O que aconteceu com as tão sonhadas cidades subterrâneas?
Rede de passarelas subterrâneas de Montreal. Créditos: Yves Marcoux/Getty

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

O que aconteceu com as tão sonhadas cidades subterrâneas?

Houve uma época, nos anos 60, em que o urbanismo embaixo da terra era visto como solução para os maiores problemas das metrópoles. Por que não vingou?

A redescoberta de uma cidade subterrânea antiga na Turquia, alguns anos atrás, foi um daqueles eventos que a internet devora na maior empolgação. O vilarejo entocado de 5.000 anos de idade, desvelado na cidade de Nevşehir, foi apresentado como bem vasto, com 5,5 quilômetros de túneis e dezenas de câmaras que constituem igrejas, tumbas e outros cantinhos confortáveis.

Em uma conversa com a National Geographic, o prefeito de Nevşehir, Hasan Ünver, observou que os documentos achados remetem a séculos passados, mas que nenhum deles aponta para a existência de toda uma cidade na região. "Encontramos documentos que atestavam a existência de cerca de 30 grandes túneis de água na região", disse.

Publicidade

Não é a primeira cidade subterrânea antiga descoberta na região da Capadócia, na Turquia. Na verdade, desde os anos 60, já encontraram várias. Hoje não refletimos muito sobre esses lugares tampouco sobre passeios subterrâneos como parte da rotina. Nós nos jogamos no sistema de metrô sem pensar duas vezes e só.

Mas você teria coragem de passar o dia inteiro lá embaixo, sem sair para tomar um ar? Isso pode soar como uma pergunta besta, mas houve uma época em que cidades subterrâneas eram vistas como soluções ousadas e empolgantes para os problemas que afligiam as metrópoles na década de 60. Era a retomada de um conceito milenar. Por que, então, não veio para ficar?

Hotel-caverna fotografado durante o pôr do sol na cidade de Goreme, dia 17 de abril de 2016, em Nevşehir, Turquia.


CINCO COISAS QUE AS CIDADES SUBTERRÂNEAS ANTIGAS TÊM EM COMUM COM AS MODERNAS

  • São abrigos práticos contra perigos externos: As cidades subterrâneas modernas são ótimos refúgios na hora que bate um frio severo ou uma chuva implacável. Cidades subterrâneas antigas, como aquelas da região da Capadócia, na Turquia, serviam de amparo contra perigos externos — que incluíam perseguição religiosa, visto que alguns dos primeiros cristãos moravam na região.
  • Possuem áreas para a exibição de arte: As catacumbas antigas de Roma tornaram-se notórias pelas obras de arte cristã primária. Hoje, Crystal City, cidade próxima à capital americana, no estado da Vírgina, também não deixa a desejar, pois se tornou um pólo de arte underground.
  • Apresentam temperaturas consistentes: Uma das maiores vantagens de uma cidade subterrânea da era moderna é que nela ninguém se surpreende com as condições climáticas. É um eterno meio-termo entre calor e frio, bem agradável. As grutas da Capadócia são conhecidas por manter uma temperatura fresca consistente — 13° C, um pouco mais friozinho do que o nosso padrão de conforto, mas perfeito para o armazenamento de frutas, ao que parece.
  • São consideradas fortes centros econômicos em potencial: Durante centenas de anos, a mina de sal Wieliczka, na Polônia, representou tudo aquilo que um local subterrâneo pode oferecer em economia. A mina, que remonta ao século 13, ganhou proeminência financeira graças à necessidade crescente de sal na comida. (A escavação liberou sal até 2007, acredita?) E se tornou uma das primeiras grandes atrações turísticas subterrâneas, com capelas, salas de jantar, hotéis, entre outras atrações que tomaram o lugar ao passo que o sal foi removido. Quando constroem uma cidade subterrânea hoje, esse tipo de sucesso economico é o objetivo de toda a operação.
  • É possível se hospedar nelas: A maioria das cidades subterrâneas planejadas estão ligadas a hotéis. Desde a descoberta das grutas antigas na Capadócia, há 50 anos, partes das cavernas também foram convertidas em hotéis. (Os preços são bons até; é possível se hospedar em um quarto requintado no hotel Cappadocia Cave Suites por uma diária de 150 dólares.)

Halles de la gare, túnel entre a estação central e Place Ville-Marie, Montreal. Créditos: Gene.arboit/Wikimedia

Publicidade

O CRESCIMENTO DA CIDADE SUBTERRÂNEA MODERNA FOI UMA TENTATIVA DE DEIXAR AS ÁREAS URBANAS MAIS QUENTES E MENOS INTIMIDANTES

"O comércio não tem como abandonar o centro. O poder, o dinheiro e empresas concentram-se no centro. É onde acontece de tudo."

Essas são as palavras de Vincent Ponte, planejador urbano ligado à modernização de cidades subterrâneas na América do Norte durante as décadas de 60 e 70. Ele defendeu o conceito para o maior jornal urbano dos Estados Unidos, o New York Times, e essas palavras foram necessárias na época, quando os subúrbios sugaram diversas famílias preocupadas com o declínio das áreas urbanas. Ele consguiu disseminar sua filosofia numa era em que o carro havia vencido.

Sabe qual foi sua solução para tornar as cidades acessíveis para pedestres, refreando os crimes e o tráfico que espantavam o público? Criar uma área onde seria impossível entrar com carro. A maior vitória de Ponte enquanto planejador urbano talvez tenha ocorrido na cidade grande mais original da América do Norte, Montreal, cidade francófona que Ponte adotou como lar.

