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Ciclos

A história oral da Bicicletada em SP

Sob fragmentos de uma perspectiva interna, traçamos o perfil do movimento cicloativista sem líderes, na ativa há quase 15 anos, que ajudou a acelerar as discussões acerca da mobilidade.

'Esta matéria faz parte do projeto Ciclos, uma série sobre mobilidade urbana feita pela VICE em parceria com o Itaú.'

A Bicicletada de São Paulo foi a primeira mobilização do país com este nome e com a pauta de desmotorizar os centros urbanos. A primeira edição convocava um protesto no calor das lutas antiglobalização. Foi no dia 29 de junho de 2002, com concentração na Avenida Paulista. Desde então, o evento tem acontecido mensalmente, sempre a partir das 18h, todas as últimas sextas, partindo da Praça do Ciclista, na mesma Paulista. Originalmente chamado de Critical Mass (Massa Crítica) mundo afora, este movimento cicloativista começou em San Francisco, nos Estados Unidos, e hoje acontece em mais de 300 cidades regularmente.

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Uma Bicicletada é facilmente diferenciada dos grupos de passeio ciclístico comuns quando passa. O que se vê não é um coletivo seguindo regras ou vestido em trajes esportivos refinados. Muito pelo contrário. Deparamo-nos com uma coincidência organizada, como o aparente caos dos cruzamentos sem sinalização do trânsito Chinês que inspirou o termo "Massa Crítica". Os participantes, por sua vez, são pessoas como aquelas com as quais trombamos no ônibus ou no metrô. Usuários das vias de transporte da cidade vestidos em roupas comuns, extravagantes, divertidas ou nenhuma, por vezes exibindo cartazes, distribuindo panfletos e entoando gritos por uma mobilidade urbana menos opressiva. Na essência, toda Bicicletada é um passeio-manifesto.

Quase 15 anos depois da primeira edição brasileira, colhemos depoimentos de participantes de diferentes fases da Bicicletada paulistana para fazer um balanço dos frutos desse esforço até aqui. O Odir Züge Junior, que organizou a primeira, está envolvido até hoje. Acompanhe:

CAPITULO UM: O COMEÇO

ODIR ZÜGE JUNIOR [professor Dr. em Direito e cicloativista]: "Eu convoquei a primeira. Ando de bike desde criança, e a militância começou no final dos anos 1990. Eu participava do movimento antiglobalização na época. As Massas Críticas sempre tiveram essa pegada, desde o começo. Elas eram uma das lutas do tema, do combate à indústria do automóvel, do petróleo… É uma variação das lutas urbanas, né. A orientação é totalmente horizontal. As associações existem na medida do que for preciso para falar com o poder público."

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"Nos tempos das manifestações antiglobalização já havia os Bike Punx colocando esses temas em discussão. Inclusive um dos participantes da Bicicletada, naquela época, se apresentava como Punkálvaro, o Álvaro punk [risos]."

MICHELE MAMEDE [jornalista e praticante de cicloviagens]: "Em 2011, uma amiga publicou um evento no Facebook. Eu comentei que queria ir, mas que não tinha bicicleta. Um amigo dela, de quem eu nunca tinha ouvido falar, ofereceu uma emprestada. Foi super legal e tranquilo, fizemos 16 km em quase três horas. Fiquei com vontade de ir na seguinte, mas eu estava fora do Brasil. Fui visitar um amigo na Finlândia, e lá, eu usei bicicleta todos os dias, em Helsinki. Achei super legal. Quando voltei, três meses depois peguei uma bicicleta emprestada de outra amiga e fui. E aí conheci um monte de gente, entrei na lista de e-mail da Bicicletada, do riseup.net, que era bastante ativa ainda na época, e tinha muita informação. Nesse período eu frequentei todas as edições da Bicicletada até 2012."

ALINE CAVALCANTE [empreendedora social e cicloativista]: "Eu participei até 2014/15. Cheguei em São Paulo de Aracaju, em 2008, pra estudar. Naquele mesmo ano comecei a andar de bicicleta como meio de transporte, pra ir pra faculdade, e fui conhecendo a cidade assim. Quando ouvi falar da Bicicletada, não entendi direito o que era. Sabia que era uma galera que se encontrava pra pedalar. Achava até que era um passeio noturno."

