A história de Graffigna, o jogador que peitou a ditadura no Uruguai

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VICE Sports

A história de Graffigna, o jogador que peitou a ditadura no Uruguai

Símbolo de resistência, o volante fez história e muitos inimigos com a camisa do Defensor Sporting na década de 70.

Em uma mesa próxima da cozinha do restaurante La Pasiva, em Pocitos, bairro chique de Montevidéu, um homem de 72 anos olha para o celular de capa vermelha e monitor trincado. Ele usa blusa bege, da cor da bermuda, com a gola da camisa azul à mostra. Parece um daqueles pacatos senhores que se exercitam pela rambla do Rio da Prata, cartão-postal da capital uruguaia.

Do espesso bigode negro que cultivava quando ainda sonhava em mudar o mundo, restou um único fio esbranquiçado, crescido à direita de uma cicatriz de mais ou menos quatro centímetros, herança de uma cotovelada recebida meio século atrás.

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Seu nome é Pedro Graffigna. Foi um volante corajoso, feroz na marcação, que defendeu a seleção do Uruguai na década de 1970. Foi também um jogador engajado, com alma de revolucionário, que se transformou em símbolo da resistência contra a ditadura no país.

Pedrín, como os amigos costumam chamá-lo, era um dos líderes do elenco do Defensor Sporting Club na conquista do Campeonato Uruguaio de 1976. Time ainda reverenciado, 40 anos depois, pelo que fez dentro e fora de campo. Dentro, a equipe de uniforme violeta sepultou a hegemonia de Nacional e Peñarol, que se alternavam como campeões da Primeira Divisão desde 1932. Fora, teve a audácia de desafiar os militares no ápice da repressão oficial.

"Tenho orgulho de ter participado daquele momento", diz Graffigna, secando o suor da testa com um guardanapo de papel. "Muita gente me fala que fomos heróis. Outros dizem que fomos irresponsáveis, que não pensamos em nossas famílias. Acho que fomos uruguaios. Tentamos fazer o melhor por nós mesmos."

Canto geral

Revelado na base do Defensor, Graffigna iniciou a carreira profissional no Chile, onde atuou por quatro times diferentes, de 1966 a 1974. Fisgado pelos poemas libertários de Pablo Neruda, com quem comungava a fé no comunismo, tornou-se admirador do presidente chileno Salvador Allende. O médico marxista governou o país andino de 1970 a 1973, quando foi deposto em um golpe de estado liderado pelo então chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet.

Graffigna era um fio desencapado. A cada entrevista, fazia questão de demonstrar o descontentamento com o regime instalado mediante o uso da violência. Sentia-se intocável. Duvidava de que pudessem fazer algo contra um atleta conhecido. Mudou de ideia quando viu dois amigos, ambos socialistas, serem presos e torturados.

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Foto: Fernão Ketelhuth

"Não queria ir embora do Chile. Tinha mulher e cinco filhos chilenos. Mas se me colocassem na cadeia, quem iria sustentá-los?", explica-se o ex-meio-campista. "Um colega queria me levar para um time da Itália, mas preferi voltar ao Uruguai. Sabia que também seria complicado, mas era uma forma de seguir lutando."

Acertou o retorno ao Defensor, clube pelo qual torcia desde garoto, e filiou-se ao Partido Comunista uruguaio. Foi o suficiente para ser colocado na lista dos subversivos monitorados pelo governo do presidente golpista Juan María Bordaberry.

Em meados de 1975, Graffigna foi preso pela primeira vez. Militares encontraram nos bolsos do jogador um panfleto de sindicato e a cédula de identidade que usava no Chile. Permaneceu na cadeia por dois dias. Meses depois, um policial acusou Graffigna de xingá-lo durante uma partida contra o Peñarol. Detido no vestiário, o volante ficou na delegacia até as 3h da madrugada. Quando chegou para treinar, na manhã seguinte, uma viatura o esperava no portão principal do Estádio Luis Franzini. Foram mais cinco horas atrás das grades.

"Só me soltaram porque o presidente do clube negociou com os políticos a minha liberdade. Do contrário, só teria saído de lá em 1985", afirma, citando o ano de encerramento da ditadura militar no Uruguai.

Abraço fraterno

A perseguição a Pedrín se dava, também, por causa dos "camaradas" com quem convivia. O técnico do Defensor era o comunista José Ricardo de León, uma figura controversa, criticada frequentemente pelo ativismo político e pela maneira defensiva como montava suas equipes.

No elenco do clube violeta havia outros jogadores simpatizantes do socialismo, como Beethoven Javier. O lateral oriundo de uma família de músicos chegou a ser preso enquanto jogava bola com seu filho em uma praça na Ciudad Vieja, o centro histórico de Montevidéu.

