mas a arte eu não consigo destravar. Depois de quase 40 anos desenhando eu não consigo destravar a arte. É engraçado porque eu vi um minidocumentário das pessoas falando sobre você no YouTube, e lá tem o Angeli puxando o seu saco loucamente, falando que você consegue desenhar o que quiser, um torno mecânico, sei lá.
Eu não sei desenhar um torno mecânico [risos]. Quando eu trabalhava na Oboré eu fazia essas coisas porque eu tinha uma vaga noção de como desenhar um torno mecânico, usava a memória e colocava numa historinha, simples assim. Filmes, fotos, sempre usei essas coisas. Mas quando fiz a segunda história dos Piratas do Tietê eu me baseei num levantamento fotográfico que fiz com um amigo meu. Fomos para a Marginal, fotografamos e usei para fazer a história, e foi uma diferença gritante, foi muito legal. Agora, fazer isso tudo de novo me coloca nesse problema do cansaço prévio. E ao mesmo tempo eu não desenvolvi na minha vida a capacidade de trabalhar com outros desenhistas, de ser um organizador do trabalho dos outros, fazer um roteiro e passar para um bom desenhista. Algumas vezes eu tentei, fiquei insatisfeito, aí desisti.