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Ilustração por Ben Giles.

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Viagem

As redes sociais estão estragando nossa memória

Documentar nossas vidas na internet pode diminuir a probabilidade de reter alguns desses momentos como uma memória significativa.
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Sérgio Felizardo
Traduzido por Sérgio Felizardo

Matéria originalmente publicada na Edição Verdade e Mentiras da revista VICE. Clique aqui para assinar.

De algum jeito, sempre que me pego passando distraída pelo meu feed do Instagram, acabo quase no final, obcecada pelas primeiras fotos que postei em junho de 2016. Não sei se era a música – Rihanna, Chance, Drake e Kanye lançaram discos que mudaram a minha vida na época – ou a liberdade que vinha de perambular por toda Europa naqueles três meses, mas esse verão é o último que tenho claro nas minhas memórias.

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Postei muitas fotos mais editadas e de qualidade maior nesses três anos, mas essas fotos mais velhas sempre me fazem parar, me banhando com ondas de nostalgia. Para os meus seguidores, aquele verão foi resumido em seis fileiras de três quadrados perfeitamente divididos. Mas quando analiso essas postagens, percebo que os momentos de que me lembro mais fortemente são as noites em praias secretas que nunca pensei em documentar nas redes sociais – eu estava ocupada demais desfrutando de tudo aquilo.

Aquele mesmo verão acabou sendo um momento fundamental para as redes sociais. Com os escândalos de desinformação russa e privacidade de dados ainda abaixo do radar, o Facebook era uma plataforma importante para se manter informado nos meses antes da eleição presidencial de 2016 nos EUA. As atualizações frenéticas minuto a minuto no Twitter se alinhavam perfeitamente com os ciclos rápidos de notícia, enquanto as pessoas debatiam liberdade de expressão e seu significado para a política contemporânea. E o Snapchat, a estrela em ascensão das redes sociais, tinha esnobado uma oferta de $30 bilhões do Google enquanto se preparava para abrir suas ações em 2017.

No verão de 2016, tínhamos menos razões aparentes para não receber as redes sociais nas nossas vidas de braços abertos. Mas como esse abraço afetaria nossas memórias, um processo cognitivo central, seria muito maior do que poderíamos prever.

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Criar uma memória começa com a percepção: Seu cérebro registra sensações visuais, auditivas, olfativas e táteis – como o cheio de sorvete de menta ou o perfume de magnólias nas noites de verão – e as manda para o hipocampo para determinar se elas serão armazenadas como memórias de longo prazo. Fatores como familiaridade, repetição e excitação emocional (um estado de atividade fisiológica aumentada) ajudam a determinar que experiências cruzam a fronteira entre memória de curto e longo prazo. Como o neurocientista James L. McGaugh apontou em seu trabalho de 2013 “Making Lasting Memories: Remembering the Significant”, excitação emocional aumentada durante uma experiência na verdade estimula a amígdala (a parte do cérebro responsável pelas emoções, instinto de sobrevivência e memória) para liberar hormônios de stress – químicos secretados em resposta a ocasiões estressantes ou excitantes – tornando mais provável que essas experiências sejam codificadas como memórias de longo prazo.

A pesquisa de McGaugh, publicada em 2013, parece muito mais relevante agora: O fluxo inextrincável da tecnologia digital nas nossas vidas tornou mais difícil que nunca estar emocionalmente conectado com nossas experiências. Pensando agora, 2016 foi um ponto crucial, uma época em que muitas empresas de tecnologia encaravam uma oportunidade de aumentar a influência das redes sociais no nosso cotidiano. As plataformas que não tinham essa visão, como Vine e Tumblr, recederam para o fundo saturado da tecnologia, enquanto aquelas que anteciparam aquele momento acabariam dominando a paisagem. O Instagram, a plataforma de compartilhamento de fotos comprada pelo Facebook em 2012, foi a maior prova disso.

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Apesar de o Snapchat ter tido sucesso no começo com suas mensagens que se apagavam automaticamente, seu formato “Stories” – que permitia aos usuários postar fotos e vídeos que duravam 24 horas no feed antes de desaparecer – mudou o jogo quando foi lançado em 2013. Três anos depois, o Instagram basicamente roubou a função para sua própria plataforma. Apesar de muita gente – incluindo eu – ter ficado cética no começo, as Stories do Instagram rapidamente dominaram tudo. Na verdade, depois que o Stories apareceu, a plataforma viu sua base mensal de usuários ativos pular de 300 milhões de usuários para 700 milhões no abril seguinte, efetivamente dobrando as taxas de crescimento anual de usuários em apenas oito meses.

O formato Stories quebrou a tendência de imagens estáticas pensadas nos mínimos detalhes típicas do Instagram com sequências elusivas de 24 horas cheias de vislumbres em “tempo real” do dia a dia, dando ao aplicativo um tom mais casual. Marcas e consumidores se beneficiaram da opção e continuam a usá-la até hoje. O lado negativo disso é evidente: Agora há uma pressão para postar com mais frequência e durante nossas experiências mais excitantes – interrompendo o momento para fazer uma story para nossos seguidores.

