Santa Catarina deu ao candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (PSL) a melhor marca estadual no primeiro turno (65,8% dos votos), no dia 7. Se dependesse de Blumenau, cidade do interior do estado, o ex-capitão teria sido eleito com 71,59%. E foi nesse reduto bolsonarista que ocorreu a 35ª Oktoberfest, onde, no sábado, 71 mil foliões entornaram mais de 90 mil litros de chope na Vila Germânica, um parque gigante inspirado num vilarejo alemão do século 19.
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Adaptação da Oktoberfest de Munique, na Alemanha, iniciada em 1810, a festa de outubro é o ponto alto da cidade catarinense, com atrativos como culinária típica, música e milhares de barris de cerveja. É uma festa tradicional que se diz aberta à diversidade, mas que não parece celebrar que é diferente. Lá, não demorei uma hora para testemunhar um episódio de racismo: um jovem loiro, de olhos azuis, berrou à distância a um amigo (também loiro, de olhos azuis) para “trancar a respiração”, tapando o nariz, enquanto passava um garoto negro a seu lado.O episódio não era de surpreender. Na abertura da Oktober, no dia 3, depois dos versos finais do hino nacional, ribombaram brados de “mito”. Muitos que estavam ali, eu sabia, achariam queixas de racismo ou homofobia como apenas “mimimi”.Tirei a prova quando conversei com Marcos Ruben Ubá de Andrade, presidente do tradicional Clube Blumenauense de Caça e Tiro, fundado em 1894. Questionado sobre o expressivo endosso ao ex-capitão na cidade, apesar de suas declarações racistas, Marcos emendou: “Se Bolsonaro mudar o discurso dele, perde meu voto. Tenho broncas dentro da minha família, meus filhos mais jovens não aceitam. Na situação atual, a gente precisa começar do zero. A pessoa honesta e trabalhadora não precisa ter medo dele.”Ainda assim, Ubá crê que seu endosso às ideias de Bolsonaro está em prol da diversidade. “Aqui é uma festa de um povo ordeiro, que acolheu muitas culturas. O Brasil é verde e amarelo, de ponta a ponta. Sou contra o slogan ‘o sul é o meu país’. Não podemos separar o país por causa de ladrões, precisamos nos unir”, me disse. “Todo mundo é bem-vindo.”
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O corretor Eurides de Souza Junior era um dos eleitores a caráter: vestia uma camiseta preta de Bolsonaro. “Não sou contra o pessoal de outros lados, mas o pessoal aqui abriu a mente para a política. O que a gente de Santa Catarina quer é mudança. Concordo 90% com a direita, o que discordo dela é não gostar da natureza e eu adoro o verde”, afirmou, posando com armas imaginárias para foto.Não sei se foram as tulipas a mais, mas esbarrei num barril de contradições durante a festa. O típico joelho de porco eisbein ao lado de versões vegana e gluten free, a música tradicional ao lado de boy bands, as fantasias de Fritz e Frida ao lado de vikings e cocares indígenas – ok, tudo isso é compreensível no clima carnavalesco. O que mais surpreendeu, porém, foi o grito de “Bolsonaro Presidente” intercalado com o hit Bella Ciao, música símbolo da resistência italiana ao fascismo – nenhum eco da versão tropical #EleNão.
“Meu bisavô veio da Alemanha, fugido da guerra”, contou o consultor Alex Hasckel, ao comentar a importância da festa alemã e sua abertura a outras culturas. Mas, segundo ele, pensando na política, a ideia de que Bolsonaro possa representar uma “mudança radical” vale mais que os comentários ofensivos do candidato contra negros, mulheres e gays. “Ele é mal-interpretado pela mídia. Eles entortam o que ele diz”, defendeu.A psicóloga Juliana Zimmer lamentou: “Outubro movimenta a cidade. A festa é colorida e diversa, vem muita gente diferente. Uma diversidade linda que Jair Bolsonaro limita. É triste e fico preocupada. Até agora, vivemos em uma democracia e precisamos respeitar opiniões diferentes, mas me choca o apoio majoritário da cidade ao candidato. Se a festa é a diversidade, não é contraditório celebrar quem não respeita a diversidade?”
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Vale nazista?
Mas o historiador também indica elementos atuais. “A cidade hoje é mais colorida, diversa e plural, mas ainda enfrenta a influência de uma parte da elite cultural ligada à ideia de germanidade do século 19 que participa ativamente da política na cidade”, diz. “Onde o conservadorismo e até traços totalitários já estão instalados, é mais fácil ver pessoas entrando nessa onda conservadora nacional”.
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Fundada pelo filósofo Hermann Bruno Otto Blumenau em 1850, a cidade se orgulha das origens alemãs. No censo de 2010, 89% se declararam brancos – quer dizer, minorias étnicas também são minorias estatísticas na cidade do interior catarinense que atualmente conta cerca de 350 mil habitantes.
A jornalista Magali Moser investigou esta elogiosa construção de uma identidade germânica da cidade que apaga choques culturais e conflitos, como a dizimação indígena por imigrantes europeus. Autora da série de reportagens Negra Blumenau, nos tempos de repórter no diário Santa, ela identificou discursos dessa germanidade principalmente a partir dos anos 70, no impulso da indústria turística. A ideia se cristalizou: em 2015, a propaganda oficial da Oktoberfest dizia “Blumenau: o Brasil de alma alemã”.“Num momento marcado pelo avanço dos discursos de ódio, a recusa às diferenças revela um fracasso da tolerância. Respeitar o outro é premissa de qualquer sociedade democrática. Em Blumenau, a exaltação da identidade cultural alemã exclui o reconhecimento de sua diversidade social e étnica”, escreveu a autora na sua dissertação defendida na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).Enquanto Blumenau virou antro bolsonarista no sábado (13), Berlim virou palco para uma marcha de mais de 200 mil pessoas em defesa de uma Europa democrática e unida contra o fascismo, o racismo e a xenofobia. A ala brasileira da manifestação na capital alemã expôs cartazes #EleNão, camisetas da ativista Marielle Franco e um ato de capoeiristas em homenagem ao mestre Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê."Na infância, lembro de ser convidado para ouvir discursos de Hitler no vinil, festejar aniversário de Eva Braun, lembro de ver suásticas nas casas e fantasias nazistas nas festas"
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O descompasso entre brasileiros conservadores e alemães também teve outro momento de inglória recente: os comentários tropicais tresloucados no post sobre história do nazismo nas páginas da Embaixada da Alemanha de Brasília e do Consulado Geral no Recife no Facebook.Em 2017, o jornalista alemão Thomas Fischermann, correspondente do die Zeit na América do Sul, ficou “malquisto” em Santa Catarina, pois criticou a Oktoberfest de Blumenau. Segundo seu relato irônico, ele se comportou mal: referiu-se à festa como um “pastiche” de “falsos bávaros”, “presos em uma nostalgia, congelados em uma cultura do passado, ao invés de se atreverem a renovar.”A condição de me tornar persona non grata igual a Fischermann não me aflige, não sou especialmente sociável. Vale a máxima: às vezes antissocial, mas sempre antifascista.Assista ao nosso documentário O Mito de BolsonaroSiga a VICE Brasil no Facebook , Twitter , Instagram e YouTube .