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O que está acontecendo na Bolívia

Golpe, renúncia de Evo Morales e um vácuo de poder extremamente volátil.
O que está acontecendo na Bolívia

Pela primeira vez em quase 14 anos, os bolivianos acordaram na segunda-feira sem Evo Morales como presidente. No domingo, Morales renunciou numa transmissão televisionada, cedendo a pressões dos militares e de opositores milicianos e semanas de protestos sobre uma suposta fraude eleitoral.

Morales, o primeiro líder indígena da Bolívia, disse que está renunciando numa tentativa de restaurar a calma, dizendo que era “obrigação como presidente indígena e presidente de todos os bolivianos procurar a paz”. Mas sua partida chocante gerou medo da volta dos dias de golpes militares por toda a América Latina. O próprio Morales descreveu as ações contra ele como um “golpe cívico” e disse que ameaçaram prendê-lo se ele não renunciasse, uma alegação que a polícia nega. Durante os protestos houve sequestros de políticos apoiadores de Morales, violência e até queima das casas de pelo menos dois deles.

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Enquanto sua renúncia acalmou os protestos contra o governo, analistas alertam que sua partida deixa um vácuo de poder extremamente volátil, onde enfrentamentos violentos entre simpatizantes de Morales e a oposição provavelmente vão continuar.

Como chegamos aqui?

Bolivia protests

No domingo, 10 de novembro de 2019, o presidente da Bolívia, Evo Morales, renunciou depois de pressões sociais e a perda do apoio das forças armadas do país. Foto de arquivo de fevereiro de 2010. Crédito: EL UNIVERSAL / Arquivo da Agência EVZ (GDA via AP Images).

A Bolívia, um país de 11 milhões de habitantes, está encarando protestos desde a eleição em 20 de outubro, quando Morales tentava seu quarto mandato depois de uma ação polêmica do tribunal constitucional de eliminar limites para mandatos presidenciais.

Sob as leis eleitorais bolivianas, um candidato a presidente precisa ganhar 50% dos votos – ou 40% com 10 pontos de vantagem sobre o segundo colocado – para evitar que a eleição tenha um segundo turno. Mas há debates se Morales conseguiu alcançar esse limiar.

Observadores começaram a suspeitar quando oficiais da eleição pararam de repente de anunciar os resultados por cerca de 24 horas sem explicação. Quando os resultados finais foram anunciados, Morales – que estava liderando por menos de 10 pontos no começo da apuração – venceu com apenas um pouco mais da margem de 10 pontos necessária para evitar o segundo turno contra seu rival mais próximo, o ex-presidente Carlos Mesa.

Mesa e outros políticos de oposição logo acusaram o governo de fraude, e protestos se espalharam pelo país. Manifestantes de direita começaram a incendiar centros de votação, depois atacar casas de vários membros do partido Movimento para o Socialismo de Morales, inclusive a da irmã do então presidente. Três pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas nos enfrentamentos até agora. Os relatos de violência e sequestros são inúmeros, entre eles o do chefe do TSE do país e o diretor de uma emissora amarrado numa árvore. A prefeita de Vinto, Patricia Arce, foi detida por uma turba de homens, que cortam seus cabelos à força e a cobriram de tinta vermelha, e então forçada a desfilar descalça num “cortejo” de quilômetros enquanto era agredida verbalmente e filmada.

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O que mudou no domingo?

Por semanas, Morales resistiu aos pedidos para que ele renunciasse, argumentando que os protestos representavam um golpe ilegítimo ao seu governo. Mas no domingo, uma série de eventos aparentemente o convenceu a deixar o cargo.

- Primeiro, monitores da Organização dos Estados Americanos publicaram um relatório sobre a eleição. Eles descobriram que houve uma “manipulação clara” e pediram que os resultados fossem anulados, e que a eleição fosse realizada novamente sob supervisão de uma nova comissão eleitoral. Morales aceitou as descobertas, dizendo que haveria uma nova eleição.

