Jocy de Oliveira fala sobre o clássico eletroacústico 'Estórias para Voz'

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Música

Jocy de Oliveira fala sobre o clássico eletroacústico 'Estórias para Voz'

A compositora curitibana, precursora da música eletrônica no Brasil, conta a história por trás de 'Estórias para Voz, Instrumentos Acústicos e Eletrônicos', relançado recentemente pelo selo inglês Blume.

O Disquecidos é a série que conta histórias nunca ou pouco contadas de grandes discos subestimados da música brasileira. Nesta entrevista, a compositora curitibana e pioneira da música eletrônica no Brasil Jocy de Oliveira fala ao THUMP sobre Estórias para Voz, Instrumentos Acústicos e Eletrônicos , uma coletânea de peças eletroacústicas prensada originalmente em 1981 e recentemente relançada pelo selo inglês Blume.

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A trajetória de Jocy de Oliveira é uma história importante que foi pouco contada. A compositora curitibana, que completou no ano passado 80 anos de idade e ostenta quase seis décadas de carreira, é peça-chave pra falar de alguns assuntos importantes na música da segunda metade do século XX: as vanguardas europeias, a eletroacústica norte-americana, a relação entre compositor e intérprete, a participação das mulheres na produção musical e a chegada da música eletrônica no Brasil.

Jocy estreou como compositora no álbum anti-bossa A Música Século XX de Jocy, lançado em 1959, mas passou as duas décadas seguintes afastada da composição para dedicar-se ao trabalho de intérprete. Por trás do piano, ela estreou grandes obras de artistas europeus e norte-americanos como John Cage, Luciano Berio, Olivier Messiaen e Iannis Xenakis. A relação que ela construiu com esses e outros compositores ao longo dos anos foi registrada no livro Diálogo com Cartas (2014).

Quando Jocy se voltou à composição novamente, nos anos 1980, seu primeiro trabalho lançado foi Estórias para Voz, Instrumentos Acústicos e Eletrônicos, que ganhou em julho um relançamento pelo selo inglês Blume.

Prensado originalmente em 1981 pela Fermata, Estórias é um conjunto de quatro peças eletroacústicas que misturam influências de todos os cantos explorados por Jocy ao longo das décadas em que esteve fora do Brasil. "Estórias que não contam estórias", como definiu a própria compositora.

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O release da Blume conta que o álbum foi "ouvido por quase ninguém além das fronteiras do Brasil", mas, na verdade, Estórias e todo o restante da produção de Jocy foram pouco celebrados mesmo por aqui: o relançamento do álbum não foi noticiado por nenhum veículo brasileiro e, em 80 anos de vida, poucas matérias sobre sua obra foram publicadas. Em entrevista ao THUMP, Jocy conta pela primeira vez a história por trás de suas Estórias.

THUMP: O que te levou a deixar o trabalho de intérprete de lado e focar em composição em determinado ponto de sua carreira?
Jocy: Apesar de dedicar-me por vários anos muito mais à carreira de pianista, continuei paralelamente no desenvolvimento de meu trabalho, focalizando uma investigação em diversos campos, com música, teatro, vídeo, textos, instalações, numa convicção de que a expressão sonora é inerente a todas as formas de vida, e tentando atingir um desenvolvimento orgânico da composição/execução, sem fronteiras entre vida e arte. Minha carreira seguiu sempre paralela como pianista e compositora embora até o início da década de 90 ela fosse prioritariamente voltada para o piano devido aos inúmeros compromissos de concertos e gravações em diversos países.

A população imigrante de São Paulo foi uma grande fonte de inspiração pra você quando compondo Estórias . De que maneira essa influência se dá no disco?
Não trata-se de uma influência direta dos imigrantes em São Paulo, mas num sentido mais amplo da miscigenação no Brasil que nos oferece a riqueza de raízes de diferentes culturas, etnias e raças.

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Você trabalhou como intérprete de grandes compositores do séc XX, especialmente das vanguardas europeias. Como essa experiência te influenciou quando você compôs Estórias ?
Durante as décadas de 60 e 70, eu executava muito música contemporânea e vários compositores compunham obras dedicadas a mim, como Luciano Berio, [Iannis] Xenakis, John Cage e [Claudio] Santoro. Além disso, fui solista sob a regência de Stravinsky e gravei em Nova York grande parte da obra pianística de [Olivier] Messiaen. Isso certamente me forneceu uma estimulante bagagem musical que, consciente ou inconscientemente, influenciou minha criatividade.

Em geral, em minha obra, a escolha do material sonoro soma elementos de minha experiência musical e de vida. Assim, minha impressão de um sadhu (homem santo) cantando uma raga à Shiva num templo de Déli é tão importante quanto a reminiscência de um contraponto renascentista, uma cantilena, o uso de sons gerados por computador, ou a herança de anos e anos tocando as obras pianísticas de Messiaen e vivenciando sua nova noção do tempo.

