Desde o início de julho, com a aprovação da lei de proteção de dados pessoais no Senado, o país aguardava a tão sonhada sanção presidencial de Michel Temer. Embora ela não tenha chegado da melhor forma, o processo significou um avanço do debate em diversas esferas do poder público,. Ainda assim, parece que nem todas as autoridades entenderam muito bem o espírito da coisa.Na segunda-feira de 30 de julho, em evento destinado a peritos criminais, o ministro do STF Alexandre de Moraes sugeriu a criação de um banco de dados genéticos da população brasileira para, além de identificação dos cidadãos, ajudar em investigações criminais. “Se você pode e deve, constitucionalmente, dar sua identificação, que é a digital, hoje mais moderno que isso é o DNA”, falou o ministro segundo o jornal Folha de S. Paulo.
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Moraes relatou ter sugerido ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral que não apenas a biometria, mas também o DNA fosse coletado durante o recadastramento eleitoral. "Qual o problema de se realizar um cadastramento de DNA, que é um exame nada invasivo?”, questionou.A pergunta do ministro pode ter sido retórica e como foi feita em um evento fechado poucos se atentaram à ela. Mas não tem problema, a gente responde mesmo assim: os problemas são bem grandes e, na prática, essa é uma ideia péssima. Se fosse colocada pra valer, criaria um problema tão grave ou pior do que o compartilhamento de dados financeiros de toda a população sem consentimento prévio.“A medida é no mínimo desproporcional”, comentou o especialista em Direito Digital, Renato Leite Monteiro, fundador da empresa Data Privacy Brasil. No caso de usar as informações genéticas como meio de identificação, a sugestão do Ministro seria como usar uma bala de canhão para matar uma formiga, pois foge totalmente a um dos princípios básicos da proteção de dados pessoais, o “princípio da necessidade”. “Se posso atingir aquela finalidade com outro tipo de dado que é menos arriscado, devo utilizar esse dados mais seguros e isso não é uma opção, é uma obrigação”, observou Monteiro.Ele explica que o código genético é um dado extremamente sensível, pois, além de ser um “identificador único universal” — em que cada código pertence a uma pessoa identificável —, é possível, por meio dele, descobrir uma série de outras coisas sobre o dono do DNA: o sexo, a etnia, possíveis doenças e outros dados.
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Conforme aponta Monteiro, quem tiver acesso a essas informações poderia utilizá-las para fins discriminatórios. O problema já existe hoje com a questão do Score de Crédito e do Profiling, em que empresas financeiras podem avaliar o quanto você vale e a sua capacidade de pagamento de dívidas por meio de critérios que não são exatamente claros e muito menos favoráveis a você. “Imagina se essa informação cai em mãos não autorizadas e, por exemplo, elas são utilizadas por uma empresa privada. Isso pode ser desde o cálculo de uma apólice de seguro de saúde ou até mesmo a recusa a uma vaga de emprego”, comentou Monteiro.Ele defende um banco de dados dessa natureza poderia, em um caso mais extremo, favorecer políticas de “higienização da sociedade”, uma vez que há acesso a informações étnicas que podem ser utilizadas contra a pessoa. “Se você for remeter a questões históricas, você teve um registro de todas as pessoas e suas características, por exemplo, na época que a Alemanha invadiu determinados países”, comentou.Um caso que ilustra esse risco de limpeza aconteceu com a ocupação alemã nos Países Baixos. O país mantinha registros detalhados sobre a população desde o século XIX. O banco de dados governamental acabou por facilitar o trabalho de busca e captura de judeus no país, que teve um dos maiores índices de judeus mortos ao final da Segunda Guerra.“Ter um banco de dados com as informações genéticas de toda a população brasileira se tornaria um alvo muito precioso para quem quisesse ter acesso a essas informações”, observou Monteiro. Para ele, manter a segurança desse banco de dados seria uma tarefa que beira o impossível e infelizmente o governo brasileiro não é exatamente famoso pela forma segura como maneja os dados da população.
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A ideia do ministro também não é melhor do ponto de vista da investigação criminal. Como explica Monteiro, ela viola a presunção de inocência. “Você só pode coletar evidências ou algum outro registro se houver suspeita de que houve algum crime”, pontua.Desde 2012 o Brasil possui uma lei que prevê a coleta de dados genéticos de pessoas que cometeram crimes hediondos ou dolosos com violência grave. Apesar da lei atual ser bem menos ampla do que a proposta de Moraes e delimitar razão e prazo para o armazenamento dos dados genéticos — a prescrição do crime —, isso não a torna menos problemática.Como apontou o coordenador de Violência Institucional da Conectas, Rafael Custódio, “a criação de um banco de dados desse tipo acaba funcionando na prática como um banco de suspeitos preferenciais que passarão a ter o estigma de possíveis culpados durante anos, pelo menos aos olhos do Estado”.Custódio aponta que uma das consequências dessa prática é o aprofundamento da estigmatização do que ele aponta como “cliente preferencial” do sistema penal brasileiros: os jovens, pobres e negros.Um outro problema apontado por Custódio em relação a legislação atual é o armazenamento desses dados ser feito pelas próprios órgãos de segurança. Isso não ocorre em países com leis semelhantes para essa área, como no caso dos EUA. “É muito problemático e que pode gerar um conflito de interesses. No Brasil você não tem prevista a possibilidade de uma contra prova ou algum tipo de cuidado maior na manutenção desses dados”, argumenta.A Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) diz que apenas 2% dos perfis de criminosos investigados foram cadastrados no banco de dados. Ainda assim, a lei gera polêmicas até hoje e, pelo que Moraes sinalizou, pode se expandir para outros termos.Leia mais matérias de ciência e tecnologia no canal MOTHERBOARD .
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O DNA coletado no país hoje
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