Descolonizando meu desejo
Ilustração por Kelsey Wroten.

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Identidade

Descolonizando meu desejo

Como passei a encarar minha atração por homens brancos.

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Sei exatamente o momento em que corpos brancos colonizaram meu subconsciente, e quando homens de olhos azuis e braços musculosos passaram a sustentar meu desejo nos ombros como Atlas.

Eu tinha nove anos, andando por uma loja de departamentos com a minha mãe, quando senti um frio na barriga com a visão de fileiras de corpos brancos sem cabeça vestidos com cuecas pretas coladas. Quando ela me deu a mão para irmos embora, eu já tinha sido capturado – levado para um lugar onde meu corpo era a cueca abraçando a cintura de homens brancos sem rosto. Meses depois, os corpos ganharam rostos: Leonardo em Romeu + Julieta, Ryan em Segundas Intenções, Brad em Clube da Luta.

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A cada novo corpo branco pelo qual me apaixonava, eu me distanciava um pouco mais do corpo que via no espelho todo dia, e corpos que pareciam com o meu nas ruas e corredores da minha escola. E era fácil, já que eu era uma das únicas pessoas não-brancas na minha escola particular no sudoeste da Virgínia – uma escola fundada em 1968, o mesmo ano em que a Suprema Corte decidiu que a segregação nas escolas públicas era inconstitucional.

Os estudantes eram bem pretensiosos; fui apresentado a Christopher Marlowe antes de conhecer Harper Lee. Foi lá que aprendi a ver meu desejo por Leonardo, Ryan e Brad como óbvio, até clichê, comparado com as referências culturais arcanas (e flagrantemente brancas) que meus colegas supereducados e mimados preferiam. Eu também não senti uma fagulha por Louis em Os Sonhadores? Joseph em Mistérios da Carne? Paul em Dogville?

Mas logo comecei a descobrir que meus desejos poderiam ser ligados a um tipo valioso de capital social. E para encontrar meu caminho social e academicamente, me tornei rico em cultura branca, enquanto isso parecia me enriquecer. Comecei a devorar livros, peças e filmes para impressionar meus colegas, quanto mais obscuros melhor; e fazendo isso, descobri que o mundo começava a me imbuir do mesmo peso e valor que eu tinha imbuído a cultura e corpos brancos.

Me modelei à imagem deles, e portas que estavam fechadas para corpos como o meu de repente se abriram. O pai que tinha assoviado "Dixie" durante uma carona para a escola agora me dizia que queria que eu levasse sua filha ao baile. Fui apropriado por círculos sociais exclusivos (provavelmente, agora eu entendo, como um token). E quando minha boca abria, as pessoas olhavam além das minhas tranças, para os meus olhos, porque ouviam uma voz que soava familiar.

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Eu me deleitava – meu status como branco exemplar e único por associação cultural. Foi só quando fiz 18 anos, no meu primeiro clube gay, que comecei a perceber o custo de ser um corpo negro rico em cultura branca.

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Lembro que me vesti com cada parte da simbologia twink que eu tinha memorizado de Justin Taylor em Queer as Folk: chinelos de arco-íris, jeans skinny da American Eagle, camiseta com gola V Abercrombie & Fitch, perfume Hollister e cabelo longo e alisado. Depois de noites assistindo e assistindo hipnotizado a série, eu conseguia recriar o que eu via como um ideal platônico de jovem gay branco de olhos fechados.

Mas quando entrei em câmera lenta pelas portas do clube gay Berlin de Chicago, uma máquina de vento fantasma soprou meu cabelo para trás, e não fui recebido com os olhares lascivos e toques furtivos que sempre imaginei. Só encontrei desinteresse e distanciamento casual.

Primeiro achei que simplesmente estava muito ansioso, então fiquei com uma expressão mais série, menos Justin e mais seu amante mais velho, Brian. Ainda assim, nenhum olhar encontrava o meu. Por trás de cada relance, eu via a repulsa que encontrava meu próprio corpo toda manhã no espelho; era tão inequívoco para eles quanto para mim.

 Aquele tapa de negação – a picada de ler a minha repulsa nos olhos dos outros – foi quando percebi que minha psique tinha sido colonizada, e que eu tinha uma relação prejudicial com o olhar do homem branco.

