Tecnologia

A FaceApp não é assustadora por ser russa, é assustadora por ser capitalista

As políticas de privacidade do FaceApp são ruins, mas não porque a empresa é russa.
Vladimir Putin velho

Este artigo foi originalmente publicado na Motherboard - Tech by VICE.

A cada dois meses ou assim, as fotografias da FaceApp – uma aplicação de edição de fotos de caras que usa uma rede neural que faz com que os utilizadores pareçam mais jovens, ou velhos, femininos ou masculinos – tornam-se virais. Há dois anos, a app acrescentou uma função de edição de rosto que transformava as pessoas em caricaturas racistas de diferentes raças. Na semana passada, o filtro viral da aplicação foi uma função de envelhecimento, que transforma os utilizadores em idosos.

Publicidade

Em poucas horas, a conversa no Twitter sobre o FaceApp centrou-se numa coisa: a aplicação é feita por uma empresa russa de São Petersburgo, ou seja, começaram as insinuações de que a app pode ser uma fachada de recolha de dados por parte do governo russo.

Sim, as políticas de privacidade do FaceApp são muito más. Mas, não é a única aplicação que utiliza dados de imagem e o que a torna má não é o facto de ter sido uma empresa russa a criá-la. As características destas políticas de privacidade problemáticas são muito parecidas às das aplicações feitas nos EUA e noutros países. Apps de meteorologia, horóscopo, de saúde e fitness.

Para funcionar, a FaceApp exige que o utilizador dê acesso a todo o seu rolo da câmara, momento a partir do qual a app começa a identificar automaticamente imagens com rostos. Não é possível permitir o acesso apenas à câmara para tirar uma fotografia para editar com a aplicação, nem usar fotografias individuais para serem filtradas.

A FaceApp também recolhe várias informações de identificação pessoal, incluindo “informação para cookies, arquivos de log, identificadores de aparelho, dados de localização e uso de dados”. A aplicação, depois, fornece esses dados a uns vagamente definidos “Afiliados” e “Fornecedores de Serviços”, ou a terceiros que monitorizam a “eficácia” da aplicação, “o desenvolvimento e o teste de novos produtos” e “tratam de problemas de diagnóstico e correcção”. Por outras palavras, a FaceApp reserva-se o direito de partilhar as informações a que tem acesso com várias categorias muito amplas, que podem incluir diversos tipos de empresas.

Publicidade

Mais importante ainda, é que a FaceApp também entrega os dados dos utilizadores a “parceiros de publicidade”. “Esta informação vai permitir que redes de publicidade alheias, entre outras coisas, te mostrem anúncios direccionados que acreditam ser do teu interesse”, diz a política de privacidade. E numa declaração à TechCrunch, a FaceApp disse: “Aceitamos pedidos de utilizadores para remover todos os seus dados dos nossos servidores. A nossa equipa actualmente está sobrecarregada, mas esses pedidos têm a nossa prioridade”. E acrescentou: “Mesmo que a nossa equipa de pesquisa e desenvolvimento esteja na Rússia, os dados dos utilizadores não são transferidos para a Rússia”.

Extrair dados de utilizadores sem aviso, vender e partilhar esses dados com sabe-se lá quem e justificar isso com políticas de privacidade impossíveis de ler é uma prática quase universal. Transcende fobias da Guerra Fria. Não é algo por ser russo. Não é por ser americano. É uma prática fundamentalmente capitalista. As empresas só podem fornecer aplicações gratuitas e lucrarem com isso se estiverem a recolher e a vender os dados das pessoas que as usam.

O medo de aplicações russas parece vir do mesmo espírito da obsessão do pessoal #Resistance do Twitter com o Relatório Mueller. O discurso desviou-se de questionar a corrupção do executivo no governo norte-americano para conversas incoerentes sobre “russos” suspeitos. O facto neste caso é que não fazemos ideia de como é que a FaceApp está a usar esses dados, assim como não sabemos como é que muitas outras aplicações estão a usar os nossos dados. Sim, devíamos preocupar-nos, mas não apenas com a FaceApp.

Há uma discussão legítima que precisamos de ter sobre quantos dados entregamos a entidades privadas em troca de entretenimento de meia-tigela. É inútil encobrir essa discussão com a desculpa da "Ameaça Vermelha".


Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.