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"Em janeiro de 2009, fui num protesto em razão da morte de uma ciclista chamada Márcia Prado, e fiquei encantada com a força, a potência do movimento. Eu fiquei digerindo o impacto daquele protesto durante meses, e voltei a frequentar a Bicicletada em junho. Aquilo foi fundamental pra eu começar a agir, sabe? Aí eu fui entendendo que era um movimento orgânico, que não era um passeio ciclístico tradicional. Me identifiquei muito com essa proposta. Em 2009 ele já estava bem cheio. Ainda muito poucas mulheres, você contava nas mãos a quantidade de mulher, mas já tinha lá suas 50-100 pessoas."

FLÁVIO GRÃO [educador e artista plástico]: "Sempre andei de bicicleta desde muito pequeno no ABC paulista. Mas foi quando mudei pra São Paulo, capital, há 13 anos, que percebi que pedalar aqui tinha este caráter político. Pode parecer absurdo andar de bicicleta ser um ato político, mas se você leva em consideração que vivemos numa metrópole que privilegia o carro como símbolo de poder e propriedade, além de ter um trânsito muito violento faz todo sentido."

"Acho que a Bicicletada desempenhou um papel muito importante pela visibilidade que a Massa Crítica tem de impactar os demais cidadãos que presenciam o movimento, sejam pedestres ou motoristas de carros. Claro que algumas vezes o motorista que se deparava com seu carro parado porque milhares estavam de bicicleta na via poderia justamente ter um instinto de odiar mais ainda este meio de transporte, mas no geral o que víamos é que as pessoas que não estavam participando tinham mesmo é vontade de pedalar conosco."

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Foto: Tiago Benicchio. via Flickr

CAPITULO DOIS: PASSEIOS-MANIFESTO

ODIR: "Quando a Bicicletada começou, os contatos que a gente tinha eram de uma internet discada. Então as notícias chegavam por terceiros, muitas vezes. Quem começou a trabalhar a ideia de uma Massa Crítica mensal dentro do nosso grupo foi um hoje professor da USP chamado Pablo Ortellado. O Pablo foi o primeiro a citar. Ele não pedalava, mas já tinha o conhecimento do que estava acontecendo em San Francisco e começando a se espalhar pelos Estados Unidos. Nós estamos falando de discussões nossas em 2000/01."

"A Bicicletada não é um simples grupo de pedalada. Os grupos de pedal noturno são de lazer, na verdade, né. Eles têm uma outra cabeça, enquanto que a nossa pegada é mudar mesmo o perfil da cidade. Várias questões surgem junto com a bicicleta. Muitas pautas se misturam. O que ocorre dentro do movimento é o seguinte: a bicicleta acaba sendo um gancho pra esse cidadão que tem uma vida cotidiana totalmente compartimentada, dentro de um quadradinho, abrir os olhos pra outras questões."

"Tem um folhetinho, inclusive, de 2001, em que a gente convoca uma Bicicletada Contra o G8. E na época nós usávamos o termo 'Bicicletada' como uma manifestação episódica, não um negócio recorrente, que fosse acontecer todo mês. Vem de lá o uso do termo 'Bicicletada' para as manifestações, e a partir do dia 27 de junho 2002 começamos a fazer mensalmente. Todas as anteriores ocorreram dentro dos protestos antiglobalização. Essa de junho de 2002 foi a primeira da Massa Crítica, com a pauta bicicleta."

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"Nos primeiros oito meses acontecia aos sábados de manhã. Até que se cria um volume maior de participantes e se consegue pular para sextas à noite. Na primeira edição foram 12 pessoas. Foi aumentando progressivamente. São Paulo teve muita Bicicletada com meia dúzia de gatos pingados, e também muitas com duas, três mil pessoas. Hoje, pode-se contar com umas 100, 150 pessoas nas edições mensais, faça chuva ou sol. Agora, a Bicicletada não é só um evento mensal, é toda a rede de contato que se forma no entorno. É comum a presença de pessoas que frequentam os passeios noturnos de lazer, e, na última sexta do mês, aparece na Bicicletada."

MICHELE: "Quando foi embargada a obra das ciclovias na Paulista, em 2015, a movimentação dos ciclistas foi enorme. Tanto que foi a retomada da Bicicletada. Eu fui, e ia andando e encontrando um monte de gente que não via há tempos. Muita gente imprimia os panfletos no site da Bicicletada e distribuía nos passeios, pra tentar explicar pra quem é de fora o que era aquilo. Ou, no farol, conversava com algum motorista. No geral as pessoas de fora não são agressivas. Eu via muita gente entrando no clima e cantando os gritos de guerra."

