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'Theme Hospital' era uma sátira brutal do sistema de saúde norte-americano

Dois sucessores inspirados no game foram anunciados recentemente. Tomara que mantenham a mensagem do original.
Imagem: Electronic Arts.

Matéria publicada originalmente na Motherboard US.

A Sega anunciou um sucessor espiritual de Theme Hospital semana passada. O videogame original colocava o jogador no controle de uma série de hospitais onde era difícil entrar dinheiro e as doenças eram hilárias. O novo jogo é Two Points Hospital e já parece pronto para trazer de volta o estranho senso de humor do original. O trailer vem apenas dois meses depois que a desenvolvedora Oxymoron Games anunciou Project Hospitalsua abordagem própria do simulador de doenças.

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Mas o jogo original não era só outro simulador dos anos 90 com doenças bizarras, como “língua frouxa”. Era uma sátira brutal do sistema de saúde americano.

Em 1997, a desenvolvedora britânica Bullfrog Productions lançou Theme Hospital para PC e PlayStations original. Era um jogo divertido que teve sucesso por seu charme próprio e humor negro. Seu mundo não era de um serviço de saúde público, mas um sistema privado onde cada paciente à beira da morte era uma fonte em potencial de renda ou um corpo a ser examinado por estudantes de medicina. Parece familiar?

Para me preparar para outra rodada gerenciando hospitais cheios de pacientes sofrendo de síndrome de imitador do Elvis, comprei o Theme Hospital na loja virtual GOG. Ele roda bem em emulador DOSBox, mas o mod CorsixTH, criado por fãs, traz o jogo para a era moderna com alta resolução, os bugs consertados e um sistema melhor para salvar o jogo. Se você decidir revisitar o título – e acho que deveria – então o Corsix é a melhor opção.

Esse é um simulador que parece fácil no começo, mas vai ficando mais difícil conforme o jogador aprende a gerenciar sua expectativa de competição. Os jogadores são gerentes de hospital – construindo instalações, contratando e demitindo médicos e pesquisando tratamentos para doenças raras. Não é um simulador estilo sandbox, onde os jogadores constroem seu hospital dos sonhos, mas uma série de cenários onde o jogador aprende seus sistemas e supervisiona diferentes instalações.

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Jogando de novo, rapidamente percebi uma coisa que não tinha notado 20 anos atrás quando era adolescente – Theme Hospital ataca a ideia dos hospitais estilo americano, que lucram dezenas de bilhões de dólares por ano. Só em 2015, os sete maiores hospitais dos EUA bateram o recorde de lucro com $33,9 bilhões, segundo o U.S. News & World Report.

Se saia bem em bairros pobres e o Ministério da Saúde – a versão de Theme Hospital do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA – te manda para os bairros ricos. Para completar cada cenários, um bom gerente de hospital precisa curar um certo número de pessoas, manter a reputação do hospital, fazer a instalação ganhar uma quantidade de dinheiro e guardar uma parte no banco. É uma mecânica que espelha a obsessão dos EUA por ranqueamento de hospitais.

Os dois primeiros são fáceis. Se o jogador consegue gerenciar o hospital corretamente e contratar a equipe certa, as curas e a reputação virão. Fazer lucro é o verdadeiro desafio, e leva a escolhas escrotas. Theme Hospital é engraçado, mas as doenças absurdas como tripa podre e pelo no nariz crônico são uma distração do tom de obrigação de lucrar presente logo na cena de abertura.

Ela mostra um médico vendo um helicóptero chegar, largando seu controle de videogame, jogando uma enfermeira longe e entrando na sala de operação com um herói. Aí a enfermeira tira a carteira da vítima, passa seu cartão de crédito na máquina e vê que ele está no vermelho. O médico, chocado, coloca sua motosserra médica na mesa e a sala de operação joga a vítima pobre num poço.

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A mensagem é clara – se um paciente não pode pagar pelos serviços, ele vai morrer. É uma mensagem que tem novo peso agora, onde a falta de acesso gratuito à saúde mata muita gente todo ano. Segundo um estudo do Annals of Internal Medicine, falta de plano de saúde aumenta o risco de morte em 30%.

Em Theme Hospital, não ter dinheiro significa que você é inútil. Mais tarde, uma máquina de “autópsia automática” fica disponível, e o gerente inescrupuloso do hospital pode mandar pacientes doentes para a máquina para avançar as causas da ciência. Esses pacientes doentes morrem mesmo. Afinal de contas, é uma autópsia, mas a árvore de tecnologia do hospital ganha um impulso e você não perde dinheiro tratando um pobre. Claro, a reputação do hospital sofre um golpe se um paciente vivo acaba topando com a máquina quando vira num corredor errado, mas reputação é mais fácil de recuperar que dinheiro.

Como num hospital de verdade, há infinitas questões com que você tem que lidar. O hospital é muito frio, é preciso mais salas de operação, mais máquinas de refrigerante e – claro – aumento para o salário da equipe. Nenhum desses problemas é sobre realmente cuidar melhor dos doentes, é uma questão de impedir a base de se erodir. Mais aquecimento custa mais caro e geralmente é melhor deixar as pessoas passando um pouco de frio. Isso incuba doenças. As pessoas estão com sede, mas por que colocar bebedouros se as máquinas de refrigerante geram renda?

Médicos e enfermeiros no jogo querem sempre mais dinheiro, mas por que se incomodar em manter um bom médico quando um mais jovem e inexperiente sai muito mais barato? É fácil atingir os objetivos de lucro quando você se livra da equipe que reclama e joga os pacientes pobres direto no incinerador. Depois de algumas horas no mundo do Theme Hospital, eu já estava cinicamente cortando o aquecimento e enchendo as paredes com máquinas de refrigerante. Eu não me sentia bem comigo mesmo.

Jogar Theme Hospital aos 30 e poucos anos é muito diferente de jogar como um adolescente. Todo mundo sabe que a saúde nos EUA é uma história de terror. Tenho 100% de certeza que tenho apneia do sono não diagnosticada, mas fazer um exame de sono para conseguir uma máquina CPAP tem sido um pesadelo burocrático. Mas sei que não sou um caso tão sério, conheço uma mulher com diabete tipo 2 que se mudou para a República Tcheca porque não podia pagar os custos de tratamento nos EUA.

Two Points Hospital está sendo desenvolvido por Gary Carr e Mark Webley, dois dos caras por trás de Theme Hospital. Espero que o novo jogo deles consiga nos lembrar dessa verdade por trás da saúde pública que é tão horrível que você tem que rir, porque essa é uma parte fundamental do Theme Hospital.

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