As mudanças climáticas estão alterando a fronteira entre Itália e Áustria
A Geleira Grafferner define parte da fronteira entre Itália e Áustria. O aparelho de GPS monitora o derretimento da geleira e, assim, o movimento da fronteira. Fotos por Delfino Sisto Legnani.

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As mudanças climáticas estão alterando a fronteira entre Itália e Áustria

A fronteira mudou dramaticamente. Embora seja natural que as geleiras deslizem, o arrepio do aquecimento global derreteu mais rapidamente do que qualquer um poderia ter previsto. Eventualmente, a fronteira geo-definida provavelmente desaparecerá.

Matéria original da revista VICE . Clique aqui para assinar.

Em 1991, dois alpinistas alemães na fronteira no norte da Itália com a Áustria toparam com um cadáver marrom e enrugado caído de cara na neve. Achando que o corpo pertencia a algum montanhista azarado, Erika e Helmut Simon tiraram uma foto e continuaram sua trilha até a pousada onde estavam hospedados nos Alpes de Venoste, onde contaram ao proprietário sobre a descoberta.

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Uma equipe de cientistas forenses levou quatro dias para retirar o corpo da neve. Quando finalmente conseguiram libertá-lo, pedaços de couro, corda e feno surgiram do degelo. Os cientistas coletaram os detritos, colocaram o corpo num saco e o levaram de helicóptero para a cidade próxima de Vent, Áustria, onde ele foi colocado num caixão de madeira e levado de rabecão até o Instituto de Medicina Legal em Innsbruck.

Dois dias depois, o arqueólogo Konrad Spindler notou um objeto estranho coletado na cena num saco plástico: um pedaço de madeira, tirada da mão direita do corpo, com uma lâmina de cobre de 10 centímetros. O corpo não era de um montanhista perdido, mas de um homem de 5 mil anos; o machado revelou que os Simons tinham descoberto uma das múmias mais bem preservadas da história.

No dilúvio da mídia que se seguiu, um jornalista de Viena apelidou o cadáver de Ötzi, em homenagem ao vale próximo do lado austríaco da fronteira, mas autoridades italianas insistiam que ele havia sido desenterrado em seu território, o chamando de L'Uomo venuto dal ghiaccio (“O Homem do Gelo”). A fronteira, mapeada ao longo das geleiras do Monte Similaun – uma gigantesca camada de gelo que pode deslizar mais de 9 metros por ano – tornava quase impossível determinar de quem era a múmia. No mês seguinte, a fronteira foi pesquisada novamente pela primeira vez depois da Primeira Guerra Mundial: o corpo tinha sido descoberto 90 metros dentro da Itália.

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Hoje a fronteira mudou drasticamente. É natural que as geleiras deslizem, mas o avanço do aquecimento global derreteu o lençol de gelo mais rapidamente do que todas as previsões. Um dia, a fronteira geodefinida provavelmente vai desaparecer. Em abril de 2016, 25 anos depois da descoberta de Ötzi, uma equipe de geologistas, geofísicos e designers embarcaram numa expedição para instalar sensores de GPS para registrar a fronteira em tempo real e reunir informação sobre a Geleira Grafferner, situada no pé do Similaun, já que seu tamanho a torna um barômetro preciso das mudanças climáticas. E eu fui junto.

O helicóptero teve que fazer três viagens para levar nós 13 até a Grafferner. Usando equipamentos para nos proteger do frio de -10º C, entramos no helicóptero quatro ou cinco de cada vez, ascendendo a 3.300 metros acima do mar até o platô, uma planície branca delimitada pelos picos irregulares das montanhas Dolomitas. Depois que o piloto soltou 300 quilos de equipamento em uma rede presa embaixo do helicóptero, ele nos deixou lá por nove horas.

A equipe se separou para instalar os dispositivos de mapeamento, arrastando os equipamentos e ferramentas em trenós improvisados. Cada aparelho – contendo sensores, baterias e um sistema de aquecimento para funcionar em condições abaixo de zero – tinha que ser fixado no gelo. Enquanto isso, dois dos geofísicos, Roberto Francese e Aldino Bondesan, cavavam um buraco de 1 metro de profundidade para ultrapassar a neve e chegar à verdadeira geleira, onde colocariam um sismômetro (que lê profundidade com vibrações) no gelo, para determinar quanto a Grafferner tinha derretido no último ano. “Se continuar assim”, suspirou Francese, “essa geleira vai sumir em vinte anos”.

