Os suicídios entre policiais em SP
Foto: FelipeLarozza/VICE

FYI.

This story is over 5 years old.

VICE Setembro Amarelo

Os suicídios entre policiais em SP

Altos índices de violência e má remuneração fazem com que agentes cheguem ao extremo de tirar a própria vida.

Trabalhar como policial no Brasil não é nada fácil. Além dos altos índices de violência, a má remuneração, aliada à pressão interna das corporações, faz com que alguns agentes cheguem ao extremo de tirar a própria vida. É o que dados da Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo comprovam com o número de policiais militares e civis que se suicidaram entre 2006 e 2016. Os números, obtidos via Lei de Acesso à Informação, indicam que 228 agentes se suicidaram na última década — o que equivale a um suicídio na polícia a cada 17 dias. Do total de ocorrências, 182 foram com militares (79,8%) e 46 com civis (20,2%).

Publicidade

Os órgãos de segurança costumam calcular a violência em grupos de 100 mil pessoas, principalmente crimes contra a vida, como homicídios e suicídios. Segundo o mais recente relatório da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), publicado em setembro de 2016, e com referências a suicídios ocorridos entre 2013 e 2014, é de 5,6 a taxa de casos do gênero no estado de São Paulo, para grupos de 100 mil habitantes no período. De acordo com o documento, o índice é considerado baixo em relação a outras nações como Rússia, Japão, Hungria, Coreia do Sul, Lituânia, Bielorrússia e Cazaquistão — países onde a taxa varia entre 20 e 40 mortes a cada 100 mil.

Para ter ideia de como os suicídios entre policiais em São Paulo são altos — dentro do universo de óbitos de agentes no estado de São Paulo — basta comparar com as mortes de civis e militares ocorridas em serviço. Segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública, entre 2006 e 2016, 205 policiais militares morreram trabalhando, quase a mesma quantidade dos profissionais que tiraram a própria vida. Considerando os números, os suicídios são responsáveis por quase metade (47%) das mortes não naturais entre PMs. Entre tiras da Civil, foram 42 suicídios contra 66 mortes no cumprimento do dever durante o período.

"É preciso compreender como os policiais são pressionados e as negligências que sofrem" — Aurélio Melo

O número de policiais, tanto civis como militares, que se mataram entre 2006 e 2016 "não é normal", aponta Aurélio Melo, professor do curso de Psicologia e especialista em suicídio da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ele afirmou ser necessário investigar o que a corporação oferece como tratamento e remediação aos policiais. "Falando genericamente, é preciso compreender como os policiais são pressionados, sobre as exigências feitas e também as negligências que sofrem."

Publicidade

Disse ainda que tirar a própria vida, de forma geral, é algo que está atrelado a questões de personalidade. Porém, há também fatores circunstanciais que favorecem o suicídio. "Por exemplo, um médico tem fácil acesso a medicamentos e, os policiais, a armas de fogo e à violência de forma geral".

O especialista explica que, tecnicamente, o suicídio só é considerado como tal quando "de fato ocorre". Porém, no caso de agentes da lei, há comportamentos que psicologicamente se assemelham a um autocídio — como se expor a situações perigosas sem necessidade. "O fato de o policial procurar o perigo é uma forma de suicídio, uma maneira de tentar se destruir", afirmou.

A constante exposição de policiais à violência e à frustração por não poder contê-la leva ao esgotamento de alguns deles. Isso faz com que, segundo o professor, agentes psicologicamente mais abalados fiquem agressivos. "A agressividade é uma energia de todo ser humano, que hora se volta externamente, hora se volta para o próprio indivíduo".

Aurélio Melo falou ainda sobre pacientes agressivos que tratou. Explicou que a autoexigência exagerada provoca um conflito interno implacável — a pessoa "não se perdoa" a ponto de considerar a morte como uma forma de punição ao "fracasso" imaginado. "Entre policiais, acrescentaria ainda o fator da circunstância. Eles estão entre as profissões mais estressantes. O que o psicólogo ou psiquiatra precisa e pode fazer é acolher o indivíduo no sofrimento dele e fazer com que ele entenda o que está acontecendo consigo mesmo. O suicídio não é exatamente uma doença, não é uma epidemia para 'prevenir', ele é uma questão existencial".

Publicidade

"A terapia, num primeiro momento, gera conflito, que diminui a partir do momento em que o paciente começa a fazer escolhas melhores." — Aurélio Melo

O psicólogo disse que há certo preconceito por parte de policiais com relação a profissionais de saúde mental. "Relacionam a gente à ideia de loucura, de fracasso. É como se estivessem pedindo 'arrego'".

Atribui o preconceito à cultura policial, que tenta convencer os agentes de que eles são "fodões" e que conseguem enfrentar qualquer situação sem ajuda de ninguém. No entanto, Melo disse que a terapia é fundamental para que os policiais percebam que existem as lutas contra coisas, que estão em nossas cabeças, e as lutas contra o mundo que a pessoa não quer ver. "A terapia, num primeiro momento, gera conflito, um acirramento que depois começa a diminuir a partir do momento em que o paciente começa a ver o que não via e começa a fazer escolhas melhores. Não posso mudar o mundo, mas não posso me conformar e, para isso, há outras opções além do suicídio".

Além dos suicídios, entre 2006 e 2016, 15.787 PMs foram afastados temporariamente da corporação para se submeterem a tratamentos psiquiátricos. Considerando o período de 11 anos, é como se ocorressem quatro desligamentos diários. A VICE não conseguiu levantar, até a conclusão desta reportagem, a quantidade de policiais civis afastados para tratamento.

Em condição de anonimato, um cabo aposentado da PM conversou com a VICE sobre o suicídio de um colega de farda. A situação ocorreu em 1985, o que demonstra que o suicídio não é um problema novo nas corporações.

Publicidade

O amigo suicida do cabo era conhecido como soldado Canela e ambos trabalhavam do 13º Batalhão da PM, nos Campos Elíseos, região central de São Paulo (SP). "Em nosso meio profissional ele era um cara extrovertido. No quartel era um cara bem tranquilo. Quando saíamos do serviço, costumávamos ir tomar uma cerveja, mas ele não se abria sobre a vida pessoal", disse o cabo.

Além de não falar sobre a intimidade, o soldado Canela precisava conciliar a vida militar com os bicos que realizava nos dias de folga — algo que ainda ocorre até a atualidade entre PMs para complementar a renda.

Certo dia, Canela e o cabo bebiam uma cerveja. "De repente, ele deixou o bar onde a gente estava e resolveu ir para casa". Horas depois, um telefonema recebido pelo cabo informava que o soldado havia se suicidado. "Fiquei sabendo que ele chegou em casa e a mulher dele não estava lá. Ela tinha ido embora e deixou um bilhete para ele falando que estava o deixando. Depois ficamos sabendo que o motivo para isso foi a ausência dele em casa". Quando Canela se matou, contava com 35 anos.

Segundo o cabo, todo policial sabe de alguma história de suicídio entre membros da corporação que, por conta da sisudez e cultura "marrenta", contribui para que as fragilidades de alguns agentes evoluam para o fim da vida deles.

Caso conheça alguém que, independentemente de ser policial, se encontre em um momento de fragilidade emocional, procure ajuda.

Centro de Valorização da Vida (CVV) A instituição é uma das mais sérias do país. Começou em 1962 na cidade de São Paulo e hoje tem 70 postos de atendimento em todo país. Os voluntários se colocam à disposição para ouvir sem julgar ou dar sermão.

Acesse o site: cvv.org.br ou disque 141.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.