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Rincon Sapiência no clipe de "Placo". Foto: Divulgação

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A economia de ser um rapper no Brasil

Antes de jogar dinheiro pra cima, tem um longo caminho a ser percorrido por quem deseja fazer uma carreira no hip hop. E esse caminho é especialmente difícil se você é negro.

Em janeiro desse ano, Don L comemorou seu aniversário no Sesc Pompeia com o show de estreia do Roteiro pra Aïnouz Vol. 3. O bolo comemorativo dos 37 anos do rapper, que entrou levado ao camarim depois do show, continha os dizeres "Don L rico" e foi aplaudido ao som do típico "Parabéns pra Você". No final da música, porém, uma variação da parte da letra "É pique/É pique" veio na forma de "É rico/É rico/É ouro/É ouro", como relatou Peu Araújo numa matéria da Piauí sobre o evento. O show aconteceu semanas depois do lançamento da música "Verso Livre Nº 2 (018)", em que Don L bradava no refrão: "Esse ano eu fico rico."

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Don L não é o único, porém, que deixou o nordeste com a sede de secar a SABESP. Em junho de 2018, o conterrâneo de Don Diomédes Chinaski lançou a mixtape Comunista Rico, cujo single homônimo começa com as frases "Não tem rap game, quero money game / Concorrência treme, mas só quero o cofre / É insano ver, não tem plano B / Porra, o plano B deve ser a morte". Ainda esse ano, Raffa Moreira também se gabou de ter feito 10 mil sozinho num mês enquanto jogava notas pra cima no clipe de "10K", e o mineiro Sidoka comemora os três zeros em seu saldo no banco em "Drink".

"O dinheiro vai ser sempre um ponto forte na minha música, porque a falta dele me trouxe muitos traumas e a chegada dele me trouxe muitas noites de sono", fala Diomédes, em entrevista ao Noisey. Ele não acha, porém, que o bragadoccio já comum dos rappers seja em vão, ou uma futilidade. "Não tem a ver apenas com valores econômicos. É o grito do sofredor que conseguiu vencer a miséria através de uma estrada muito perigosa, porque pra nós nunca é fácil. Quem esbanja é o playboy, a gente não, a gente comemora com aquilo que nunca tivemos antes."

Com uma carreira iniciada no fim da década passada nos subúrbios de Pernambuco, Diomédes lançou seu primeiro EP, Ressentimentos, em 2010. Mas o caminho até lá não foi fácil. O rapper relata andar quilômetros até o estúdio, sentir fome durante as sessões de gravação e voltar pra casa tarde da noite pedindo carona. As gravações só conseguiram ser custeadas, inclusive, porque o rapper vendeu seu celular. "Minha mãe pensou que eu estava fumando crack. Também fui muito ajudado por amigos designers que fizeram as artes. Não dava pra cobrar de quem andava com roupas velhas, prego no chinelo e cabelo e barba sempre mal feitos", fala Diomédes, que lembra ter sido chamado de "mendigo" durante uma batalha de rap. "Eu nunca esqueci disso, porque quando olhei no espelho eu realmente parecia."

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As dificuldades contadas por Diomédes são comuns — impossível não lembrar do título do primeiro EP do hoje grande Emicida, Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe… —, mas talvez sejam mais presentes em um grupo específico: os rappers negros. Essa dificuldade fica clara até entre os maiores nomes — enquanto artistas como Haikaiss (2,7 milhões) e Costa Gold (2,2 milhões) brincam com milhões de inscritos e visualizações em seus canais do YouTube, por exemplo, nomes como Emicida (1 milhão), Criolo (400 mil) e Racionais MCs (700 mil) contam com, no máximo, a metade dos números de seus colegas brancos.

"No geral, são os artistas pretos que apresentam menos estrutura na hora de executar sua arte, ou levam um longo tempo para conseguir essa estrutura ideal", fala Rincon Sapiência. O rapper, que se dedica à música desde 2000, só conseguiu deixar de lado outras fontes de renda para se sustentar completamente como artista em 2010. Até lá, o artista já passou por algumas dificuldades e desventuras, como ter que carregar o CD do software que utilizava para produzir suas músicas no bolso caso fosse à casa de algum amigo que tinha computador, já que ele não conseguia pagar um na época. "Eu tinha cadernos e cadernos cheios de letras mas, pra essas letras virarem música, era bem difícil e complicado. Fora transporte, locomoção, entre outras coisas. Eu ia da Cohab até o Aricanduva andando, uma hora de caminhada. Já fiz isso muitas vezes." Ele fala da questão de grana na vida dos negros na faixa "Placo", lançada na semana passada.