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“Mesmo as coisas maiores e mais estáveis como geleiras, montanhas – esses objetos gigantescos podem mudar em poucos anos. Vivemos num planeta que muda, e tentamos criar regras, dar significado, mas esse significado é completamente artificial porque a natureza simplesmente não dá a mínima.” – Marco Ferrari.

É normal que uma parte da geleira derreta e volte a congelar com as estações e mudar ligeiramente a cada ano. Mas nas últimas três décadas, o aumento da temperatura trouxe um degelo preocupante, particularmente perceptível em geleiras menores como a Grafferner. “Em um século, perdemos 70% da superfície da geleira”, disse Bondesan, coordenador do Comitê Glaciológico Italiano. “Os cientistas não têm informações suficientes para entender se isso é uma mudança temporária – induzida pelo homem, o que está claro – ou apenas uma flutuação que vai se recuperar em dez ou cem anos”, ele disse, com o bigode coberto de gelo e restos de bacon que comemos no café da manhã na Pensão Leithof em Vernago, um destino turístico de esqui no lado italiano do vale.

O Leithof é um dos menores hotéis das Dolomitas, e apesar de estar numa área que acabou de sofrer o fevereiro mais quente já registrado, seu negócio ainda não foi afetado. Mas o gerente Rainer Alois disse que as mudanças causam preocupação. No que geralmente é uma das épocas mais frias do ano, no meio de janeiro, flocos de neve artificiais ainda precisam ser lançados nas encostas. “A geleira retrocedeu muito durante os últimos anos, é perceptível a olho nu”, me disse Alois. “Estou bem velho. Quando eu morrer, a geleira ainda estará aqui. Mas para os jovens, isso vai ser um grande problema.”

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A mudança devasta o guia de alpinismo local Robert Ciatti. “Sinto falta de como a geleira era quando comecei a escalar. Para mim, a geleira é vida. Agora, no verão, você consegue ver as rochas por baixo do gelo, a terra – é a coisa mais triste.”

Um sensor de GPS no topo da geleira, medindo as coordenadas enquanto ela desliza. Um membro do Comitê Glaciológico Italiano disse: “Em um século, perdemos 70% da superfície da geleira”.

Mas Bondesan explicou que o mais preocupante é o desaparecimento de nossos reservatórios naturais, não o fim de um esporte alpino. Geleiras estocam 69% da água doce do planeta – o principal recurso na Terra. Junte isso ao aumento de mais de 60 metros do nível do mar, e você tem uma crise global de efeito dominó. “O mais assustador”, acrescentou Stefano Picotti, do Instituto Nacional de Oceanografia e Geofísica Experimental (OGS) e que também estava na expedição, é que “esse experimento nunca foi feito antes na natureza”.

“As mudanças climáticas estão acontecendo tão rápido e numa escala tão grande que nos força a mudar as fronteiras de um país”, disse o chefe da expedição de mapeamento, Marco Ferrari. Apesar de a fronteira onde estávamos ser monitorada desde o Tratado de Saint-Germain de 1919, o projeto Limes (“fronteiras” em latim) de Ferrari é a primeira vez em que a divisão é rastreada de maneira consistente e precisa. As fronteiras de um país são “algo que sempre consideramos estável, um aparelho político, a fundação do estado moderno, a coisa mais sagrada, mas essa grande transformação natural deixa claro quão perturbadoras são essas mudanças”, ele disse. “Mesmo as coisas maiores e mais estáveis como geleiras, montanhas – esses objetos gigantescos podem mudar em poucos anos. Vivemos numa planeta que muda, e tentamos criar regras, dar significado, mas esse significado é completamente artificial porque a natureza simplesmente não dá a mínima.”

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Uma fronteira mutante numa geleira, a cinco horas e meia de caminhada da cidade mais próxima e numa parte relativamente pacífica da Europa, não parece o tipo de coisa que inflama o discurso político, mas sempre houve tensão entre austríacos e italianos na região do Tirol do Sul, que foi devolvida a Itália depois da Segunda Guerra Mundial. Vândalos falantes de alemão vivem roubando as placas de sinalização em italiano das trilhas do Similaun como protesto.

