Saúde

Ela queria fazer um aborto. O FBI diz que o ex dela ameaçou colocar uma bomba na clínica.

Documentos de tribunal mostram que um homem da Carolina do Sul recebeu acusações federais por interferir com procedimentos de saúde reprodutiva.
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Man on a phone next to a pregnant woman standing in front of a clinic
Colagem por Hunter French/Imagens via Shutterstock.

Um homem da Carolina do Sul chamado Rodney Allen foi preso e acusado de fazer uma ligação ameaçando um atentado com bomba a uma clínica em Jacksonville, Flórida, para evitar que uma mulher com que ele teve um relacionamento conseguisse fazer um aborto.

Segundo o depoimento juramentado num tribunal federal mês passado do agente especial do FBI Robert W. Blythe, esses eventos aconteceram depois que Allen supostamente estuprou a mulher – identificada no depoimento apenas como A.S. – o que resultou na gravidez. A.S. também alegou que Allen era fisicamente abusivo, e ameaçou matar vários membros de sua família. O caso, USA vs Allen, ainda está em andamento num tribunal distrital da Flórida. (Blythe não respondeu os pedidos de comentário da VICE.)

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A.S. tinha feito quase doze tentativas de marcar uma consulta para interromper a gravidez, agendando visitas a clínicas na Carolina do Norte, Flórida e Geórgia. Mas todas as vezes, uma pessoa que acredita-se ser Allen ligava para as clínicas em nome dela para cancelar. O pessoal da clínica disse a Blythe que acreditavam que, além de Allen aparentemente ter acesso aos registros telefônicos e mensagens de texto de A.S., ele também tinha o código de paciente dela, o que permitia a ele ligar para os centros de saúde e mudar as consultas dela sem seu consentimento como uma “parte autorizada”.

A.S. finalmente conseguiu marcar uma consulta para fazer o aborto em 29 de agosto, numa clínica em Jacksonville. Naquele dia, Allen mudou sua tática: ele supostamente ligou para a clínica nove vezes, e até para o celular da proprietária. Ele fez mais sete chamadas para outras clínicas de aborto de Jacksonville. Durante uma ligação, Allen disse para o funcionário que atendeu que A.S. tinha levado uma arma para clínica. Pouco mais de uma hora depois, ele ligou de novo e disse para a equipe que alguém estava indo para a clínica para “explodir tudo”; ele só queria avisar os funcionários “com antecedência”. Ele também cancelou reservas de hotel que A.S. fez para obter o aborto. (A VICE também abordou o advogado de Allen.)

Funcionários da clínica preencheram formulários internos detalhando as ameaças, suspenderam temporariamente as operações e contataram as autoridades locais, que vasculharam a propriedade. No dia seguinte, Blythe também vasculhou o local, com mais dois oficiais federais. Nas semanas seguintes, autoridades federais realizaram vários interrogatórios com A.S. e Allen, resultando na prisão dele em 25 de setembro. Documentos do tribunal não indicam se A.S. conseguiu ou não fazer o aborto.

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Ele encara uma acusação de ameaça por telefone, e outra por “interferir com acesso a serviços de saúde reprodutiva”. A última não apenas é um crime federal pelo Freedom of Access to Clinic Entrances (FACE) Act, mas também uma forma de abuso conhecida como coerção reprodutiva, que inclui práticas como monitorar o ciclo menstrual da parceira, destruir ou adulterar anticoncepcionais e pressionar a parceira para que ela engravide. Uma em quatro mulheres de 18 a 45 anos experimentam coerção reprodutiva na vida.

O caso contra Allen mostra como ameaças a clínicas e coerção reprodutiva podem operar em conjunto para aterrorizar pacientes e funcionários de clínicas de aborto.

Coerção reprodutiva geralmente não ocorre isoladamente. Isso normalmente envolve outras formas de abuso, como intimidar a parceira com violência física ou sexual, como A.S. alega ter experimentado no caso contra Allen.

“Coerção sexual é um tipo de coerção reprodutiva”, disse Jamila Perritt, vice-presidente do American College of Obstetricians and Gynecologists, e obstetra e ginecologista de Washington, D.C. “Esses são comportamentos para obter poder e controle.”