- Aí, o general Williams Kaliman, comandante das forças armadas bolivianas, e o chefe nacional da polícia Vladimir Calderón pediram que Morales renunciasse para restaurar a ordem, além de pedir que os manifestantes parassem com os protestos.

O ultimato deles parece ter sido suficiente para convencer Morales de que sua posição não era mais sustentável.

“Renunciamos porque não quero mais ver famílias atacadas por instrução de Mesa e [o líder da oposição Luis Fernando] Camacho”, Morales disse no discurso televisionado. “Agora parem de queimar as casas de meus irmãos e irmãs.” Mais tarde ele disse no Twitter que a polícia tinha um mandado ilegal pra prendê-lo, uma alegação que a polícia nega.

O líder dos protestos, Luis Fernando Camacho, do Comitê Cívico, é tido como um fundamentalista religioso e membro duma organização fascista. Alguns minutos antes do anúncio de Morales, Camacho entrou no antigo Palácio do Governo, em La Paz, e depositou uma Bíblia em cima da bandeira boliviana. Ele declarou na ocasião que “A Bolívia pertence a Cristo.” e que “Pachamama nunca retornará ao palácio”. (Pachamama é o espírito andino da Mãe Terra). Imagens que circularam nas redes sociais no final de semana mostravam policiais queimando a bandeira indígena sagrada Wiphala e cortando a insígnia de seus uniformes.

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Vontade do povo ou golpe?

Partidários da oposição celebraram nas ruas na noite de domingo, saudando a renúncia de Morales como um triunfo contra um líder que tentou fraudulentamente se agarrar ao poder.

Mesa, um ex-jornalista televisivo que foi presidente de 2003 a 2005, descreveu a renúncia como “o fim da tirania”.

“Pela Bolívia, seu povo, seus jovens, suas mulheres, pelo heroísmo da resistência pacífica. Nunca vou esquecer esse dia”, Mesa disse num tuíte.

Mas os partidários de Morales e outros governos de esquerda da região, como Cuba e Venezuela, viram os eventos como um golpe e um retrocesso preocupante para um período de governos militares na região.

O México, que está abrigando oficiais de alto escalão da Bolívia em sua embaixada em La Paz, ofereceu asilo político a Morales, que aceitou.

“É um golpe porque o exército exigiu a renúncia do presidente, e isso viola a ordem constitucional do país”, disse o secretário de Relações Exteriores do México Marcelo Ebrard.

O jornal boliviano El Periódico publicou áudios em que políticos e militares bolivianos, além de políticos americanos e brasileiros, estariam dando apoio ao golpe vindouro.

O que acontece agora?

Quatro dos principais oficiais constitucionalmente em posição de suceder Morales renunciaram com ele, deixando a segunda vice-presidente do senado, Jeanine Añez Chávez, como a próxima na linha de sucessão.

Añez, do partido de oposição Unidade Democrática, disse que vai assumir o cargo com o objetivo de realizar novas eleições em 90 dias, como exigido pela constituição boliviana. Mas ela provavelmente precisará do apoio do exército do país.

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Johanna Marris, analista de risco político da IHS Markit, disse a VICE News que a estabilidade da transição do governo depende do apoio das forças armadas. O governo interino também terá que supervisionar a reestruturação da comissão eleitoral, para algo que seja aceito pela oposição, antes da eleição acontecer.

Mas mesmo acreditando que a renúncia de Morales vai desacelerar os protestos contra o governo, ela disse que isso fez pouco para diminuir a violência política entre partidários rivais. Grupos pró e anti-Morales se enfrentaram na noite de domingo, cometendo saques e incêndios criminosos em propriedades de rivais, incluindo contra a casa do próprio Morales.

Marris disse que com os dois lados buscando retribuição, os enfrentamentos provavelmente vão continuar.

Baseada em matéria originalmente publicada pela VICE EUA.

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