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Enquanto o artista de classe média já começa com grana, investimento, videomaker, produtor e uma equipe já pensando em estratégias para sua carreira, o artista de periferia tem sua caneta e, quando muito, alguma forma de musicar suas composições. "Toda a logística e estratégia, responsabilidades, família, consomem mais do tempo e dinheiro. Isso dificulta a imersão dos artistas de baixa renda, muitos desistem e muitos, como eu, levam muito tempo pras coisas acontecerem", fala Rincon. A dificuldade financeira já quase evitou que o Brasil tivesse alguns de seus maiores artistas, como a cantora e rapper Negra Li.

Antes do RZO, no primeiro grupo do qual participou, ela desistiu de cantar devido às "condições precárias" e pouca grana que o trabalho apresentava. "Eu era muito jovem, ainda sustentada pelos pais, e comecei a ajudar com as contas em casa", relata a cantora. "Nunca foi para todos, e sim para poucos. A maioria gastava o que ganhava de outros trabalhos para investir e, ainda assim, se viram obrigados a desistir no meio do caminho."

Para Negra Li, Rincon e Diomédes, o caminho que desemboca na dificuldade de artistas negros e periféricos de construírem suas carreiras no rap é bem claro, e começa na escravidão da população negra. Os reflexos estão expostos para quem quiser ver: 76% da população pobre no Brasil é negra, falam dados do IBGE de 2014. Segundo dados coletados pela organização social TETO Brasil nas favelas de São Paulo em 2016, 70% de seus moradores são negros. "É a tão famosa desigualdade social. Ainda temos muito que conquistar", fala Negra Li.

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Apesar das dificuldades ainda sentidas por quem começa na carreira do rap, é possível que as condições tenham melhorado um pouco nos últimos anos. O rapper carioca Marcão Baixada acredita que a democratização do acesso a eletrônicos e equipamento de som tenha melhorado a situação dos rappers de renda baixa. Os desafios hoje, porém, são outros.

"Hoje temos acesso às ferramentas, conseguimos baratear o custo de muita coisa tendo home estúdio, produzindo o próprio beat. Mas ao mesmo tempo que não ter grana faz a gente ter mais criatividade, eu fico sobrecarregado", fala. Além do som, a grana com o design de capas e sites, o preço de clipes e sessões de fotos e o tempo gasto investindo nas redes sociais do artista também dificultam a situação para os novatos. "Aquilo que eu desenvolveria melhor — minhas rimas e beats —, acabo não desenvolvendo tão bem porque tenho que estar ligado em todas essas outras tarefas e processos."

Em 2019, Marcão completa 10 anos trabalhando com rap, mas ainda não consegue ganhar mais do que gasta com seu som. "Eu estava trabalhando de carteira assinada como office boy até o ano passado porque eu sentia necessidade, estava precisando chegar mais junto em casa", relata o artista. "Mas o rap me proporcionou diversas coisas, desde fazer música pra peças de teatro, comercial, pras Olimpíadas em 2016, e até oportunidade de trabalhos mais formais. Apesar de não ser com o meu rap, eu acabei encontrando formas de levantar uma grana através do rap."

A dificuldade dos negros no mercado de trabalho não é uma exclusividade, é claro, do rap. Segundo um levantamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento em 2016, nas 500 maiores corporações do Brasil, apenas 6,3% dos cargos de gerência e 4,7% dos de gerência são ocupados por negros. Quando especificamos as mulheres negras, esse número cai ainda mais drasticamente: 1,6% das posições de gerência e 0,4% (!) das de direção são comandadas por elas.

O papo de Diomédes no começo desta reportagem, então, se torna ainda mais claro. O dinheiro esbanjado é menos um sinal de luxo, e mais um símbolo da liberdade, da vitória. "A falta de dinheiro não só impediu que vocês conhecessem vários gênios, como impediu que eles vivessem. Impediu que eles tivessem o direito mais básico da vida: viver", ele completa. "Eu venho de onde nem todo mundo tem tênis. Dinheiro é carta de alforria."

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