Youtuber Spartakus Santiago
Youtuber Spartakus Santiago / Foto: Reprodução Facebook

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"É difícil pro racista aceitar o fato de que um negro pode ter algo caro"

Quando o youtuber Spartakus Santiago fez uma vaquinha online para consertar a tela do computador, muito racista ficou indignado.

De análise do funk, apropriação cultural, Anitta até o racismo institucional, o canal de Spartakus Santiago, 24, no YouTube soma mais de 102 mil inscritos. O jovem negro, nordestino e publicitário por formação faz parte do grupo de youtubers negros que militam publicando vídeos sobre assuntos polêmicos, como casos de racismo, debates sobre cultura pop e causas LGBT+.

Recentemente, Spartakus publicou stories no Instagram falando que a tela do seu MacBook havia sido danificada e que não tinha recursos para o conserto. Após receber mensagens de seguidores oferecendo ajuda, o jovem decidiu lançar uma campanha online para arrecadar a quantia necessária. A vaquinha superou expectativas e logo alcançou quase o dobro do valor inicial. Mas como a internet não deixa passar nada, muitos criticaram a postura do youtuber.

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Ele respondeu a polêmica com outro vídeo falando sobre privilégios da branquitude e o seu trabalho na internet. A questão é que outros artistas e vlogueiros já fizeram prática semelhante de vaquinha online e não sofreram a mesmo rechaça. A diferença? Não eram negros. Conversei com Spartakus para saber o que ele pensa sobre o ocorrido e as relações que perpassam o racismo.

Vice: Por que você acha que a vaquinha online gerou tanto "burburinho"?
Spartakus: Primeiro, porque eu falei que tinha um MacBook porque “não queria ficar atrás dos brancos”. É fato que um computador da Apple é caro e que, devido a anos de exploração do trabalho escravo do povo negro, a maior parte das pessoas que têm poder financeiro para comprá-lo são pessoas brancas. Mas em vez de admitir o privilégio branco, muitas pessoas preferiram se sentir atacadas.

Segundo, porque eu ousei ser um negro que tem um MacBook. Muitas das críticas que recebi falavam que se eu não era rico, deveria comprar um computador barato. Não tenho o direito de juntar dinheiro e comprar o melhor instrumento de trabalho do mercado, pois esse é um privilégio da casa grande. É difícil pro racista aceitar o fato de que um negro pode ter algo caro e mesmo assim estar atrás dos brancos numa estrutura racista.

"Não tenho o direito de juntar dinheiro e comprar o melhor instrumento de trabalho do mercado, pois esse é um privilégio da casa grande"

Terceiro, porque a vaquinha foi um sucesso. Meus seguidores que acompanham meu trabalho e sabem da importância dele não só doaram o valor necessário para o conserto, mas arrecadaram o dobro do valor. Todo o excedente foi doado para a ONG Voz das Comunidades, do Morro do Alemão. E isso incomoda quem acredita na meritocracia, quem diz que nós, negros, vamos ficar ricos trabalhando até a exaustão em subempregos ganhando um salário mínimo.

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Porque a visibilidade de um negro, sobretudo militante, incomoda tanto, visto que as pessoas doaram por vontade própria?
Porque as pessoas não estão acostumadas a ver na mídia alguém que não tem medo de denunciar a desigualdade racial e o privilégio branco. Muitas pessoas, em vez de se engajarem pra mudar a realidade racista, sentem seus privilégios atacados. Eu acredito que nossa voz sempre incomoda e que isso foi apenas um pretexto para silenciá-la.

Você recebeu muitas mensagens de apoio e de críticas? Poderia citar alguns exemplos?
Recebi muitas críticas, sobretudo de gays brancos despolitizados de fóruns da internet (pandlr e bcharts) que vivem ridicularizando o movimento negro. Uma prova que ninguém nunca segurou a mão de ninguém. Esses gays são conhecidos por serem racistas. Anos atrás tentei inocentemente entrar num grupo deles e me disseram que “eu tinha muita cara de Batekoo”. Essas críticas foram reforçadas pela extrema-direita, que ao ver minhas fotos anti-Bolsonaro no meu Instagram, viram uma oportunidade de atacar a esquerda.