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Para muitos, perceber isso poderia provocar um momento de autoexame, mas em vez de ajustar o meu olhar, decidi ajustar o olhar daqueles que eu desejava. Se me tornar rico em cultura branca tinha me ensinado alguma coisa, era como colonizar as mentes daqueles que eu desejava conquistar.

"Como assim você nunca ouviu falar de Marlon Riggs?", eu disse para um garoto na biblioteca. "Literalmente não têm por que estudar inglês se você nunca leu Another Country", eu disse a outro. "Isaac Julien ensinou os gays como sonhar depois do pesadelo. Você não assistiu This Is Not An AIDS Advertisement?"

Os garotos brancos que eu cortejava se acendiam diante dos fogos acesos pela arte dos meus antepassados. Isso se tornou o lubrificante dos nossos casos – mas quando as luzes se acendiam e eles me olhavam de cima a baixo, eles ainda se desviavam do meu olhar. Minhas conquistas começaram a parecer fatalistas; eles me viam como parte de uma linhagem de excelência queer negra que eles podiam quantificar e consumir.

Lembro de ir para uma festa num armazém em Pilsen no verão que Michael Jackson morreu. Suor escorria dos pescoços de corpos colidindo ao som do Rei do Pop e Quincy Jones, e num canto, eu cortejava bêbado. Enquanto eu entregava uma diatribe sobre a complexidade negligenciada das letras de Dangerous, escolhi como alvo um garoto do Meio Oeste da escola de arte da cidade, que parecia saído de uma produção regional de Angels in America. Quanto mais eu falava, mas ele se interessava; ele disse sim antes mesmo de eu terminar de perguntar se ele queria ir para minha casa assistir Sweet Sweetback's Baadasssss Song.

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Não muito depois que lambi o gosto de sal do pescoço dele; ele sorriu para mim e depois voltou o olhar para a tela. Percebi que o pau que ficava duro para mim também estava ficando duro para Melvin Van Peebles. E se isso era verdade, a única razão para ele ter vindo para minha casa era para se educar sobre coisas negras exemplares? Eu era só outra coisa negra exemplar?

Comecei a ruminar obsessivamente por que eu sentia essa necessidade de convencer meus amantes brancos que eu era algo mais que apenas "negro" – fazer eles me verem de uma maneira que eu mesmo não conseguia me ver. Como eu podia perguntar se estranhos achavam meu corpo negro belo quando eu via o corpo negro como alienígena, estranho ao meu desejo? Mesmo na minha memória daquela primeira noite no Berlin, os únicos olhos que consigo lembrar eram aqueles nos rostos brancos me rejeitando. E quanto aos garotos no bar que me olhavam nos olhos e viam a mesma repulsa?

Então comecei a descolonizar meu desejo do único jeito que conhecia – escrevendo. Aquela obsessão, como uma coceira, se espalhou por mim do mesmo jeito que moveu meus ancestrais; lentamente comecei a processar o que significava ser um corpo masculino negro num mundo gay branco. Escrevi uma peça explorando o relacionamento entre um artista negro de 25 anos e um colecionador de arte branco de 65, para analisar a maneira como eu era embalado, mimado e colecionado por instituições brancas e como as colecionei e usei em troca. Outra peça imaginava uma relação entre Robert Mapplethorpe e James Baldwin como uma maneira de explorar os homens brancos com quem sai, e o modo como meus ancestrais também tiveram seu desejo colonizado.

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Em Black Face, White Mask, o filósofo da Martinica Frantz Fanon escreveu que os negros não se sentem inferiores aos outros porque se sentir inferior é sentir que você existe. Em vez disso, procuramos reconhecimento obsessivamente, como o reconhecimento do olhar do outro, para poder formular uma existência, para nos tornarmos conscientes.

Como tinha passado a maior parte da vida num mundo branco – obcecado com seus produtos culturais, seus corpos, suas validações – vivi grande parte da minha vida inconsciente de que fazendo isso, eu não estava existindo.

Hoje, escrevo para encontrar minha existência, e remodelar o mundo à minha imagem – não para os brancos, mas para mim. Para repensar as bases do meu subconsciente que têm sido o lar de corpos violentos por tempo demais, e encontrar uma maneira de rabiscar um ser em papel branco com tinta preta.

Matéria parte da série The New Queer da VICE. Leia mais aqui .

Tradução: Marina Schnoor

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