A suspensão do WhatsApp mostra que nosso judiciário não manja disso de internet
Crédito: Flickr/ Akio Takemoto

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A suspensão do WhatsApp mostra que nosso judiciário não manja disso de internet

Não foi e não será a primeira vez que veremos um caso bizarro como esse.

No final da tarde de quarta-feira, 16 de dezembro, usuários do Brasil inteiro foram tomados de surpresa com a notícia de que o serviço do Whatsapp seria suspenso por 48h em todo o território nacional a partir da madrugada daquele dia. Como se a história não fosse bizarra o suficiente, os canais de notícia também não informaram o motivo do bloqueio. Especulações e teorias conspiratórias surgiram a rodo. Algumas envolviam o monopólio das empresas de telefonia; outras, a crise atual do governo e a apreensão do celular de Eduardo Cunha que rolou na manhã do mesmo dia.

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Enquanto o país vivia um momento de histeria por abstinência do serviço – cerca de 93% da população usa o zapzap para curtir seus grupões, vale ressaltar –, o real motivo foi divulgado: a decisão judicial decorreu de um processo que investiga um homem que foi preso pela Polícia Civil de São Paulo em 2013, acusado dos crimes de latrocínio (roubo seguido de morte), tráfico de drogas e associação criminosa ao Primeiro Comando da Capital (PCC).

Embora a investigação ocorra em segredo, sabe-se que as autoridades responsáveis pelo caso obtiveram autorização judicial para acessar os dados e informações dos investigados por meio do aplicativo. A treta foi que os responsáveis pelo WhatsApp não colaboraram. Até onde se sabe, ignoraram o pedido. Como não houve colaboração da empresa americana, o bloqueio do serviço de mensagens instantâneas ocorreu como uma forma de punição, ou coerção, determinada pela 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo. Algo como: se não vão ajudar, beleza, a gente vai ferrar com o serviço de vocês. Não é lá muito inteligente, mas foi o que rolou. Um juíz ordenou que as operadoras bloqueassem o acesso ao WhatsApp e, pouco antes da meia noite, o serviço parou.

O bloqueio, porém, durou apenas doze horas. Na começo da tarde de quinta-feira, dia 17, o desembargador Xavier de Souza, da 11a. Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou o desbloqueio do Whats em todo o Brasil. Em nota ao Tribunal de Justiça de São Paulo, ele escreveu que "não se mostra razoável que milhões de usuários sejam afetados em decorrência da inércia da empresa". O mesmo já havia dado, em outras ocasiões, precedentes favoráveis ao desbloqueio do serviço em caso de impugnação de quebra de sigilo. As operadoras acataram a ordem de imediato. E o Brasil enfim voltou a ser um país calmo e sem crise.

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Mas, ainda que o bloqueio tenha sido curto, foi bem impactante. Apenas três horas depois do comunicado, 500 mil brasileiros haviam se inscrito no Telegram como alternativa para se comunicarem e tantos outros haviam instalado VPNs para conseguirem burlar a suspensão. A decisão um tanto quanto bizarra também serviu para nos mostrar o quanto nosso sistema judiciário, tal qual aquela sua tia-avó desencanada da praia, num manja muito dessas coisas de internet.

Segundo o advogado Caio César Carvalho Lima, especialista em Direito Digital do Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados, a medida foi claramente exagerada. "Apenas quem tem acesso ao processo, que é sigiloso, sabe quantas pessoas estão envolvidas na investigação, podem ser 3, 4, 200, não importa. Isso não justifica bloquear o acesso ao aplicativo a cerca de 100 milhões de usuários. A proporcionalidade não foi observada", disse ele ao Motherboard. O advogado também explica que a sanção se deu de maneira indevida, já que coube às operadoras de internet e telefonia móvel cortarem o acesso ao produto.

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Além de descabida, a medida fere os princípios de uso da internet e a liberdade do consumidor de usar os dados como preferir. O Marco Civil da Internet prevê a garantia da neutralidade da rede. Na prática, isso significa que os pacotes de dados usados pela internet devem ser tratados de forma isonômica e que as operadoras não podem discriminar ou regular o conteúdo que o usuário deseja acessar por meio delas. O bloqueio não afetou apenas os brasileiros, mas também qualquer um que quisesse se comunicar com alguém daqui usando o app.

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"Essas decisões vão continuar ocorrendo porque os pedidos na justiça podem ser os mais diversos possíveis. As pessoas vão tomar esse caso do bloqueio como exemplo"

O que é mais impressionante – e terrível – da situação é que casos toscos como esse vão se repetir no Brasil. Algo muito parecido ocorreu no começo do ano, no Piauí. A justiça local queria que o WhatsApp quebrasse o sigilo de alguns usuários para investigar crime de pedofilia no estado. Como ocorreu agora, a empresa não colaborou e um juiz pediu para bloquear o serviço em todo o país. A diferença foi que um desembargador revogou a decisão antes de ocorrer a suspensão de fato. "Essas decisões vão continuar ocorrendo porque os pedidos na justiça podem ser os mais diversos possíveis. As pessoas vão tomar esse caso do bloqueio como exemplo", afirma Caio César.

O advogado Lucas Anjos, do Grupo de Estudos Internacionais de Propriedade Intelectual, Internet e Inovação (GNet) comentou ao Motherboard que há um grande despreparo dos nossos árbitros. Para ele, a maioria nunca teve aulas de Direito e Internet, apesar de vários grupos oferecerem cursos de atualização. Para Pedro Vilela, também da GNet, a questão é geracional: essas coisas só vão parar de acontecer no mesmo dia em que os grupos de família do Whatsapp pararem de compartilhar correntes do tipo 'Repasse essa mensagem para o Whatsapp continuar gratuito'. Isto é: só teremos uma boa gestão dos serviços no país quando todos tiverem mais consciência de como a internet funciona e como ela de fato afeta a vida das pessoas.

No caso dessa investigação de crime, dizem os especialistas em direito digital, o método devia ter sido outro. "Acreditamos que, para ser razoável e proporcional, primeiro deveria ter ocorrido uma advertência, depois multa de 10% do faturamento do Whatsapp, depois suspensão temporária da atividade (apenas de coleta e de transmissão de dados, e não de todo o serviço, como determina o Marco Civil)", disseram Lucas Anjos e Pedro Vilela. "Em último caso é que poderiam ser proibidas as atividades do provedor no Brasil. É um escalonamento natural de sanções, para coagir a empresa a cumprir uma decisão. Acreditamos que esses passos devem ser seguidos e medidos de acordo com a gravidade da ação que gerou o envolvimento do Whatsapp no caso."

Não se sabe também por quais razões o Whatsapp não colaborou nas investigações. Talvez a empresa não estivesse apta a acessar os dados ou simplesmente não tinha como fornecê-los. Essa hipótese foi levantada por Lucas Anjos. Ele também frisa que os juízes devem se ater aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ao emitir decisões. E isso, nem precisávamos dizer, não ocorreu.