Este tecido sonoro pode se desenvolver de séries múltiplas, nuvens de sons em constante transformação de texturas, uma tala, a tradição post serial europeia, a não periodicidade oriental, a atemporalidade da natureza, o acaso, ou nossas raízes culturais antropofágicas. É a integração de todos os elementos e minha visão do mundo que toma a forma de mais de trinta anos de vida em diferentes países e de convívio com alguns mestres do século XX.

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A música eletroacústica norte-americana também parece ter sido uma grande influência para o disco. Como você entrou em contato com ela?
Eu fiz meu mestrado em composição na Washington University em 67. Lá, nós tínhamos à disposição um estúdio de música eletrônica para trabalhar. Morei nos EUA alguns anos e o convívio com muitos compositores americanos foi instigante para o meu trabalho, assim como ter minhas partituras publicadas pelo grupo de Source Music of the Avant Garde na Califórnia.

Jocy em 1980. Foto: arquivo pessoal.

Quais os equipamentos eletrônicos usados para gravar o disco? Quão difícil era conseguir esses equipamentos no Brasil na época?
Apenas uma faixa ( Estória IV) foi gravada num estúdio de gravação em São Paulo, as outras já estavam gravadas. Nós possuíamos obviamente os instrumentos inclusive o raro violino eletrônico Vitar com cinco cordas. Na época ainda não existia nenhum estúdio de música eletrônica no Brasil.

Aliás, a primeira apresentação de música eletrônica no Brasil foi realizada por mim com minha peça Apague Meu Spotlight, em parceria com Luciano Berio nos Theatros Municipais do Rio de Janeiro e de São Paulo em setembro de 1961. O equipamento piloto de difusão e espacialização sonora da Philips veio especialmente da Holanda e tinha sido usado na Expo de Bruxelas. Embora eu tenha solicitado que este equipamento ficasse no Brasil para que fosse fundado o primeiro estúdio no país, após as apresentações ele voltou para a Holanda.

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Você comentou que algumas faixas do disco foram gravadas fora do Brasil. Em que lugares ele foi gravado?
"Estória II" foi gravada em St. Louis, nos Estados Unidos, com músicos americanos com os quais eu tocava bastante lá, naquele período. "Dimensões para 4 teclados" foi gravada por mim usando quatro teclados durante um concerto ao vivo em Aahrus, Dinamarca.

O álbum tem algum conceito ou fio narrativo que o puxa?
Diria que são estórias que não contam estórias… Em 1966-1967 , iniciei uma série de composições — Estórias — para voz, meios eletroacústicos e instrumentos acústicos que continuam a contar uma história não linear e que não conta. Estória I (acusmática) foi minha primeira peça eletroacústica pura, seguida de Estória II, e compostas no Estúdio de Música Eletrônica da Washington University, St. Louis, em 1966, tendo como material vocal a voz da mezzosoprano norte-americana Rosalyn Wykes.

Por que você nomeou as faixas "estórias"?
"Estórias" como se referia Guimarães Rosa, significa uma narrativa ficcional, ao contrário de história, uma narrativa factual. Minhas estórias não contam, elas sugerem, induzem…

Me fale um pouco sobre as vozes no disco. Como você se interessou em compôr para voz, e o que você queria passar com a maneira como as vozes foram processadas no álbum?
A escrita para voz está intrinsecamente ligada às técnicas vocais estendidas e a processos eletrônicos de manipulação. Logo, me seria impossível escolher um texto narrativo para uma parte cantada, uma vez que ela é sempre fragmentada e intimamente ligada a timbres instrumentais (acústicos ou eletrônicos). Estas "estórias" focalizam uma investigação da sílaba falada e suas propriedades fonéticas e semânticas, que me conduziu a uma renúncia do discurso linear e ofereceu-me uma riqueza de materiais com ênfase na qualidade essencial da própria voz humana.

Estórias foi lançado em 1981, alguns anos antes do fim da ditadura militar no Brasil. O regime militar impôs algum empecilho ao seu trabalho ao longo dos anos?
Eu sempre tive um pé no Brasil e outro no exterior. Assim foi minha formação um pouco como cidadã do mundo (se é que isto é possível). Durante o regime militar eu passei a morar no EUA, porém vinha anualmente ao Brasil e realizava concertos, espetáculos, eventos urbanos, instalações e aí começavam os problemas. A linguagem estética era provocativa, buscava uma audiência participativa, ativa e portanto incitava à reflexão e ao questionamento. Algumas vezes tive o DOPS interrompendo minhas instalações (que se baseavam em meio ambiente), outras vezes tive que voltar aos EUA antes do previsto.

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