Um estudo de dezembro de 2018 do CDC descobriu que mais de 2,9 milhões de americanas tiveram uma gravidez relacionada a estupros em algum ponto da vida. Mulheres que engravidam como resultado do estupro de um parceiro íntimo têm mais chances de experimentar coerção reprodutiva, cem comparação com mulheres que foram estupradas por parceiros mas não engravidaram.

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“Nossas descobertas sugerem que a coerção reprodutiva desse parceiro íntimo pode ser a razão para algumas mulheres que são estupradas pelo parceiro engravidarem”, disse Kathleen Basile, cientistas sênior da divisão de prevenção de violência do CDC e autora do estudo, a VICE.

Mas não se sabe muito sobre quando e como coerção reprodutiva leva a ataques contra clínicas de aborto e as pessoas que trabalham nelas. Apesar de casos de ameaças contra clínicas serem bem documentados, é difícil rastrear as motivações por trás disso. Ainda assim, algumas evidências sugerem que não é tão incomum as duas coisas andarem juntas.

Katharine Ragsdale, presidente interina e CEO da National Abortion Federation (NFA), um grupo que publica um relatório anual sobre ataques e ameaças a clínicas, disse que nas décadas em que ela lidera organizações pelo direito ao aborto, ela já ouviu muitos casos de coerção reprodutiva se transformando em ataques a clínicas.

“Já vimos casos de pessoas ligando para uma clínica várias vezes para cancelar a consulta da parceira”, disse Ragsdale. Se alguém quiser impedir a parceira de abortar, ela continuou, “a pessoa pode trancar a parceira, ou a ameaçar. Mas se não tem controle sobre ela, a pessoa pode tentar impedir seu acesso a uma clínica: colocando uma bomba, causando um incêndio”.


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As supostas ameaças de Allen ao centro de saúde reprodutiva são parte de uma onda de violência contra clínicas que vem se desenrolando desde que Donald Trump assumiu a presidência. Segundo o relatório de 2018 da NAF sobre violência antiaborto, casos de ameaças de morte e violência aumentaram para 1.388 em 2018, mais do que o triplo do número de 2015.

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Ragsdale disse que faz sentido que uma pessoa com crenças extremas antiaborto possa partir para a violência se alguém na sua vida considera um aborto – especialmente se a pessoa já tentou exercer poder sobre as decisões reprodutivas da parceira.

“Uma pessoa contrária ao direito de abortar pode partir para a agressão quando alguém que ela ama, ou sente que tem controle sobre, quer fazer um aborto”, disse Ragsdale. “Então suas ideologias antiaborto despertam quando algo afeta uma questão pessoal.”

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Especialistas dizem que ainda há muito para aprender sobre coerção reprodutiva e como isso pode se apresentar na vida das pessoas. Basile disse que sua equipe de pesquisa no CDC está estudando agora como a coerção reprodutiva cruza com questões de raça e etnia; a equipe também está explorando diferentes abordagens para identificar e evitar a violência sexual e a violência íntima de parceiros para diminuir gestações decorridas de estupros.

Enquanto isso, profissionais de saúde estão usando os métodos disponíveis para saber se suas pacientes estão sofrendo coerção reprodutiva. Perritt da ACOG disse que um dos jeitos mais eficientes de ajudar as pacientes é perguntando diretamente: Você precisa esconder seu anticoncepcional de alguém?

Quando uma paciente disse sim recentemente, ela e Perritt conseguiram determinar que a melhor opção para ela era um DIU. Perritt disse que conseguiu apagar rastros para que o parceiro da paciente – que a estava pressionando para ter outro filho, além de abusar fisicamente dela – não pudesse detectar o dispositivo.

“Essa conversa só pôde acontecer porque verifiquei se ela estava sofrendo coerção reprodutiva”, disse Perritt. “Triagens de coerção reprodutiva é parte de um protocolo de atenção para trauma que estamos implementando em espaços de saúde. E isso envolve centrar a pessoa que está na nossa frente, e atender as necessidades dela naquele momento.”

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