ALINE: "O principal motivo do começo da Bicicletada em São Paulo era o protesto antiglobalização. Mas aí ele foi sendo apropriado, ressignificado, a partir do momento em que ganhou o mainstream. Você não tem controle sobre aquele organismo. Se você for olhar a história em San Francisco, aconteceu a mesma coisa. Teve gente até que se tentou apropriar, dizer que era líder. Teve de tudo. Apesar disso, eu tenho uma história de muito carinho com a Bicicletada porque ela mostrou o ativismo, mesmo, a parte política da coisa."

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FLÁVIO: "Eu creio muito na perspectiva que o ambiente educa, e na Bicicletada isso funcionava bem. Os participantes novatos geralmente se viam no meio de uma massa de ciclistas que tinham condutas claras em demonstrar que aquilo não se tratava de um passeio. Isso vai dos gritos de protesto ao apoio mútuo, como esperar sempre o último ou ajudar a bloquear as ruas para os amigos passarem. De certa forma, as pessoas absorviam tais posturas."

CAPÍTULO TRÊS: MOMENTOS MARCANTES

ODIR: "Todo ano tem a Pedalada Pelada, no mundo inteiro. Durante uma Pedalada Pelada, tivemos que dar um gato na polícia. Eles iam nos acompanhar em direção à Paulista, e saímos pro outro lado. Numa dessas, chegamos na Paulista e nos dividimos em grupos. A polícia se perdeu, e nos reunimos novamente no Ibirapuera. Um monte de gente pelada subiu lá no Monumento às Bandeiras, no que chegou um GCM, mandou todo mundo descer, e o pessoal começou a se vestir. Aí ele gritou: 'Eu falei pra descer, não pra se vestir!' [risos]".

"Em 2009, quando a polícia estava tentando achar um líder da Bicicletada, todo o mundo usava uma camiseta escrito assim 'Vice-líder da Bicicletada'. E quando perguntavam quem era o líder, apresentávamos o Joaquim.  Um cachorro que a polícia nunca achou. Mas ele é real, é o cachorro de um dos participantes eventuais [risos]. Ele ia na garupa de uma bicicleta, numa caixinha, e virou o líder da Bicicletada."

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MICHELE: "A Bicicletada dos sete mil na Paulista, em março de 2015, a favor da ciclovia, foi uma das mais memoráveis para mim. Eu estava na metade da Paulista, sentido Paraíso, e já tinha gente voltando. O pessoal tinha ido até bem depois da estação. Essa mostrou um poder de mobilização pra algo que interessa."

"Outro momento, mas triste, foi quando colocaram a ghost bike da Juliiana Dias. Foi uma mobilização pelo atropelamento dela. É aquela bike que está instalada quase em frente à FIESP. Eu conheci a Juli. Ela foi atropelada na Paulista. No dia do acidente, eu tinha passado uma hora antes dela por ali, e as pessoas começaram a me ligar no trabalho: 'Que bom ouvir a sua voz!'. No dia da instalação da ghost bike choveu muito, e mesmo assim tinha muita gente."

"Outra ocasião legal foi quando pedalamos pela 23 de maio e pegamos a ponte. Foi uma Bicicletada do Dia Mundial sem Carro. Passeios assim só são possíveis com a proteção de uma massa. Também eram muito divertidas as Bicicletadas temáticas. No carnaval tinha a Bicicletada Fantasiada, e o pessoal levava a sério, ia com umas fantasias bem legais."

ALINE: "Todas as edições do Dia Mundial sem Carro, 22 de setembro, foram muito históricas, muito legais. As Pedaladas Peladas, são uma memória muito boa que eu tenho. Foi libertador pra mim poder ficar pelada na cidade e ter mais acesso ao meu corpo. Ter andado na Ponte Estaiada, na Marginal, em túneis, lugares que não foram pensados pra ciclista e pedestre, também foi legal. Passar por túnel, cara, era uma energia, uma coisa inimaginável. Porque são espaços incríveis que a engenharia projetou só pra carro."

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FLÁVIO: "Lembro da vez que invadimos o Salão do Automóvel no Anhembi, e isso foi muito divertido. Sério, uma ação direta foda e inesperada, muito impactante, pois foi direto no nervo: expor às pessoas que são devotas ao carro como símbolo de poder e consumo, e único modo de se locomover, um jeito totalmente avesso de encarar a mobilidade urbana."

"O lance da bike fantasma também é um ritual inesquecível, muito forte. Quando a Bicicletada parte de seu ponto inicial e começa a pedalada sempre rola uma conversa informal sobre o ciclista que faleceu, sua história, como foi o acidente. Chegando no local a bike é içada e acorrentada. É algo bem triste. Lembro que uma vez morreu um menino atropelado e fomos colocar a bicicleta em homenagem a ele, era na Roberto Marinho, perto da Washington Luiz. Os amigos dele apareceram e ajudaram a gente, super emocionados, a pendurar a bike fantasma e contaram histórias sobre ele. Foi algo que nunca vou esquecer."

