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Comida

Coletando Sangue À Moda Cajun

Acompanhamos um "boucherie", onde porcos são abatidos para que todas suas partes sejam consumidas sem desperdícios, assim como seu sangue fresco.

Todas as fotos por Denny Culbert.

No sudeste da Luisiana, EUA, o abate comunal de porcos — chamado boucherie em Acadiana — é uma das últimas tradições culinárias cajuns remanescentes. Também é uma das últimas maneiras de se experimentar o sabor primordial do boudin noir, um chouriço cajun feito com arroz e sangue fresco de porco. As únicas outras maneira de consumir o chouriço cajun é visitando um punhado de matadouros que ainda produzem a iguaria, ou tentar se enturmar com um criador de porcos que forneça sangue suficiente para tentar fazer a receita em casa.

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Um homem se levanta e recita silenciosamente uma oração. O executor espera, ansioso, para descarregar sua arma. Depois do tiro, o fluxo carmim é coletado, salgado e batido furiosamente enquanto as últimas gotas de vida do animal se escoam. O líquido vermelho grosso e morno é reservado. Ainda há muito mais trabalho a fazer. A carcaça é carregada até a mesa do açougueiro, chamuscada e raspada, cortada e eviscerada. A carne é dividida entre os cozinheiros — a pele vai para um lado, as costelas para outro — mas o fígado e os ombros são entregues aos fabricantes de boudin. Na mesa de madeira só sobram sangue coagulado e pelos brancos dispersos. A carne do ombro (paleta) é fervida até que a medula derreta no caldo; depois disso, é jogada no moedor com o fígado e cebolas. O sangue reservado é adicionado à mistura de arroz temperado, carne de porco e vegetais, e ganha uma cor violeta e vermelha bem brilhante. Depois, a mistura é usada para rechear seu invólucro natural e tudo é cozido novamente para terminar o serviço.

Essas imagens foram feitas numa boucherie recente em Lafayette, Louisiana, comandada pelo “açougueiro de aluguel” Toby Rodriguez e seu time de cozinheiros cajuns experientes. Diversos pratos foram preparados na boucherie daquele dia, mas o boudin de sangue roubou a cena. Eu me sentei com Rodriguez ontem para compartilhar um porção de chouriço, arroz e molho, e para discutir a relação entre sangue de porco, abate e o boudin da Louisiana.

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VICE: Como você descreveria o boudin?
Toby Rodriguez: Aqui, no sul da Louisiana, o boudin consiste principalmente de carne de porco, fígado e arroz. Tradicionalmente, esse prato era feito de carne descartada que recheava as entranhas, mais temperos e arroz de grão longo. Adiciona-se também cebola, pimentão e aipo emulsificados, juntamente com salsa fresca e alho poró. O prato muda de região para região da Louisiana. Em alguns lugares, ele é um pouco mais apimentado, em outros ele tem pedaços maiores de carne. O da pradaria, em geral, tem mais fígado, enquanto lugares como Higginbotham e Link preferem mais arroz e bastante pimenta-do-reino. As pessoas gostam mais do boudin que cresceram comendo. Com certeza, há um fator de nostalgia no prato. Acho que o boudin e o torresmo foram os pratos que deram fama aos vários mercados de carne especializados em Acadiana, onde a maior parte do boudin é produzido hoje.

Onde o sangue entra no processo de fabricação do boudin de sangue?
Primeira coisa, você não vai conseguir boudin de sangue num mercado especializado normal. Você o compra numa boucherie ou num matadouro, mas a maioria dos matadouros nem mexe com isso. O sangue é extraído diretamente do ferimento da arma. Você pega o sangue, adiciona sal para impedir a coagulação e depois deixa a mistura descansando. O sangue volta ao processo depois que a carne é cozida e moída com os vegetais emulsificados e temperos. Depois de temperar até o ponto de sua preferência, você adiciona o sangue à mistura de carne. É muito fácil errar o sal num boudin de sangue. Uma pessoa precisa ser corajosa nessa hora e experimentar o sangue cru e a carne cozida para saber se precisa de mais sal. O arroz pode ser acrescentado antes ou depois do sangue, os dois jeitos são aceitáveis. É importante lembrar que o sangue e as tripas ainda estão crus antes de encher os chouriços e cozinhar tudo. Então, se for para congelar, é melhor congelar cru e cozinhar quando for comer.

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Vocês comem o intestino?
Com certeza. Acho que quem não come está perdendo.

Vocês fazem boudin de sangue em toda boucherie?
Sim, sempre fazemos. Eu me sinto mal em desperdiçar o sangue. Queremos chegar a um ponto onde nenhuma parte do animal seja desperdiçada. A única vez em que não fizemos isso foi quando o sangue coagulou num grande suflê. Tínhamos colocado pouco sal.

Qual é o gosto do sangue cru?
Tem gosto de ferro. É como um patê muito rico mesmo.

Como é segurar o porco enquanto o sangue dele se esvai?
É violento no começo. Você sente todos os músculos bombeando e lutando. Essa luta vai diminuindo a cada batida do coração e logo o animal se vai. Nós bombeamos uma artéria que passa ao longo da paleta até o pescoço para pegar até a última gota de sangue. É uma sensação muito natural e calma. Se as pessoas que acham isso horrível viessem até aqui e participassem do processo, elas perceberiam que é algo calmo, como ir dormir. É uma coisa meio inata. É como fazer sexo ou qualquer coisa que nascemos para fazer. Nascemos para ser carnívoros. Acho que isso é uma coisa que todo mundo sabe fazer, mas estamos muito afastados do nosso estado natural como espécie. Agora as pessoas têm uma reação instintiva ao processo. Foi uma evolução ao contrário. Nós somos cortados de nossa cadeia alimentar por nós mesmos. Não entendemos a ordem natural das coisas. Isso não devia chocar ninguém. Devia ser um evento cotidiano completamente normal.

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Quantas pessoas na Luisiana praticam esses boucheries comunais?
Não muitas. Tem uns caras mais velhos em St. Martinville e Eunice, e um grupo mais jovem em Lafayette, mas só. Pouquíssima gente ainda faz isso e eu não entendo o motivo. Tenho 39 anos e quando meu pai era criança, a família dele não fazia compras. Eles abatiam a própria proteína. Não consigo acreditar que desistimos do controle de nossa cadeia alimentar num período tão curto. Agora vou ao matadouro e compro meu porco. Quando era criança, nós tínhamos nossos próprios porcos. A gente ia à feira e comprava um porco de 45 quilos, e depois o engordávamos até os 136 quilos.

Você pode descrever a aparência e o sabor do boudin de sangue depois de cozido?
Você sabe que isso vai ficar com uma cor diferente, mas ele sai com essa tonalidade linda de roxo. Depois de cozido, ele fica preto. Não há nada mais bonito. É um sabor profundamente robusto. Se o boudin branco fosse um merlot, o boudin de sangue com certeza seria um cabernet… Ou talvez o boudin branco seja um Boone's Farm Strawberry Hill e o boudin de sangue seja como um Night Train Express ou um Mad Dog 20/20.

Mad Dog 20/20… Entendi. Obrigado por falar com a gente, Toby!

Denny Culbert é um fotógrafo retratista de Lafayette que documenta a cozinha da Luisiana e que não tem medo de sujar as lentes com um pouco de sangue. Veja mais do trabalho dele em dennyculbert.com.