O projeto ousado de repensar Montreal como uma cidade parcialmente subterrânea fez muito sentido por uma série de motivos — em especial, o fato de que Montreal é um local muito gelado no inverno. Um lugar igualmente gélido, Minneapolis, elaborou uma solução parecida para o problema com um sistema de passarelas acima do solo.

Publicidade

Ponte foi considerado um visionário na época. "Não dá para solucionar o problema de fato alargando ruas e banindo carros", Ponte disse à revista Time em 1970. "É preciso se adaptar, remodelar as coisas e separar os caminhões, carros e pessoas, cada um em um nível distinto. No século 16, Leonardo da Vinci traçou planos para separar o tráfego dessa forma. Rockefeller Center tentou fazer isso nos anos 30."

Ponte começou com pequenos passos. Tirou vantagem de um grande projeto de construção do início dos anos 60, o edifício Place Ville-Marie, para testar alguns de seus experimentos em design urbano. Isso gerou um dos principais pólos da cidade subterrânea de Montreal, grande centro comercial. E assim seguiu, com a Exposição Mundial de 1967 — um festival mundial situado em Montreal — trazendo investimentos robustos para a região numa tentativa de angariar o suporte financeiro necessário para realizar os planos. E não é que conseguiram?

Atualmente, os túneis subterrâneos de Montreal somam 30 quilômetros de extensão e abrangem 41 quarteirões. É o maior sistema do mundo. Não dá para ignorar o sucesso de Ponte com a ideia.

O triunfo dele inspirou crescimento em outros lugares. Ele logo fez uma proposta semelhante de comoção urbana para Dallas, um projeto que se estenderia por 36 quarteirões. Em 1968, uma capa da revista Esquire, voltada para o sudeste dos Estados Unidos, proclamou em alto e bom som que "Vincent Ponte deveria tomar conta de Dallas". A visão de Ponte, embora controversa, empolgou geral. Para ele, o conceito básico poderia ser traduzido para quase todas as grandes cidades.

Publicidade

"Todo mundo sai ganhando", Ponte disse à revista Time. "As construtoras têm um lucro maior. Além da facilidade para os cidadãos se locomoverem, a cidade torna-se um lugar mais rico e diversificado. A receita de impostos cresce; a imagem das cidades ganha uma repaginada."


À MEDIDA QUE AS ÁREAS URBANAS FICARAM MENOS INTIMIDANTES, AS CIDADES SUBTERRÂNEAS SAÍRAM DE MODA

Aconteceu um negócio curioso após a glória de Ponte. Em suma, a ideia de cidades subterrâneas ficou controversa. Hoje, líderes urbanos as veem como uma maneira antisséptica de concentrar fatores suburbanos. São vistas como uma maneira de contornar a cidade, em vez de mergulhar nela. Pode ter sido uma boa ideia quando os centros urbanos eram assustadores para os turistas. Agora que estão repletos de edifícios chiques e bares da moda não é mais a mesma coisa.

Aliás, uma das cidades-projetos de Ponte, Dallas, passou anos tentando reverter o planejamento urbano que implementou 45 anos atrás. Ao conversar com o New York Times , em uma entrevista de 2005, Laura Miller, prefeita de Dallas na época, não poupou palavras.

"Se eu pudesse pegar uma betoneira e despejar cimento nos túneis até entupi-los, não pensaria duas vezes" Miller declarou ao Times, o mesmo jornal que comprou o argumento de Ponte a favor das cidades subterrâneas 38 anos antes. "Foi a pior decisão de planejamento urbano que Dallas já tomou. Acharam que a comunidade subterrânea seria legal e badalada, mas foi uma sentença de morte."

Publicidade

A cidade deixou de divulgar os túneis em suas campanhas de marketing e, em 2011, um relatório sobre o desenvolvimento futuro da cidade referiu-se à grande ideia de Ponte como "um ambiente estéril e monótono que suga a vida das ruas acima".

Azar de Dallas já que, para Montreal, a área urbana sob a superfície segue cheia de vida — virou destino turístico obrigatório com quatro estrelas no TripAdvisor. Assim como as demais cidades grandes do Canadá, Toronto também tem rede de túneis, construída na mesma época que a de Montreal, mas atrai apenas um terço de pessoas que a mais badalada.

Fora de Montreal, a renovação urbana não se trata mais de uma rede massiva de túneis, mas, sim, de uma mudança massiva de percepção. Agora, gostamos dos centros.


O prefeito da cidade de Neveshir, na Turquia, disse, há poucas semanas, que pretende aproveitar o achado extraordinário e transformá-lo em algo mais parecido com Montreal do que com um artefato.

"Dizem que existiam apenas armazéns lá embaixo", falou o prefeito Hasan Ünver à agência turca de notícias Doğan. "Queremos transformar essa cidade subterrânea — a maior do mundo, abrangendo 11 bairros — em um lugar habitável no centro da cidade. Pretendemos transformá-la em centro social, com um auditório e um museu."

Evidentemente, esse tipo de conversa nos deixa divididos entre preservação e modernização. Se tudo der certo, a cidade subterrânea pode servir de fonte de renda para todo o sistema do metrô, agregando valor não só como atração turística, mas também como tópico de discussão. Mas também pode danificar a história dos interiores da gruta em prol de interesses modernos.

Se você fosse o prefeito da cidade turca, o que faria?

Tradução: Stephanie Fernandes