Foto: Tiago Benicchio. via Flickr

CAPÍTULO QUATRO: O LEGADO DA BICICLETADA

ODIR: "Para se ter ideia, quando a gente marca a primeira Bicicletada na Paulista, a preocupação era que, naquela época, a polícia retirava as bicicletas da avenida. A Renata Falzoni mesmo tomou gerais na Paulista por estar de bicicleta. O fato de que hoje a mais bela ciclovia de São Paulo está bem nela é muito simbólico. É uma conquista do espaço. No movimento, nós entendemos que isso é ainda uma etapa. Não é que conseguimos o que queríamos. Isso é uma etapa do crescimento. Fim de semana passado comemorou-se um ano de que isso [as ciclovias] está acontecendo lá no Jardim Peri. Aquilo que começou como uma reação, de gente querendo saber o que estava acontecendo, hoje tem um apoio total da comunidade, que se encantou com o projeto e não quer deixar morrer. As mães e pais lá pedem pelo amor de Deus pra abrir mais cedo e fechar mais tarde. Então a cidade aos poucos vai mudando. O cicloativismo começou a questionar um monte de lógicas. Baixou o número de inscritos com 18 anos nas autoescolas, por exemplo. O fetiche pelo carro acabou, no mundo inteiro. A utilização dos recursos vai ser diferente."

MICHELE: "O pessoal que era ativo na promoção da bicicleta como meio de transporte começou a criar outros projetos, como o Bike Anjo, e teve gente que abriu bicicletaria, tipo As Magrelas, surgiu o Pedalinas, que é um grupo para mulheres… O pessoal começou a se envolver com outros grupos e a focar a sua energia nos resultados. Então acho que também teve uma debandada da Bicicletada nesse sentido."

"O Pedalinas é um exemplo para ser grifado, pois foi um grupo criado a fim de promover o uso da bicicleta entre mulheres, ensinar mecânica para mulheres, então podemos dizer que é um grupo feminista. Acho que essa foi a luta específica mais expressiva que saiu da Bicicletada, porque como as pessoas que participam têm perfis muito variados, o ponto de convergência maior era mesmo a Bicicleta."

ALINE: "O movimento cresceu e se desmembrou em associações, coletivos, para conseguir trabalhar coisas mais profundas. Porque a Bicicletada, sozinha, é muito rasa, no sentido de atuação social. Ela acontece uma vez por mês e acaba ali. Ninguém responde ou faz algo em nome da Bicicletada. Sentimos a necessidade de formalizar alguns grupos para conseguir, por exemplo, dialogar com a prefeitura, trabalhar, criar um CNPJ, enfim, mil coisas que a sociedade exige. A partir daí, em 2009, criou-se a Ciclocidade e a CicloBR, duas associações que trabalham com esse tema, pra pleitear espaço político. A Bicicletada é um encontro-manifesto, e acaba ali, ela não tem uma representação."

"A mudança vem do que nasce nos encontros. Aí surgiu as Pedalinas, Bike Anjo, Pedal Verde, Pedal Gastronômico, Pedal Sonoro… muitos grupos dissidentes desse organismo. Surgiram associações, ONGs, empresas sociais. Hoje eu trabalho numa empresa social que criei ao lado de sócios da época da Bicicletada. E nós trabalhamos com o tema da mobilidade urbana."

FLÁVIO: "Logo que comecei a ir na Bicicletada percebi que muitos dos que participavam ali eu reconhecia de outros rolês e causas. Do rolê punk, da Verdurada, de protestos por causas humanistas, movimento estudantil e etc. Acho que são pessoas que querem uma cidade melhor e mais humana de um modo geral, e a bike é uma parte disso. Havia também os que eram somente cicloativistas, mas eu me ligava mais nessa galera. Acho que as ciclovias da cidade são uma conquista efetiva da bicicletada, associada, é claro, à movimentação e organização de cicloativistas junto às esferas políticas. Como critica, creio que deveriam haver meios da Bicicletada ampliar seu alcance para além do centro e mais em direção à periferia, onde faltam ciclovias ainda e onde a bicicleta como meio de transporte é algo que, muitas vezes, é mais necessidade do que opção."

Acesse o site www.projetociclos.com.br  e assista ao documentário sobre mobilidade urbana que fizemos em parceira com o Itaú.