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reportagem

Internos da Fundação Casa falam sobre como é prestar o ENEM para mudar de vida

Dois jovens que cumprem medidas socioeducativas contam o que está em jogo no exame que pode dar a eles uma chance de fazer faculdade.
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Rodrigo e Leandro vão prestar o ENEM PPL nesta semana. Foto: Guilherme Henrique

Um par de chinelos ocupava parte do único fiapo de sombra junto ao muro cinza que compõe um dos pátios do Complexo Vila Maria, em São Paulo. A quadra é cimento puro, com pequenos buracos e uma estrutura de ferro destruída pela ferrugem. Enquanto o sol castigava o terreno, cerca de 50 internos da Fundação Casa fugiam do calor arrebatador em uma área coberta à espera do almoço que seria servido em poucos minutos.

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Logo que entramos no pátio, Rodrigo*, de 17 anos, e Leandro*, de 19, agradeceram a conversa com a reportagem da VICE BRASIL e se juntaram ao grupo de jovens que, como eles, vestia bermuda e camiseta azul, com chinelos da mesma cor e identificação com números amarelos pintados nas roupas.

Diferente daqueles que aguardavam ansiosamente a próxima refeição, Leandro e Rodrigo fazem parte do grupo de 307 internos da Fundação Casa, distribuídos em 87 centros socioeducativos no estado de São Paulo, que vão prestar o Enem PPL nesta terça-feira (11). Assim como o Enem ocorrido no início de novembro, o Enem PPL, destinado a adultos presos e adolescentes internados, possibilita o acesso à vagas no Ensino Superior por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), bolsas de estudos no Programa Universidade para Todos (ProUni) ou financiamento pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), responsável pela prova, quase 41 mil pessoas no Brasil, entre jovens e adultos, fizeram a inscrição para prestar o exame. O número registra um aumento em relação ao ano passado, quando pouco mais de 31 realizaram a solicitação. Até 2017, o Enem PPL também era utilizado para certificação de conclusão do ensino médio. A medida foi alterada pelo Governo Federal, que passou a realizar a certificação pelo Encejja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos).

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Foto: Guilherme Henrique

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Foto: Guilherme Henrique

Hoje a Fundação Casa mantém 8455 jovens, divididos em diferentes faixas etárias e níveis de medida socioeducativa. Desse total, 6671 estão internados, 1199 estão internados provisoriamente, 384 em semiliberdade, entre outros programas de atendimento. Os atos infracionais também variam: são 2939 jovens reclusos por roubo qualificado, outros 3933 por tráfico de drogas e por aí vai, passando por furto, homicídio doloso qualificado, estupro e outros, segundo dados da instituição.

A prova do Enem PPL também está dividida em dois dias. A primeira etapa, marcada para esta terça-feira (11), começa às 13h30, e os candidatos, dentre eles Leandro e Rodrigo, terão cinco horas para responder às questões de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias, além da redação. No 2º dia, outras cinco horas abordando questões de Matemática e suas Tecnologias e Ciências da Natureza e suas Tecnologias.

Abaixo, a trajetória de Rodrigo e Leandro.

Rodrigo*, 17 anos

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Foto: Guilherme Henrique

Um risco lateral no cabelo de Rodrigo faz com que seu corte bem alinhado se destaque ainda mais entre os internos da Casa Bela Vista. Possui olhos serenos, lábios grossos e a pele negra. Estatura de, no máximo, 1,80 metros, mas sua estrutura corporal definida e musculosa faz com que sua altura seja maior a depender ângulo de visão. Cria da Zona Norte de São Paulo, também viveu em Guarulhos, antes de voltar ao bairro do Jaçanã, onde cresceu. Sonha ser engenheiro mecânico, estudar nos Estados Unidos e trabalhar em uma grande empresa. “Prometi isso aos meus pais e vou cumprir”, diz.

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Durante a infância, foi apresentado aos pormenores da periferia sem cerimônia. “Cresci jogando bola, brincando de pega-pega. Mas meu irmão mais velho, que hoje está com 24 anos, também roubava”, explica. A curiosidade e a vontade de ter o que quisesse fez com que Rodrigo pedisse dicas ao irmão sobre como entrar para o crime. “Ele me perguntou se eu sabia das consequências, e eu disse que aceitava tudo.”

Aos 15 anos começaram os primeiros roubos, todos à mão armada, garante. “Eu achava que aquilo era uma profissão. Comecei a ganhar dinheiro, ir às festas, comprar roupa”, lembra. Mesmo sem nunca ter repetido de ano, fato que revela com orgulho, a necessidade de ter e ser cantou mais alto que os estudos. “Eu ia para a escola pra ter presença. Gostava de história, de ver os mapas. Mas tinha muito professor que não estava nem aí também”, afirma.

"Fui ao hospital algemado e as pessoas diziam: 'olha o lixo chegando aí'"

Entre o estudo e a vida no crime, Rodrigo, à época, preferiu a segunda opção. A prisão veio entre junho e julho deste ano, após ser identificado como autor de dois assaltados à mão armada e ser enquadrado no artigo 157. “Caí em Guarulhos. No primeiro caso a vítima me reconheceu e, no segundo, fui preso em flagrante”, explica.

