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Hercílio Pereira Junior, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Foto: Guilherme Henrique

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Este pesquisador mostra como o crack torna o cérebro refém de recaídas

O psiquiatra Hercílio Pereira Júnior expôs em estudo por que é tão fácil para o ex-usuário voltar a consumir a droga: sua parte cerebral de controle de impulsos praticamente não funciona.

Estima-se que quase 4% da população brasileira tenha consumido cocaína em alguma ocasião da vida. São 6 milhões de pessoas que, em determinado momento, inalaram o refinamento da Erythroxylum coca, planta que serve de base para a droga. De acordo com o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 2012, quase um terço disso (cerca de 2 milhões de pessoas) já haviam consumido uma variação mais danosa da cocaína, o crack.

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O aumento exponencial no uso do crack estimulou pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) a investigar quais são os efeitos e as diferenças que a cocaína inalada e a combustão da droga podem acarretar ao organismo. Realizando testes em animais, os pesquisadores identificaram a produção da metilecgonidina (AEME), uma substância com ação neurotóxica que pode levar a morte do neurônio em regiões específicas, num processo conhecido como apoptose-neuronal, ocasionado após a queima da droga.

A partir dos resultados obtidos pelo grupo de Ciências Biomédicas da USP, pesquisadores do Instituto de Psiquiatria da USP, de maneira inédita na literatura correspondente, resolveram analisar como o consumo das drogas, em especial do crack, pode agir no cérebro humano. “Selecionamos 43 usuários de crack, 36 de cocaína inalada e 36 voluntários que não utilizaram nenhuma substância”, comenta Dr. Hercílio Pereira Júnior, pesquisador responsável pelo estudo “Alterações neurocognitivas e morfométricas cerebrais associadas ao uso do crack”, apresentado na USP em julho deste ano.

Durante um mês, eles ficaram internados no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, realizando testes para entender alterações neurocognitivas no funcionamento do cérebro. “Iniciamos o projeto para estudar as funções cognitivas fundamentais: atenção, memória, planejamento, controle inibitório dos impulsos. Essas funções estão em regiões distintas do cérebro, como o córtex pré-frontal e o córtex temporal. O controle dessas funções é importante para que uma pessoa possa se relacionar, estudar, controlar impulsos, aprender”, diz Hercílio.

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"Essa falta de controle inibitório faz com que eles utilizem a droga por mais tempo, sejam mais impulsivos e se coloquem em situação de risco com mais frequência"

De acordo com o pesquisador, a tese central do estudo está baseada na avaliação do lóbulo frontal, partindo de uma lógica já utilizada em pacientes com doenças neurológicas e que apresentam comprometimento importante da região frontal e pré-frontal do cérebro. “Após realizar esses testes, identificamos que usuários de crack tiveram pior desempenho cognitivo, com uma redução da variável do que chamamos de controle inibitório”, explica Hercílio. “Há duas regiões – córtex orbitofrontal e o córtex pré-frontal dorso lateral – que estão associadas ao controle inibitório. Os usuários de crack tem uma desinibição comportamental e uma dificuldade de frear impulsos”, completa.

O fato de o controle inibitório ser afetado pelas substâncias decorrentes do uso do crack geram um círculo comum ao longo dos anos. A prática clínica mostra que usuários da droga possuem maior dificuldade em se internar e, quando saem, estão mais vulneráveis a utilizar a substância. “Essa falta de controle inibitório faz com que eles utilizem a droga por mais tempo, sejam mais impulsivos e se coloquem em situação de risco com mais frequência, envolvendo atos violentos ou exposição a doenças sexualmente transmissíveis”, comenta Hercílio.

Em comparação ao uso da cocaína inalada, Hercílio analisa que usuários de crack tiveram um pior desempenho em testes que envolvem atenção, memória, planejamento e controle motor. Na hipótese do pesquisador, a queima da droga é mais prejudicial principalmente no córtex pré-frontal, prejudicando regiões fundamentais do funcionamento psíquico.

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Ao longo dos testes, reduções do córtex temporal direito, do córtex parietal superior esquerdo, do córtex cingulado anterior e da ínsula anterior evidenciam lesões em uma espécie de rede padrão do cérebro, denominada Default Mode Network (DMN). “A DMN é uma rede ativada quando não estamos fazendo nenhuma tarefa. Por exemplo: estou aqui conversando com você e expressando minha linguagem, movimentando músculos, então algumas regiões do cérebro estão trabalhando para isso. Quando não cumprimos nenhuma tarefa, entramos no módulo ruminante de pensamento. Essa ruminação surge por essa rede padrão. Então, sim, talvez usuários de crack também tenham alteração nessa rede padrão do cérebro”, explica Hercílio.

Diferenças na viagem entre crack e cocaína dão pistas para tratamento

Para além dos efeitos psíquicos, a cocaína inalada e aquela consumida na forma do crack possuem “viagens” distintas. Análises de farmacodinâmica e farmacocinética das drogas explicam: quando você usa uma droga inalada, ela possui um canal de absorção mais lento, passando pela mucosa respiratória, pulmão, corrente sanguínea e, enfim, o cérebro, permanecendo mais tempo no corpo. No consumo do crack esse processo acontece em poucos segundos, o pico de concentração é maior e o prazer mais acentuado. “O cérebro faz conexões e sinapses de acordo com esses picos. Consequentemente, o prazer e o transtorno acontecem com maior velocidade”, diz Hercílio. A tendência, ele assinala, é que o consumo nesse formato promova dependência mais rapidamente.

Segundo estudo promovido pelo pesquisador, “as estratégias de tratamento precisam ser inovadoras e incorporar elementos diversos, como reabilitação cognitiva, manejo do estresse, afetividade, interações sociais, manejo das comorbidades e farmacoterapia”. Algumas expectativas de tratamento incluem a utilização do inibidor acetil colinesterase (galantamina), que pode melhorar as funções executivas, como atenção sustentada. A modafinila, outro inibidor do transportador de dopamina e noradrenalina, pode produzir melhora no desempenho cognitivo, como na memória do trabalho. Além disso, políticas estruturais que tratem o consumo de drogas como fator de saúde pública também precisam ser desenvolvidas. “Propostas para a saúde, de fato, vejo muito pouco, para a saúde como um todo, aliás. E ainda no campo de álcool e drogas, menos ainda. Eu não vi nenhum candidato abordando diretamente o uso de crack, um problema grave no Brasil. Nós teremos novos governantes em breve e sabemos pouco sobre como eles pensam o assunto. Alguns com uma visão mais repressora do tema, outros com um viés mais de saúde pública, que é o ideal para a questão”, afirma Hercílio.

Uma reportagem da Folha de S.Paulo do ano passado mostrou que entre maio e julho, durante o programa Redenção, do ex-prefeito João Dória (PSDB), apenas 17% dos internados concluíram todo o processo. De 734 internações, apenas 122 foram levadas até o fim. “O componente social é fundamental para resolver o problema do crack. Estudos com pessoas em situação de rua, que são usuários da droga, relatam diversos problemas sociais, como ausência familiar, alguma ruptura… E nem a simples internação resolve o problema, porque isso não interrompe a questão”, salienta Hercílio Pereira Junior. “Como qualquer problema complexo, a questão das drogas tem de ser abordada de maneira complexa. O melhor que poderíamos fazer é juntar esforços em áreas diferentes para ter pontos equilibrados nessa resposta à sociedade”, completa.

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