Fui atacado pelo MamãeFalei, por exemplo, um dos maiores youtubers pró-Bolsonaro. Essa onda de ódio disseminada no Twitter e em grupos de Facebook permitiu que as pessoas ridicularizassem meus vídeos, minhas fotos e minha trajetória, fazendo inclusive outros pretos acreditarem que eu estava “usando o movimento em benefício próprio”.

Felizmente, meu quilombo é forte e recebi apoio de outros criadores de conteúdo negros na internet que sabem que tudo que eu falei é verdade: Murilo Araújo, Samuel Gomes, Cleyton Santana, Aline Ramos. Além disso, influenciadores brancos aliados da luta da negritude também me defenderam, como a Maíra Medeiros e o Bernardo Fala.

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Vi em algumas páginas pessoas negras comentando que você estaria "envergonhando o movimento". O que você pensa sobre essa "crítica"?
Como disse Emicida num tweet, “Oxalá nos projeta da militância anti-racista que não perde uma chance de se juntar com os racistas para apedrejar um preto”. É muito triste ver os pretos acreditarem mais em fóruns racistas do que em quem sempre esteve lutando pela causa da negritude. Eu sou um youtuber negro e achei que como todo youtuber, eu tinha direito de pedir apoio dos meus seguidores para fazer uma vaquinha. Não é porque eu falei da desigualdade racial no YouTube que usei o movimento para conseguir doações. Eu sempre estou falando da desigualdade racial. Esse é meu trabalho como ativista negro.

"Toda a riqueza produzida por mãos pretas na escravidão foi para o bolso das famílias brancas que estão na classe média e batem no peito para dizer que conseguiram tudo por esforço próprio"

Em que medida a meritocracia e o racismo andam de mãos dadas? E como você enfrenta essa questão?
Nossos avós foram expulsos das senzalas e deixados ao relento após centenas de anos de escravidão. Toda a riqueza produzida por mãos pretas nesse período foi para o bolso das famílias brancas que estão na classe média e batem no peito para dizer que conseguiram tudo por esforço próprio. Enquanto isso os pretos ficaram na pobreza, sem educação e oportunidade. O argumento da meritocracia diz que nós, negros, temos que vencer toda essa estrutura desigual e apagar toda essa história com esforço individual, ou seja, que os brancos não têm nada a ver com nosso problema. É o argumento perfeito para livrá-los da culpa e condenar os pretos à miséria.

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Que aprendizado você tira dessa experiência da vaquinha? O que fica de ruim e o que fica de bom, enquanto força para continuar seu trabalho?
Eu aprendi que qualquer voz levantada contra o racismo é uma ameaça ao privilégio branco. Que sempre estarão esperando uma oportunidade para nos derrubar, como derrubaram Marielle. Além disso, tentarão nos colocar uns contra os outros para tentar nos enfraquecer. É preciso estar sempre em estado de alerta. Mas saio disso tudo fortalecido, sabendo que meu trabalho é relevante a ponto de fazer vir a público todo o racismo velado desse país. Agora todos estão em novembro debatendo a desigualdade racial entre criadores de conteúdo no YouTube. Isso é uma vitória.

Você doou o excedente da campanha para uma ong do Rio de Janeiro. Poderia falar um pouco sobre o projeto e o porquê da decisão?
O Voz das Comunidades é uma ONG do morro do alemão criada por René Silva, que serve como veículo de comunicação para as favelas e também promove ações distribuindo alimentos e livros. Doei para eles porque quem me ajudou acredita na luta do povo preto, e eles são extremamente importantes nessa batalha. O Voz está no lugar de maior vulnerabilidade para nós, onde o genocídio negro acontece diariamente. Nada mais justo que doar o excedente para nossos aliados, afinal, nosso objetivo é o mesmo.

Criadores pretos resistirão! Nós somos a vanguarda da luta racial e ninguém vai nos calar.

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