Voltando para casa, paramos na cidade de Bolzano, onde um Portão da Vitória dos tempos de Mussolini lembrava a herança fascista da cidade. O governo cercou o monumento de 18 metros de largura, ainda um epicentro de atrito entre as comunidades falantes de italiano e alemão, para o proteger contra vandalismo.

“Matamos 10% dos recifes de coral do mundo, quase extinguimos um terço das espécies anfíbias, criamos uma mancha de lixo no oceano do tamanho dos EUA e estamos nos arriscando a perder nossa principal fonte de água doce: as geleiras.”

Durante um jantar com muito vinho, o professor italiano de design da Universidade Livre de Bozen-Bolzano Simone Simonelli me disse que essas tensões culturais e comportamentais ainda borbulham sob a superfície da cidade plácida. Andando por Bolzano naquele dia, Simonelli tinha cruzado com um pequeno protesto de extrema-direita anti-imigração. Na tarde seguinte, a polícia austríaca entrou em choque com 500 ativistas italianos pedindo respeitos para os refugiados na Passagem de Brenner, onde, nos últimos meses, milhares de migrantes tentaram passar sob a polícia de fronteiras abertas do Acordo Schengen da Europa. No final daquele mês, o governo austríaco começou a construção de uma cerca de arame farpado para impedir o influxo.

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Nos últimos anos, uma rede de fronteiras aparentemente dormentes se tornou o que Ferrari chamou de “uma psicose do século 21” de postos de controle, muros, soldados, campos de refugiados e pessoas deslocadas. “A cartografia é usada como uma ferramenta política para justificar fronteiras, mas fronteiras naturais não são geometria – como humanos, damos a elas valor político”, ele disse. “O Acordo Schengen, que consideramos uma conquista da Europa moderna, é apenas um acordo político que pode mudar da noite para o dia. As fronteiras são completamente artificiais. Da mesma maneira que as definimos, também podemos dizer que elas não existem.”

Um helicóptero parte depois de deixar uma equipe de cientistas na geleira ao pé do Similaun. O grupo instalou sensores de GPS que registram o movimento da geleira em tempo real.

Dezoito anos atrás, os austríacos devolveram Ötzi para as autoridades italianas depois de completarem seus exames. Agora ele descansa numa caixa umidificada no Museu de Arqueologia de Tirol do Sul, onde você pode observar seu corpo molhado e magro através de vidros blindados. Momentos antes de morrer, o Homem do Gelo tinha jantado grãos e carne de cabra. Seu machado – feito com um metal recém-descoberto que definiu aquele período como a Era do Cobre – indica que Ötzi provavelmente era um homem de status. Só os muito ricos podiam ter um item de luxo como aquele. Eles também construíam assentamentos e fortalezas.

De certa maneira, não nos afastamos muito disso em 3 mil anos – além da tentativa de impedir a entrada de pessoas vulneráveis; a diferença é se nossa Terra compartilhada pode continuar nos sustentando. Nossa era frequentemente é chamada de “Antropoceno”, uma época sem precedentes onde os humanos alteraram o planeta para sempre. Matamos 10% dos recifes de coral do mundo, quase extinguimos um terço das espécies anfíbias, criamos uma mancha de lixo no oceano do tamanho dos EUA e estamos nos arriscando a perder nossa principal fonte de água doce: as geleiras. Mudamos bem mais que fronteiras.

“Há alguns mecanismos propostos para explicar como a Terra pode reagir e reviver de certa maneira”, disse Bondesan. Por enquanto, a melhor solução para o derretimento das geleiras – uma ideia bem fraca, segundo os geofísicos – é cobrir o gelo com algum tipo de lençol branco que reflita o sol. Isso é particularmente necessário onde os ventos quentes sopram do Deserto do Saara na África, formando uma nuvem negra sobre os Alpes, o que triplica as taxas de degelo na região já frágil.

No verão antes da descoberta de Ötzi, essas tempestades de areia derreteram o gelo o suficiente para expor o corpo da múmia. No dia em que voltamos ao Similaun, areia ocre novamente passava pela paisagem branca ofuscante. Diferente das pessoas daquele continente, a areia pode viajar milhares de quilômetros sem se preocupar com fronteiras. Os picos da geleira varrida pelo vento lembram mesmo dunas. Talvez isso seja um presságio, porque “sem as geleiras”, disse Francese, “os Alpes provavelmente seriam um tipo de deserto”.

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