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"Conversávamos antes dos treinos sobre o que estávamos passando. Havia uma insegurança muito grande, uma sensação de que algo mais grave poderia acontecer conosco a qualquer momento", lembra-se Graffigna.

Esta sensação aumentou após o empate por 2 a 2 com o Nacional, no Estádio Centenário. A partida marcou para sempre a carreira do estreante Julio Filippini. Autor de um dos gols do Defensor, o ponta-direita dedicou a atuação ao irmão, que escutava a transmissão do jogo na Penitenciária Libertad. Eduardo Filippini havia sido preso por integrar o MLN (Movimento de Libertação Nacional), grupo guerrilheiro do qual também fazia parte um certo Pepe Mujica.

Foi o único jogo da carreira de Julio. Militares ouviram a entrevista concedida pelo jogador, contra quem foi deflagrada uma operação de caça. O atacante, então com 19 anos, precisou se esconder na casa da sogra durante uma semana, até a poeira baixar. Temia pelo futuro da filha recém-nascida. Quando o campeonato acabou, tomou a decisão de parar de jogar. O medo lhe fizera perder a vontade de estar em campo.

Punhos cerrados

O ano de 1976 foi um dos mais difíceis da história uruguaia. O racha entre o presidente Bordaberry e o alto escalão das Forças Armadas suscitou uma sucessão de violações, entre elas o fim do direito à greve, a dissolução dos partidos e a instauração do toque de recolher.

Ante o recrudescimento da repressão, era de se esperar que Graffigna e seus companheiros baixassem a guarda. Ocorreu o contrário, porém.

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"Quando surgiram os primeiros relatos de prisões e torturas, jogadores que não se preocupavam com a ditadura começaram a entender que o problema era sério. Isso nos uniu", rememora Pedrín. "Claro que nem todos do time concordavam com as minhas ideias, mas muitos deles perceberam que não podiam mais cruzar os braços."

Sede do Defensor hoje.

Sede do Defensor ainda guarda as glórias de Graffigna e equipe. Foto: Fernão Ketelhuth

Era hora de cerrar os punhos. A cada gol do Defensor, Graffigna erguia a mão esquerda fechada e corria em direção aos fotógrafos com a ambição de ser clicado. Conhecido entre militantes de esquerda, o gesto significa resistência.

No vestiário, antes das partidas, os atletas adquiriram o hábito de cantar músicas do uruguaio Alfredo Zitarrosa, à época exilado na Espanha. A execução dessas canções estava proibida na Argentina, no Chile e, obviamente, no Uruguai.

Volta histórica

No dia 25 de julho de 1976, o Defensor enfrentou o Rentistas no Estádio Luis Franzini, pela última rodada do Campeonato Uruguaio. Precisava vencer para se tornar o primeiro time diferente de Nacional e Peñarol a se sagrar campeão do torneio. Santelli e Cubillas fizeram os gols da vitória por 2 a 1. A façanha foi celebrada com um ato final de rebeldia.

O plano inicial era que os jogadores comemorassem a conquista vestidos de preto, como se estivessem de luto. Parecia um protesto arriscado demais. A direção tinha receio de clube e atletas sofrerem represálias. O desafio seria conceber uma maneira de marcar posição sem confrontar os militares de forma explícita.

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Nasceu a ideia de se promover uma volta olímpica oposta à tradicional, no sentido anti-horário, com os campeões correndo sempre "à esquerda" das linhas que delimitam o campo.

"Na hora, penso que nem os torcedores nem os repórteres presentes compreenderam o que estávamos fazendo. Tampouco alguns dos meus companheiros tinham a noção do gesto em sua plenitude", reconhece Graffigna. "Mas foi algo que entrou para a história, não? Se não fosse algo importante, eu não estaria conversando agora, 40 anos depois, com um jornalista brasileiro", acredita.

Pedrín pagou pela postura contestadora. Deixou de se transferir para o Olimpia, onde receberia o melhor salário da carreira, após os dirigentes do clube paraguaio se informarem sobre o ativismo político do volante.

Pendurou as chuteiras em 1985 e, no ano seguinte, foi contratado para treinar o Club Atlético Progresso. Caiu depois de 23 dias por causa das constantes queixas sobre as más condições de trabalho oferecidas aos atletas. Desistiu do futebol. Para pagar as contas, aceitou emprego na distribuição do jornal do Partido Comunista.

Nos últimos anos, ganhou a vida como organizador da festa de Carnaval de Montevidéu. Juntou um bom dinheiro e comprou uma chácara a 27 km da capital. Tem pouco contato com os filhos, que regressaram ao Chile com o fim da ditadura militar no país, em 1990. Às vezes, porém, senta-se em uma mesa de bar ou restaurante para contar sua história de resistência e, quem sabe, inspirar os mais novos.