A primeira vez que me peguei fazendo isso foi na Véspera de Ano Novo de 2016. Eu estava numa festa num armazém com amigos em LA quando a contagem regressiva começou; estávamos aproveitando a companhia uns dos outros e felizes de ter chegado em algum lugar antes da meia-noite. Quando eu estava pegando meu celular para registrar a contagem, mudei de ideia no último minuto e guardei o celular, não querendo deixar aquele momento. Mas quando virei para o meu namorado, ele estava filmando com seu celular, gritando “Três, dois, um!” para a tela. Ele me beijou enquanto todo mundo comemorava, mas lembro de me sentir estranhamente desconectada dele. Fiquei pensando se ele tinha curtido o momento tanto quanto eu.

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Julia Soares e Benjamin Storm, pesquisadores da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, estudam a influência da tecnologia digital na memória há anos. Uma pesquisa que eles lançaram em março passado sugere que, quando tiram fotos com a câmera do celular, as pessoas se desligam do momento para capturar a experiência, e portanto armazenam a memória menos profundamente do que fariam de outro jeito. O trabalho vanguardista deles, “Forget in a Flash: A Further Investigation of the Photo-Taking Impairment Effect”, comparava a memória dos participantes em três cenários: depois de pura observação, documentação no aplicativo de câmera, e documentação sob uma condição quando a foto não seria salva, como no Snapchat. Pesquisas anteriores já tinham estabelecido que uma fonte de memória confiável, como uma câmera, podia piorar a memória das pessoas – um fenômeno batizado de “efeito de enfraquecimento por tirada de foto”. Mas os pesquisadores tinham atribuído o fenômeno ao efeito de “descarregamento cognitivo” (quando as pessoas armazenam suas memórias numa fonte externa em vez de as reter pessoalmente), mas Soares e sua equipe levarem essas descobertas além, testando se o descarregamento cognitivo era a única causa do enfraquecimento de memória ao fazer fotos. Surpreendentemente, não era.

“Nosso estudo mostrou evidência de que o efeito de enfraquecimento por tirada de foto não parece depender de se a foto é salva ou não, de alguém poder dizer para a câmera 'Guarde essa informação pra mim, vou usar mais tarde'”, Soares me explicou por telefone. “Caso contrário, o efeito desapareceria quando elas soubessem que a câmera não é um parceiro confiável.”

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Ela propôs uma nova hipótese de “desligamento de atenção”, que sugere que se envolver com uma câmera ou uma câmera de celular tira a pessoa do momento presente o suficiente para prejudicar a formação de memórias, mesmo depois que ela guarda a câmera. De maneira interessante, quando usando o Snapchat, os participantes tinham a memória ainda mais prejudicada do que apenas tirando a foto, provavelmente por distrações maiores como filtros, efeitos, ou acrescentar texto na interface do aplicativo. Com esse novo entendimento e as descobertas anteriores de McGaugh sobre a ligação entre excitação emocional e memória, de repente fica claro como acrescentar Stories a uma plataforma como Instagram pode impactar profundamente a capacidade de toda uma geração de se manter presente e engajada – e, por sua vez, afetar a formação de memórias pessoais também. (Quando pedi comentários ao Instagram e Snapchat sobre o estudo, o Snapchat não quis comentar, em vez disso oferecendo discutir os valores centrais de seu produto através de um porta-voz. Ele citou como muitas facetas do aplicativo – como não ter likes públicos e comentários, por exemplo – são pensadas para ajudar os usuários a se sentir mais confortáveis se expressando verdadeiramente e vivendo o momento. Até o momento da publicação, o Instagram não respondeu nossos pedidos de comentários.)

“Você está se afastando do momento presente, e é isso que causa esse desligamento. Você está literalmente colocando uma tela entre você e o evento que está tentando registrar. E parece que leva um tempo para se recuperar desse desligamento de atenção, para voltar ao modo 'OK, estou vivendo na experiência presente. Estou presente'”, Soares elaborou.

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Enquanto “estar presente” se torna cada vez mais parte da nossa conversa cercando atenção plena, ser realmente capaz de ficar desconectado das redes sociais parece cada vez mais difícil com cada ano que passa. O ritmo rápido do universo digital não permite isso, nem a pressão para manter as atualizações em dia. E enquanto sentimos o problema num nível voluntário de consumidor, ele é exacerbado quando sentimos que temos que postar contra nossa vontade. Me vejo constantemente atualizando o Twitter para ver as últimas notícias, ou assegurar as pessoas que estou viva e bem no Story do Instagram se passo muito tempo sem postar. Sentir a pressão de ter que produzir conteúdo constantemente para compartilhar com os outros muitas vezes desvaloriza o tempo que tenho para mim mesma – me distraído o suficiente para não conseguir apreciar emocionalmente cada momento na sua totalidade.