Mas uma prova no Senai poderia ter mudado tudo. “Pouco antes de começar a roubar eu fiz uma avaliação para fazer um curso um técnico em engenharia mecânica. Não passei por dois pontos. Fiquei na lista de espera, mas não rolou. Depois disso, acabei desanimando e caí para o crime”, conta.

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Ao longo dos últimos quatro meses, desde que foi para a Fundação Casa, Rodrigo ouve repetidamente que sua casa não é mais a mesma. A irmã de 13 anos diz que ele é a alegria da família, e que tudo está diferente desde a sua internação. “Ela é a coisa mais rara da minha vida. Fico até emocionado só de lembrar o tanto que ela chorou quando veio aqui pela primeira vez”, diz.

O irmão mais velho não sabe que Rodrigo está recluso. “Quando ele foi preso em Santo André, me enviou uma carta dizendo para ter cuidado. Ele já sabia o que eu estava fazendo e mandou esse aviso, mas eu não dei atenção e continuei roubando. Talvez minha mãe fale com ele antes do natal. Ele vai ficar triste”, comenta.

Corintiano e fã de Racionais MC’s, Rodrigo acredita que o Enem possa significar um novo caminho para a sua vida. “Isso aqui está longe de ser uma maravilha, mano. Todo lugar que você vai tem alguém te vigiando. Fui ao hospital algemado e as pessoas dizem 'olha o lixo chegando aí'. É uma humilhação”, conta. “Mas, por outro lado, eles pegam no pé com os estudos. Aqui, vou para a escola e eles me perguntam tudo”, pontua. Para a prova de logo mais, o mantra será aquele que ele carrega desde que entrou na Fundação Casa. “Aprendi isso aqui dentro. Pensar antes de agir, sempre”.

Leandro*, 19 anos

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Foto: Guilherme Henrique

Sentado sem que em momento nenhum recostasse as costas na cadeira, Leandro manteve um olhar aflito durante toda a conversa. As mãos não pararam um só instante, sempre juntas, procurando em vão um lugar para colocá-las sem aparentar nervosismo.

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O sorriso tímido na expressão do jovem criado em São Mateus só aparece quando o assunto é a namorada. “Tenho que valorizá-la por ainda estar comigo”, comenta, enquanto os olhos caminham para direção contrária a minha.

Recluso há um ano e seis meses, Leandro afirma que conheceu a jovem de 22 anos quando ainda estava no “mundão”. “Ela trabalhava na pizzaria da família. Frequentava o local e, depois disso, nos envolvemos”, diz. O relacionamento durou entre quatro e cinco meses até que o jovem fosse preso. “O natural e o que mais acontece é o término do namoro ou o abandono da mulher. Mas ela está comigo e me visita sempre”, afirma.

É pensando no futuro com a namorada e no desejo de cursar Direito que Leandro está disposto a, assim como Rodrigo, prestar o Enem PPL. A escolha pelo curso tem a ver com a companheira. “Minha sogra está terminando a faculdade de Direito. Fui me envolvendo, conversando e quero me aprofundar mais”, garante, para depois dizer que “vai precisar ler muito” quando entrar na faculdade.

"Não quero que meus irmãos façam o que eu fiz. É muito sofrimento"

Durante a infância, uma rotina com dois irmãos mais novos: um de 15 anos e outro de 10. A responsabilidade sobre eles, o exemplo a ser transmitido, também o motivam a sair do crime. “Eles sabem o que aconteceu, mas não ficam perguntando. Quando sair daqui, vou conversar com eles. O de 15 anos está encaminhando, trabalhando em um lava-jato, indo à igreja. O de 10 anos também está tranquilo. Não quero que eles façam o que eu fiz. É muito sofrimento”, argumenta.

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A decisão pelo ato infracional, explica Leandro, foi baseada no desejo comum de ter algo rápido e fácil. “Eu não queria trabalhar, mas gostava de comprar um tênis, minhas roupas. Também nunca gostei de ficar pedindo as coisas pra ninguém. Minha mãe tem os problemas dela pra resolver e não queria atrapalhar. Já tinha feitos outros roubos e acabei me juntei com amizades ruins… Caí em Santo André, no (artigo) 157”, explica.

Ele conta que quando foi para Fundação Casa achou que sua vida tinha acabado. “Eu ia continuar no crime, pensava que não tinha mais jeito. Mas aí fui percebendo o sofrimento das pessoas, da minha família, e decidi que precisava mudar de vida. Agora estou planejando meu futuro, pensando em outras coisas, mantendo a cabeça ocupada”, afirma.

Ao me despedir dos dois, perguntei a Rodrigo qual música dos Racionais ele mais gostava. “Aquela lá… Fé em Deus que ele é justo…”. “Vida Loka parte I”, respondi. “Essa! Curto aquela parte: Onde estiver/Seja lá como for/ Tenha fé/ Porque até no lixão nasce flor”.

* O nome verdadeiro dos entrevistados foi alterado para que suas identidades sejam mantidas em sigilo.

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