A editora de redes sociais da revista Paper, Peyton Dix, compartilha esse sentimento. Quando não está trabalhando, ela tenta se desconectar, mas a natureza social do compartilhamento dificulta isso. “Tenho que colocar no modo avião, com um livro nas mãos. Tipo, não olhe o maldito celular”, ela me disse. “Mas também, sendo franca, como editora de redes sociais isso é impossível. Se algo acontece, tenho que estar na linha de frente dessa publicação. Para garantir que estamos sendo imediatamente responsivos para qualquer crítica em potencial [ou feedback negativo].”

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Enquanto “estar presente” se torna cada vez mais parte da nossa conversa cercando atenção plena, ser realmente capaz de ficar desconectado das redes sociais parece cada vez mais difícil com cada ano que passa. O ritmo rápido do universo digital não permite isso, nem a pressão para manter as atualizações em dia. E enquanto sentimos o problema num nível voluntário de consumidor, ele é exacerbado quando sentimos que temos que postar contra nossa vontade.

Dix adora seu trabalho, mas conhece os efeitos negativos que as redes sociais podem ter na psique e autoestima de uma pessoa. Em sua primeira Semana da Moda de Nova York, Dix sofreu para conciliar suas obrigações pessoais – que incluíam cuidar de uma colega de apartamento depois de um acidente – com suas obrigações profissionais de tuitar os desfiles ao vivo e orquestrar a abordagem deles nas redes sociais que interrompiam constantemente o que ela precisava fazer no presente.

“Lembro de estar esperando minha amiga no hospital, chorando no computador enquanto estava no celular, sentindo tipo 'Posso morrer agora. É demais pra mim'”, lembra Dix. “Aprendi com essa experiência, fiquei muito emocionalmente envolvida e me sentindo drenada. Não vai acontecer de novo.”

Interromper momentos está, no final das contas, no cerne do efeito de diminuição da memória que acompanha o uso das redes sociais. Mas a intenção por trás do motivo para interrompemos certos momentos pode realmente alterar se a memória é ou não armazenada no nosso cérebro. Pesquisas anteriores mostraram que volição – o poder de usar a vontade de alguém, como para tirar conscientemente uma foto para lembrar o momento – na verdade mostra um benefício na retenção de memória. Apesar de a pesquisa ainda estar num estágio preliminar, Soares me disse que “há razões para esperar que quanto mais intenção a pessoa coloca em cada foto, menos chance ela tem de experimentar o efeito de diminuição de memória. Quando alguém está tirando fotos porque precisa postá-las no Facebook, há pesquisas mostrando que você vai lembrar do evento como menos positivo do que se estiver tirando fotos com intenção real”.

O fotógrafo profissional Aaron Ricketts se orgulha de sua capacidade de colocar intenção na frente de seu trabalho. Ele visa capturar movimentos dinâmicos e momentos que chamam a atenção – como sua famosa foto do primeiro pedido de casamento de Offset para Cardi B em outubro de 2017. Como alguém cujas fotos podem garantir ou cancelar com um trabalho, Ricketts enfatiza como, quando capturando um momento, ele está superconsciente da situação e seus detalhes, comparado com um observador comum, muitas vezes entrando num estado emocionalmente aumentado para facilitar lembrar esses momentos.

“Quando fotografo, não estou apenas tirando fotos das pessoas. Geralmente há planejamento envolvido, certas coisas que precisam estar ali antes que a foto seja tirada”, Rickett me disse. “Só posso falar da minha experiência, mas sinto que no geral, fotógrafos precisam estar muito presentes. Isso afeta muito o jeito como lembramos das situações, com ou sem fotos.”

Ser seletivo e atento sobre sua fotografia é um traço que se provou útil no uso do próprio Ricketts das redes sociais. Mesmo que documentar suas experiências seja seu ganha-pão, Ricketts não sente a necessidade de estar constantemente atualizando suas contas na internet. Em vez disso, ele encontrou um equilíbrio entre mostrar ao mundo o que ele está fazendo e guardar coisas daqueles momentos só para ele.

Na nossa era profundamente digital, Ricketts talvez já tenha encontrado o segredo do sucesso: Fotografar, como algo importante e necessário em si, deve ser abordado com moderação e intenção. Da próxima vez que você pegar seu celular para fazer uma Story, é bom lembrar que a documentação digital pode ser prejudicial – não ajudar – como lembrarmos de nossos momentos mais mágicos. E, enquanto raramente podemos escolher evitar totalmente as redes sociais, podemos julgar melhor os momentos em que escolhemos nos desligar – porque, às vezes, vale mais a pena simplesmente existir, viver o momento, e ter uma história para contar depois.

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